Voz
político-moral global
por ANSELMO BORGES
DN 08AGO2015 e DN 15AGO2015
"A descrição do Papa como um
super-homem, como uma estrela, é ofensiva para mim. O Papa é um homem que ri,
chora, dorme tranquilamente, e tem amigos, como as outras pessoas." Quem
isto diz é o Papa Francisco, dessacralizando o papado, citado por R. Draper num
artigo na National Geographic deste mês, com o título provocador:
"O Papa vai mudar o Vaticano? Ou o Vaticano vai mudar o Papa?" À
partida, digo que estou convicto de que é o Papa que vai mudar o Vaticano.
Seria péssimo para a Igreja e para o mundo se fosse ao contrário. Ele sabe que
ninguém é perfeito: "Existimos apenas nós, pecadores." Mas também
sabe que "Deus não tem medo de coisas novas! É por isso que nos surpreende
continuamente, abrindo-nos o coração e guiando-nos por caminhos
inesperados."
Logo a seguir à eleição, disse a alguns amigos: "Preciso de começar a
fazer mudanças imediatamente." E o que é facto é que elas estão aí.
Concretamente, para a reforma urgente da Cúria, rodeou-se de nove cardeais de
todo o mundo. Para a pedofilia, tolerância zero. As finanças do Vaticano devem
ser presididas pela transparência. A sua simplicidade é por todos enaltecida. A
sua bondade, inexcedível. Os seