sábado, 29 de junho de 2013

Natal ao vivo no Largo das Carmelitas Viana do Castelo


Organograma da Paróquia


Casas da Rua da Bandeira em frente à residência Paroquial de Nª Sª de Fátima


Residência e Centro Paroquial de Nª Sª de Fátima-Viana do Castelo


Mapa da Paróquia de Nª Sª de FÁTIMA


Exposição de imagens marianas


Ajuda contra o Câncro dso Berço, Jardim e Centro de Dia


Dia 9 de julho de 1972 - Ordenbação Sacerdotal., na Igrja da Apúlia


O SAGRADO E O PROFANO


MIRCEA ELIADE

O SAGRADO E O PROFANO

O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como qualquer coisa de absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o acto da manifestação do sagrado propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, porque não implica qualquer precisão suplementar: exprime apenas o que está impli­cado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos mostra. Poderia dizer-se que a história das religiões — desde as mais primitivas às mais ela­boradas— é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifesta­ções das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania — por exemplo, a manifestação do sagrado num objecto qualquer, uma pedra ou uma árvore — e até à hierofania suprema que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo acto misterioso: a manifestação de algo «de ordem diferente» — de uma realidade que não pertence ao nosso mundo — em objectos que fazem parte integrante do nosso mundo «natural», «profano». (...)

(...) Para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é susceptível de revelar-se como sacralidade cósmica. 0 Cosmos na sua totalidade pode tornar-se uma hierofania.

O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível em o sagrado ou muito perto dos objectos consagrados. Esta tendência é de resto com­preensível, porque para os «primitivos» como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado eqüivale ao poder, e, no fim de contas, à realidade por excelência. 0 sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição sagrado-profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo-real. (...)

0 mito conta uma história sagrada, quer dizer um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada eqüivale a revelar um Mistério, porque as personagens do mito não são seres humanos: são Deuses ou Heróis civilizadores, e por esta razão as suas gesta constituem Mistérios: o homem não poderia conhecê-los se lhos não revelassem. O mito é pois a história do que se passou in Mo tempore, a narração daquilo que os Deuses ou os Seres divinos

nzeram no começo do Tempo. «Dizer» um mito, é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez «dito», quer dizer revelado, o mito torna-se verdade apodíctica: funda a verdade absoluta. (...)

0 mito proclama a aparição de uma nova «situação» cósmica ou de um aconte­cimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma «criação»: conta-se como é que qualquer coisa foi efectuada, começou a ser. (...)

Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe de modelos exemplares para os seus comportamentos e acções. Por outras palavras, quanto mais é religioso tanto mais se insere no real, e menos se arrisca a perder-se em acções não exemplares, «subjectivas», e, em suma, aberrantes.

É sobretudo este aspecto do mito que convém sublinhar: o mito revela a sacrali- dade absoluta, porque conta a actividade criadora dos Deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Por outros termos, o mito descreve as diversas e por vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo. É por esta razão que entre muitos primitivos os mitos não podem ser indiferentemente recitados não importa onde e não importa quando — mas somente durante as estações ritualmente mais ricas (Outubro, Inverno) ou no intervalo das cerimônias religiosas, numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo. Cada mito mostra como é que uma realidade veio à existência, seja ela a reali­dade total, o Cosmos, ou somente um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição humana. Narrando como vieram à existência as coisas, o homem explica-as e responde indirectamente a uma outra questão: porque é que elas vieram à existência. O «porquê» insere-se sempre no «como». E isto pela simples razão de que contando como nasceu uma coisa se revela a irrupção do sagrado no mundo, causa última de toda a existência real.

Por outro lado, sendo obra divina toda criação, e portanto irrupção do sagrado, representa igualmente uma irrupção de energia criadora no mundo. Toda criação brota de uma plenitude. Os Deuses criam por um excesso de poder, por um transbordar de energia. (...)

A função mais importante do mito é, pois, a de «fixar» os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as actividades humanas significativas: alimentação, sexua­lidade, trabalho, educação, etc. Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos Deuses, repete as acções deles, quer se trate de uma simples função fisiológica como a alimentação, quer de uma actividade social, econômica, cultural, militar, etc.

Na Nova Guiné, numerosos mitos falam de longas viagens por mar, fornecendo assim «modelos aos navegadores actuais», assim como modelos para todas as outras actividades, «quer se trate de amor, de guerra, de pesca, de produção de chuva, ou seja do que for... A narração fornece precedentes para os diferentes momentos da construção de um barco, para os tabus sexuais que ela implica, etc.». (...)

Esta repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo:

1)             por um lado, imitando os deuses, o homem mantém-se no sagrado e, por conseqüência, na realidade;

por outro lado, graças à reactualização ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo.

REACTUALIZAR OS MITOS

O que é preciso sublinhar é que, desde o início, o homem religioso situa o seu próprio modelo a atingir no plano trans-humano: o revelado pelos mitos. O homem só se torna em verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, quer dizer imitando os deuses.

Adicionemos que uma tal imitatio dei implica por vezes, para os primitivos, uma responsabilidade muito grave: (...) certos sacrifícios sangrentos encontram a sua justificação num acto divino primordial: in ii/o tempore, o Deus havia espancado o Monstro marinho e esquartejado o seu corpo a fim de criar o Cosmos. 0 homem repete este sacrifício sangrento — por vezes mesmo com vítimas humanas — quando deve construir uma aldeia, um templo ou simplesmente uma casa. 0 que podem ser as conseqüências da imitatio dei mostram-no assaz claramente as mitologias e os rituais de numerosos povos primitivos. Para dar um só exemplo: segundo os mitos dos paleocul- tivadores, o homem tornou-se no que ele é hoje — mortal, sexualizado e condenado ao trabalho — na seqüência de uma morte primordial: in Hio tempore, um Ser divino, muito frequentemente uma Mulher ou uma Rapariga, por vezes uma Criança ou um Homem, deixou-se imolar para que pudessem brotar do seu corpo tubérculos ou árvores frutíferas. Este primeiro assassínio mudou radicalmente o modo de ser da existência humana. A imolação do ser divino inaugurou assim a necessidade de alimentação como a fatalidade da morte e, por conseqüência, a sexualidade, o único meio de assegurar a continuidade da vida. (...)

Para todos estes povos paleocultivadores, o essencial consiste em evocar periodi­camente o acontecimento primordial que fundou a condição humana actual. Toda a sua vida religiosa é uma comemoração, uma rememoração. A Recordação reactua- lizada por ritos (portanto, pela reiteração do assassínio primordial) desempenha um papel decisivo: o homem deve evitar cuidadosamente esquecer o que se passou in iiio tempore. O verdadeiro pecado é o olvido. (...)

A memória pessoal não entra em jogo; o que conta, é rememorar-se o aconteci­mento mítico, o único digno de interesse, porque é o único criador. É ao mito primor­dial que cabe conservar a verdadeira História, a história da condição humana: é nele que é preciso procurar e reencontrar os princípios e os paradigmas de toda a conduta.

É neste estado de cultura que se encontra o canibalismo ritual. A grande preocupa­ção do canibal parece ser de essência metafísica: ele não deve esquecer o que se passou in iiio tempore. Volhardt e Jensen mostraram-no claramente: abatendo e devorando porcos por ocasião das festividades, comendo as primícias da colheita dos tubérculos, come-se o corpo divino tal como durante as refeições canibais. Sacrifícios de porcas, caça de cabeças, canibalismo, são simbolicamente solidários das colheitas dos tubérculos ou das nozes de coco. Cabe a Volhardt o mérito de ter esclarecido do mesmo passo que o sentido religioso da antropofagia, a responsabilidade humana assumida pelo canibal. A planta alimentar não é dada na Natureza; é o produto de um assassínio, porque foi assim que ela foi criada na aurora dos tempos. A caça às cabeças, os sacrifícios humanos, o canibalismo — tudo isto foi aceite pelo homem a fim de assegurar a vida das plantas. Volhardt insistiu justamente neste aspecto; o canibal assume a sua responsabilidade no mundo, o c nzeram no começo do Tempo. «Dizer» um mito, é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez «dito», quer dizer revelado, o mito torna-se verdade apodíctica: funda a verdade absoluta. (...)

0 mito proclama a aparição de uma nova «situação» cósmica ou de um aconte­cimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma «criação»: conta-se como é que qualquer coisa foi efectuada, começou a ser. (...)

Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe de modelos exemplares para os seus comportamentos e acções. Por outras palavras, quanto mais é religioso tanto mais se insere no real, e menos se arrisca a perder-se em acções não exemplares, «subjectivas», e, em suma, aberrantes.

É sobretudo este aspecto do mito que convém sublinhar: o mito revela a sacrali- dade absoluta, porque conta a actividade criadora dos Deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Por outros termos, o mito descreve as diversas e por vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo. É por esta razão que entre muitos primitivos os mitos não podem ser indiferentemente recitados não importa onde e não importa quando — mas somente durante as estações ritualmente mais ricas (Outubro, Inverno) ou no intervalo das cerimônias religiosas, numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo. Cada mito mostra como é que uma realidade veio à existência, seja ela a reali­dade total, o Cosmos, ou somente um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição humana. Narrando como vieram à existência as coisas, o homem explica-as e responde indirectamente a uma outra questão: porque é que elas vieram à existência. O «porquê» insere-se sempre no «como». E isto pela simples razão de que contando como nasceu uma coisa se revela a irrupção do sagrado no mundo, causa última de toda a existência real.

Por outro lado, sendo obra divina toda criação, e portanto irrupção do sagrado, representa igualmente uma irrupção de energia criadora no mundo. Toda criação brota de uma plenitude. Os Deuses criam por um excesso de poder, por um transbordar de energia. (...)

A função mais importante do mito é, pois, a de «fixar» os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as actividades humanas significativas: alimentação, sexua­lidade, trabalho, educação, etc. Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos Deuses, repete as acções deles, quer se trate de uma simples função fisiológica como a alimentação, quer de uma actividade social, econômica, cultural, militar, etc.

Na Nova Guiné, numerosos mitos falam de longas viagens por mar, fornecendo assim «modelos aos navegadores actuais», assim como modelos para todas as outras actividades, «quer se trate de amor, de guerra, de pesca, de produção de chuva, ou seja do que for... A narração fornece precedentes para os diferentes momentos da construção de um barco, para os tabus sexuais que ela implica, etc.». (...)

Esta repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo:

1)              por um lado, imitando os deuses, o homem mantém-se no sagrado e, por conseqüência, na realidade;

2)              por outro lado, graças à reactualização ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo.

 

REACTUALIZAR OS MITOS

O que é preciso sublinhar é que, desde o início, o homem religioso situa o seu próprio modelo a atingir no plano trans-humano: o revelado pelos mitos. O homem só se torna em verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, quer dizer imitando os deuses.

Adicionemos que uma tal imitatio dei implica por vezes, para os primitivos, uma responsabilidade muito grave: (...) certos sacrifícios sangrentos encontram a sua justificação num acto divino primordial: in ii/o tempore, o Deus havia espancado o Monstro marinho e esquartejado o seu corpo a fim de criar o Cosmos. 0 homem repete este sacrifício sangrento — por vezes mesmo com vítimas humanas — quando deve construir uma aldeia, um templo ou simplesmente uma casa. 0 que podem ser as conseqüências da imitatio dei mostram-no assaz claramente as mitologias e os rituais de numerosos povos primitivos. Para dar um só exemplo: segundo os mitos dos paleocul- tivadores, o homem tornou-se no que ele é hoje — mortal, sexualizado e condenado ao trabalho — na seqüência de uma morte primordial: in Hio tempore, um Ser divino, muito frequentemente uma Mulher ou uma Rapariga, por vezes uma Criança ou um Homem, deixou-se imolar para que pudessem brotar do seu corpo tubérculos ou árvores frutíferas. Este primeiro assassínio mudou radicalmente o modo de ser da existência humana. A imolação do ser divino inaugurou assim a necessidade de alimentação como a fatalidade da morte e, por conseqüência, a sexualidade, o único meio de assegurar a continuidade da vida. (...)

Para todos estes povos paleocultivadores, o essencial consiste em evocar periodi­camente o acontecimento primordial que fundou a condição humana actual. Toda a sua vida religiosa é uma comemoração, uma rememoração. A Recordação reactua- lizada por ritos (portanto, pela reiteração do assassínio primordial) desempenha um papel decisivo: o homem deve evitar cuidadosamente esquecer o que se passou in iiio tempore. O verdadeiro pecado é o olvido. (...)

A memória pessoal não entra em jogo; o que conta, é rememorar-se o aconteci­mento mítico, o único digno de interesse, porque é o único criador. É ao mito primor­dial que cabe conservar a verdadeira História, a história da condição humana: é nele que é preciso procurar e reencontrar os princípios e os paradigmas de toda a conduta.

É neste estado de cultura que se encontra o canibalismo ritual. A grande preocupa­ção do canibal parece ser de essência metafísica: ele não deve esquecer o que se passou in iiio tempore. Volhardt e Jensen mostraram-no claramente: abatendo e devorando porcos por ocasião das festividades, comendo as primícias da colheita dos tubérculos, come-se o corpo divino tal como durante as refeições canibais. Sacrifícios de porcas, caça de cabeças, canibalismo, são simbolicamente solidários das colheitas dos tubérculos ou das nozes de coco. Cabe a Volhardt o mérito de ter esclarecido do mesmo passo que o sentido religioso da antropofagia, a responsabilidade humana assumida pelo canibal. A planta alimentar não é dada na Natureza; é o produto de um assassínio, porque foi assim que ela foi criada na aurora dos tempos. A caça às cabeças, os sacrifícios humanos, o canibalismo — tudo isto foi aceite pelo homem a fim de assegurar a vida das plantas. Volhardt insistiu justamente neste aspecto; o canibal assume a sua responsabilidade no mundo, o canibalismo não é um comporta­mento «natural» do homem primitivo (não se situa aliás nos níveis mais arcaicos de

anibalismo não é um comporta­mento «natural» do homem primitivo (não se situa aliás nos níveis mais arcaicos de

 

nzeram no começo do Tempo. «Dizer» um mito, é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez «dito», quer dizer revelado, o mito torna-se verdade apodíctica: funda a verdade absoluta. (...)

0 mito proclama a aparição de uma nova «situação» cósmica ou de um aconte­cimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma «criação»: conta-se como é que qualquer coisa foi efectuada, começou a ser. (...)

Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe de modelos exemplares para os seus comportamentos e acções. Por outras palavras, quanto mais é religioso tanto mais se insere no real, e menos se arrisca a perder-se em acções não exemplares, «subjectivas», e, em suma, aberrantes.

É sobretudo este aspecto do mito que convém sublinhar: o mito revela a sacrali- dade absoluta, porque conta a actividade criadora dos Deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Por outros termos, o mito descreve as diversas e por vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo. É por esta razão que entre muitos primitivos os mitos não podem ser indiferentemente recitados não importa onde e não importa quando — mas somente durante as estações ritualmente mais ricas (Outubro, Inverno) ou no intervalo das cerimônias religiosas, numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo. Cada mito mostra como é que uma realidade veio à existência, seja ela a reali­dade total, o Cosmos, ou somente um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição humana. Narrando como vieram à existência as coisas, o homem explica-as e responde indirectamente a uma outra questão: porque é que elas vieram à existência. O «porquê» insere-se sempre no «como». E isto pela simples razão de que contando como nasceu uma coisa se revela a irrupção do sagrado no mundo, causa última de toda a existência real.

Por outro lado, sendo obra divina toda criação, e portanto irrupção do sagrado, representa igualmente uma irrupção de energia criadora no mundo. Toda criação brota de uma plenitude. Os Deuses criam por um excesso de poder, por um transbordar de energia. (...)

A função mais importante do mito é, pois, a de «fixar» os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as actividades humanas significativas: alimentação, sexua­lidade, trabalho, educação, etc. Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos exemplares dos Deuses, repete as acções deles, quer se trate de uma simples função fisiológica como a alimentação, quer de uma actividade social, econômica, cultural, militar, etc.

Na Nova Guiné, numerosos mitos falam de longas viagens por mar, fornecendo assim «modelos aos navegadores actuais», assim como modelos para todas as outras actividades, «quer se trate de amor, de guerra, de pesca, de produção de chuva, ou seja do que for... A narração fornece precedentes para os diferentes momentos da construção de um barco, para os tabus sexuais que ela implica, etc.». (...)

Esta repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo:

3)              por um lado, imitando os deuses, o homem mantém-se no sagrado e, por conseqüência, na realidade;

4)              por outro lado, graças à reactualização ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo.

 

REACTUALIZAR OS MITOS

O que é preciso sublinhar é que, desde o início, o homem religioso situa o seu próprio modelo a atingir no plano trans-humano: o revelado pelos mitos. O homem só se torna em verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, quer dizer imitando os deuses.

Adicionemos que uma tal imitatio dei implica por vezes, para os primitivos, uma responsabilidade muito grave: (...) certos sacrifícios sangrentos encontram a sua justificação num acto divino primordial: in ii/o tempore, o Deus havia espancado o Monstro marinho e esquartejado o seu corpo a fim de criar o Cosmos. 0 homem repete este sacrifício sangrento — por vezes mesmo com vítimas humanas — quando deve construir uma aldeia, um templo ou simplesmente uma casa. 0 que podem ser as conseqüências da imitatio dei mostram-no assaz claramente as mitologias e os rituais de numerosos povos primitivos. Para dar um só exemplo: segundo os mitos dos paleocul- tivadores, o homem tornou-se no que ele é hoje — mortal, sexualizado e condenado ao trabalho — na seqüência de uma morte primordial: in Hio tempore, um Ser divino, muito frequentemente uma Mulher ou uma Rapariga, por vezes uma Criança ou um Homem, deixou-se imolar para que pudessem brotar do seu corpo tubérculos ou árvores frutíferas. Este primeiro assassínio mudou radicalmente o modo de ser da existência humana. A imolação do ser divino inaugurou assim a necessidade de alimentação como a fatalidade da morte e, por conseqüência, a sexualidade, o único meio de assegurar a continuidade da vida. (...)

Para todos estes povos paleocultivadores, o essencial consiste em evocar periodi­camente o acontecimento primordial que fundou a condição humana actual. Toda a sua vida religiosa é uma comemoração, uma rememoração. A Recordação reactua- lizada por ritos (portanto, pela reiteração do assassínio primordial) desempenha um papel decisivo: o homem deve evitar cuidadosamente esquecer o que se passou in iiio tempore. O verdadeiro pecado é o olvido. (...)

A memória pessoal não entra em jogo; o que conta, é rememorar-se o aconteci­mento mítico, o único digno de interesse, porque é o único criador. É ao mito primor­dial que cabe conservar a verdadeira História, a história da condição humana: é nele que é preciso procurar e reencontrar os princípios e os paradigmas de toda a conduta.

É neste estado de cultura que se encontra o canibalismo ritual. A grande preocupa­ção do canibal parece ser de essência metafísica: ele não deve esquecer o que se passou in iiio tempore. Volhardt e Jensen mostraram-no claramente: abatendo e devorando porcos por ocasião das festividades, comendo as primícias da colheita dos tubérculos, come-se o corpo divino tal como durante as refeições canibais. Sacrifícios de porcas, caça de cabeças, canibalismo, são simbolicamente solidários das colheitas dos tubérculos ou das nozes de coco. Cabe a Volhardt o mérito de ter esclarecido do mesmo passo que o sentido religioso da antropofagia, a responsabilidade humana assumida pelo canibal. A planta alimentar não é dada na Natureza; é o produto de um assassínio, porque foi assim que ela foi criada na aurora dos tempos. A caça às cabeças, os sacrifícios humanos, o canibalismo — tudo isto foi aceite pelo homem a fim de assegurar a vida das plantas. Volhardt insistiu justamente neste aspecto; o canibal assume a sua responsabilidade no mundo, o canibalismo não é um comporta­mento «natural» do homem primitivo (não se situa aliás nos níveis mais arcaicos de

 

 

 

 

 

cultura) mas sim um comportamento cultural, fundado sobre uma visão religiosa da vida. Para que o mundo vegetal possa continuar-se, o homem deve matar e ser morto; deve, além disso, assumir a sexualidade até aos seus limites extremos: a orgia. Uma canção abissínia proclama-os «Aquela que ainda não engendrou, engendre; aquele, que ainda não matou, que matei» É uma maneira de dizer que os dois sexos são con­denados a assumir o seu destino.

É preciso que nos lembremos sempre, antes de emitirmos um juízo sobra o cani­balismo que ele foi fundado por seres divinos. Mas eles fundaram-no com o fito de permitirem aos homens que assumam uma responsabilidade no Cosmos, para os colocarem em estado de velar pela continuidade da vida vegetal. Trata-se, pois, de uma responsabilidade de ordem religiosa. (...)

Entre os primitivos, como nas civilizações paleo-orientais, a imitatio dei não é concebida de uma maneira idílica, ela implica, pelo contrário, uma terrível responsabili­dade humana. Julgando uma sociedade «selvagem», é preciso não perder de vista que mesmo os actos mais bárbaros e os comportamentos mais aberrantes têm modelos trans-humanos, divinos. (...)

O que importa sublinhar é que o homem religioso queria e acreditava imitar os seus deuses mesmo quando se deixava arrastar a acções que tocavam as raias da loucura, da vileza e do crime.

HISTÓRIA SAGRADA, HISTÓRIA, HISTORICISMO

(...) O homem religioso conhece duas sortes de tempo profano: e sagrado. Uma duração evanescente — e uma «seqüência de eternidades», recuperáveis periodicamente durante as festas que constituem o calendário sagrado. O Tempo litúrgico do calen­dário desenrola-se em círculo fechado: é o Tempo cósmico do Ano santificado pelas «obras dos Deuses». E visto que a obra divina mais grandiosa foi a Criação do Mundo a comemoração da cosmogonia desempenha um papel importante em muitas religiões. O Ano Novo coincide com o primeiro dia da Criação. 0 Ano é a dimensão temporal do Cosmos. Diz-se: «0 Mundo passou quando se escoou um ano.

Em cada Ano Novo reitera-se a cosmogonia, recria-se o Mundo, e fazendo-o «cria-se» também o Tempo, quer dizer, regenera-se o Tempo «começando-o de novo». É por esta razão que o mito cosmogónico serve de modelo exemplar a toda a «criação» ou «construçãQ», e é mesmo utilizado como meio ritual de cura. Voltando a ser simboli­camente contemporâneo da Criação, reintegra-se a plenitude primordial. O doente cura-se porque recomeça a sua vida com a soma intacta de energia.

A festa religiosa é a reactualização de um acontecimento primordial, de uma «história sagrada» cujos actores são os Deuses ou os Seres semidivinos. Ora, a «história sagrada» está contada nos mitos. Por conseqüência, os participantes da festa tornam-se contemporâneos dos Deuses e dos Seres semidivinos. Vivem no tempo primordial santificado pela presença e a actividade dos deuses. O calendário sagrado regenera periodicamente o Tempo, porque o faz coincidir com o Tempo da origem, o Tempo «forte» e «puro». A experiência religiosa da festa quer dizer a participação do sagrado permite aos homens que vivam periodicamente na presença dos Deuses. É a razão da importância capital dos Mitos em todas as religiões pré-moisaicas, porque os Mitos contam as gesta dos Deuses, e estas gesta constituem os modelos exemplares de todas as actividades humanos. Na medida em que imita os seus Deuses, o homem religioso vive no Tempo da origem, o Tempo mítico. Por outros termos, «sai» da duração profana para reunir-se a um Tempo «imóvel», à «eternidade».

Visto que, para o homem religioso das sociedades primitivas, os mitos constituem a sua «história sagrada», ele não deve esquecê-los: reactualizando os mitos, o homem religioso aproxima-se dos seus Deuses e participa da santidade. Mas há também «histórias divinas irágicas», e o homem assume uma grande responsabilidade perante si mesmo e perante a Natureza reactualizando-as periodicamente. O canibalismo ritual, por exemplo, é a conseqüência de uma concepção religiosa trágica. (...) Pela reactua- lização dos mitos, o homem religioso esforça-se por se aproximar dos Deuses e par­ticipar do Ser.

(...) Nas religiões primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos divinos justifica-se como imitatio dei. 0 calendário sacro repete anualmente as mesmas festas, quer dizer, a comemoração dos mesmos acontecimentos míticos. Propriamente falando, o calendário sacro apresenta-se como o «eterno retorno» de um número limitado de gestos divinos, e isto é verdadeiro não somente para as religiões primitivas, mas também para todas as outras religiões. Em todo lado, o calendário festivo cons­titui um retorno periódico das mesmas situações primordiais e, por conseqüência, a reactualização do mesmo tempo sagrado. Para o homem religioso, a reactualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui a sua maior esperança, porque com a reactualização reencontra a possibilidade de transfigurar a sua existência, de a tornar semelhante ao modelo divino. Em suma, para o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos exemplares e o eterno encontro com o mesmo tempo mítico da origem, santificado pelos Deuses — não implica de modo nenhum uma visão pessimista da vida; mas, pelo contrário, é graças a este «eterno retorno» às fontes do sagrado e do real que a existência humana lhe parece salva do nada e da morte.

(...) A Grécia também conheceu o mito do eterno retorno, e os filósofos da época tardia levaram aos seus extremos limites a concepção do tempo circular. Para citar o belo resumo de H. Ch. Puech: «Segundo a célebre definição platônica, o tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita desenrolando-se em círculo».

(...) Ora relativamente às religiões arcaicas e paleo-orientais, assim como em relação às concepções mítico-filosóficas do Eterno Retorno, tais quais foram elabo­radas na índia e na Grécia, o judaísmo apresenta uma inovação capital. Para o judaísmo, o Tempo tem um começo e terá um fim. A ideia do Tempo cíclico é ultrapassada. Jeová não se manifesta já no Tempo cósmico (como os deuses das outras religiões) mas num tempo histórico, que é irreversível. Cada nova manifestação de Jeová na história já não é redutível a uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de Jeová contra o seu povo, mas já não é a mesma que Jeová exprimira pela queda de Samaria. Os seus gestos são intervenções pessoais na História e revelam o seu sentido profundo somente para o seu povo, o povo que Jeová escolhera. Por conseqüência, o acontecimento histórico ganha uma nova dimensão: torna-se numa teofania.

 

 

 

0 Cristianismo ainda vai mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, visto que assumiu uma existência humana historicamente condicionada, a História torna-se susceptível de ser santificada. 0 illud tempus evocado pelos Evangelhos é um Tempo histórico claramente delimitado — o Tempo em que Pôncio Pilatos era governador da Judeia — mas era santificado pela presença de Cristo. Quando um cristão dos nossos dias participa do tempo litúrgico, volta a unir-se ao Hiud tempus onde Jesus vivera, agonizara e ressuscitara — mas já não se trata de um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judeia. Para o Cristão também o calendário sacro repete indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo — mas estes acontecimentos desenrolaram-se na História, já não são factos que se tenham passado na origem do tempo, «no começo». (...)

O sagrado no mundo moderno

(.(.) Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o Homo re/igiosus crê sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo mas que se manifesta neste mundo, e, por este facto, o santifica e o torna real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana actualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, quer dizer: participa da realidade. Os Deuses criaram o homem e o Mundo, os Heróis Civilizadores acabaram a Criação, e a história de todas estas obras divinas e semidivinas está conservada nos mitos. Reactualizando a história sagrada, imitando o comportamento divino — o homem instala-se e mantém-se junto dos Deuses, quer dizer no real e no significativo.

É fácil ver tudo o que separa este modo de ser no mundo, da existência de um homem a-religioso. Há, antes de tudo, este facto: o homem a-religioso recusa a trans­cendência, aceita a relatividade da «realidade» e acontece-lhe até duvidar do sentido da existência. As outras grandes culturas do passado conheceram, elas também, homens a-religiosos e não é impossível que tais homens tenham existido mesmo a níveis arcaicos de cultura, bem que os documentos não os tenham atestado ainda. Mas é somente nas sociedades europeias modernas que o homem a-religioso se desen­volveu plenamente. 0 homem moderno a-religioso assume uma nova situação exis­tencial: reconhece-se unicamente sujeito agente da História, e recusa todo apelo à transcendência. Dito por outras palavras, não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana, tal qual ela se deixa decifrar nas diversas situações históricas. 0 homem faz-se a si próprio, e não consegue fazer-se completamente senão na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. 0 sagrado é o obstáculo por excelência diante da sua liberdade. 0 homem só se tornará ele próprio no momento em que estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre no momento em que tiver matado o último Deus. (...)

Mas este homem a-religioso descende do Homo religiosus, e queira-o ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas pelos seus ante­passados. Em suma, é o resultado de um processo de desacralização. Assim como a «Natureza» é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos obra de Deus, assim o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana.

Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constituiu por oposição ao seu prede- cessor, esforçando-se por se «esvaziar» de toda a religiosidade e de toda significação trans-humana. Ele reconhece-se a si próprio na medida em que se «liberta» e se «puri­fica» das «superstições» dos seus antepassados. Por outras palavras, o homem profano, queira-o ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziados das significações religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não pode abolir definitivamente o seu passado, porque ele próprio é o produto deste passado. Constitui-se por uma série de negações e de recusas, mas continua ainda a ser asse­diado pelas realidades que recusou e negou. (...)

Porque, como já dissemos, o homem a-religioso no estado puro é um fenômeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. A maioria dos «sem religião» ainda se comporta religiosamente, se bem que não esteja consciente deste facto. Não se trata somente da massa das «superstições» ou dos «tabus» do homem moderno, que têm todos uma estrutura e uma origem mágico-religiosas. Mas o homem moderno, que se sente e se pretende a-religioso, dispõe ainda da toda uma mitologia camuflada e de numerosos ritualismos degradados. Conforme mencionámos, os fes­tejos que acompanham o Ano Novo ou a instalação numa casa nova apresentam, se bem que laicizada, a estrutura de um ritual de renovação. Constata-se o mesmo fenômeno por ocasião das festas e das alegrias que acompanham um casamento ou o nascimento de uma criança, ou a obtenção de um novo emprego ou de uma subida na escala social, etc.

Teríamos de escrever toda uma obra sobre os mitos do homem moderno, sobre as mitologias camufladas nos espectáculos que ele prefere, nos livros que lê. O cinema, esta «fábrica de sonhos», retoma e utiliza inúmeros motivos míticos: a luta entre o Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as Figuras e as Imagens exemplares («a Rapariga», o «Herói», paisagem paradisíaca, o «Inferno», etc.). Até a leitura com­porta uma função mitológica — não somente porque ela substitui a narração dos mitos nas sociedades arcaicas e a literatura oral, viva ainda nas comunidades rurais da Europa, mas sobretudo porque, graças à leitura, o homem moderno consegue obter uma «saída do Tempo» comparável à efectuada pelos mitos. Quer se «mate» o tempo com um romance policial, ou se penetre num universo temporal alheio, aquele que qualquer romance representa, a leitura projecta o moderno fora do seu tempo pessoal e integra-o noutros ritmos, fá-lo viver numa outra «história».

A grande maioria dos «sem religião» não está propriamente falando liberta dos comportamentos religiosos, das teologias e das mitologias. Estão por vezes atulhados de todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até à caricatura, e por esta razão dificilmente reconhecível. 0 processus da dessacralização da existência humana chegou muitas vezes a formas híbridas de baixa magia e de religiosidade simiesca. Não nos referimos às inúmeras «pequenas religiões» que pululam em todas as cidades modernas, às igrejas, às seitas e às escolas pseudo-ocultas, neo-espiritualistas ou inti­tuladas herméticas — porque todos estes fenômenos ainda pertencem à esfera da religiosidade, ainda que se trate quase sempre de aspectos aberrantes de pseudo- morfose. Também não fazemos alusão aos diversos movimentos políticos e profe- tismos sociais, cuja estrutura mitológica e o fanatismo religioso são facilmente discer- níveis. Bastará, para dar um só exemplo, lembrarmos a estrutura mitológica do comunismo e o seu sentido escatológico. Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escato- lógicos do mundo asiático-mediterrânico, a saber: o papel redentor do Justo (o «eleito»,

 

o «ungido», o «inocente», o «mensageiro»; nos nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a conseqüente desaparição das tensões históricas, encontram o seu precedente mais exacto no mito da Idade de Ouro que, segundo múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História.

(...) Mas não é unicamente nas «pequenas religiões» ou nas místicas políticas que se reencontram comportamentos religiosos camuflados ou degenerados:, reconhe­cemo-los igualmente em movimentos que se proclamam francamente laicos, até mesmo anti-religiosos. Assim, por exemplo, no nudismo ou nos movimentos a favor da liberdade sexual absoluta, ideologias onde é possível decifrar os vestígios da «nostalgia do Paraíso», o desejo de reintegrar o estado edênico de antes da queda, quando o pecado não existia e não havia rotura entre as beatitudes da carne e a consciência.

Além disso, é interessante constatar quantas encenações iniciáticas persistem ainda em numerosas acções e gestos do homem a-religioso dos nossos dias. (...)

Em suma, a maioria dos homens «sem religião» partilha ainda das pseudo-religiões e mitologias degradadas. O que em nada nos deve espantar, porque, como vimos, o homem profano é o descendente do Homo re/igiosus e não pode anular a sua própria história, quer dizer, os comportamentos dos seus antepassados religiosos, que o cons­tituíram tal qual ele é hoje. E tanto mais, que uma grande parte da sua existência é ali­mentada por pulsões que lhe chegam do mais profundo do seu ser, desta zona que se chamou o inconsciente. Um homem unicamente racional é uma abstracção; jamais o encontramos na realidade. Todo ser humano é constituído ao mesmo tempo pela sua actividade consciente e pelas suas experiências irracionais. Ora, os conteúdos e as estruturas do inconsciente apresentam similitudes surpreendentes com as imagens e as figuras mitológicas. Não queremos dizer que as mitologias sejam o «produto» do inconsciente; porque o modo de ser do mito é justamente que ele se revela como mito, quer dizer que ele proclama que qualquer coisa se manifestou de uma maneira exemplar. (...)

Todavia, os conteúdos e as estruturas do inconsciente são o resultado das situa­ções existenciais imemoriais, sobretudo das situações críticas, e é por essa razão que o inconsciente apresenta uma aura religiosa. Porque toda a crise existencial põe de novo em questão ao mesmo tempo a realidade do mundo e a presença do homem no mundo: isto quer dizer que a crise existencial é, em suma, «religiosa», visto que, aos níveis arcaicos de culturas, o ser confunde-se com o sagrado. (...)

De um certo ponto de vista, quase poderia dizer-se que, entre aqueles modernos que se proclamam a-religiosos, a religião e a mitologia estão «ocultas» nas trevas do seu inconsciente — o que quer dizer também que as possibilidades de reintegrar uma experiência religiosa da vida fazem, em tais seres, muito profundamente neles próprios.

ROGER CA/LLOIS [1]

O HOMEM E; O SAGRADO

Qualquer concepção religiosa do mundo implica a distinção do sagrado e do pro­fano, opõe ao mundo em que o fiel se entrega livremente às suas ocupações, exerce uma actividade sem conseqüências para a sua salvação um domínio onde o temor e a esperança o paralisam alternadamente, onde, como à beira de um precipício, o mínimo desvio no mínimo gesto pode perdê-lo irremediavelmente. Com toda a cer­teza, tal distinção nem sempre basta para definir o fenômeno religioso, mas pelo menos fornece a pedra-de-toque que permite reconhecê-lo com a maior segurança. De facto, seja qual for a definição que se proponha da religião, é notável que ela envolva esta oposição do sagrado e do profano, quando não coincide pura e simples­mente com a mesma oposição. A maior ou menor prazo, através de medições lógicas ou de verificações directas, todos nós somos levados a admitir que o homem religioso é antes de mais aquele para quem existem dois meios complementares: um onde ele pode agir sem angústia nem tremor, mas onde a sua acção não compromete senão a sua pessoa superficial, outro onde um sentimento de dependência íntima retém, contém e dirige cada um dos seus impulsos e onde ele se vê empenhado sem reserva. Estes dois mundos, o do sagrado e o do profano, apenas se definem rigorosamente um pelo outro. Excluem-se e supõem-se. (...)

O sagrado aparece (...) como uma categoria da sensibilidade. Na verdade, é a categoria sobre a qual assenta a atitude religiosa, aquela que lhe dá o seu carácter espe­cífico, aquela que impõe ao fiel um sentimento de respeito particular, que presume a sua fé contra o espirito de exame, a subtrai à discussão, a coloca fora e para além da razão.

«É a ideia-mãe da religião», escreve H. Hubert. «Os mitos e os dogmas analisam- -Ihe o conteúdo a seu modo, os ritos utilizam-lhe as propriedades, a moralidade reli­giosa deriva dela, os sacerdócios incorporam-na, os santuários, lugares sagrados e monumentos religiosos fixam-na ao solo e enraízam-na. A religião é a administração do sagrado.»

É impossível acentuar com mais força até que ponto a experiência do sagrado vivifica o conjunto das diversas manifestações da vida religiosa. Esta apresenta-se como a soma das relações do homem com o sagrado. As crenças expõem-nas e garantem-nas. Os ritos são os meios que as asseguram na prática. (...)

O sagrado pertence como uma propriedade estável ou efêmera a certas coisas (os instrumentos do culto), a certos seres (o rei, o padre), a certos espaços (o templo, a igreja, cs lugares régios), a certos tempos (o domingo, o dia de Páscoa, o Natal, etc.).

 

 

 



[1] Roger Caillois, UHomme et !e Sacré, Gallimard, 1950.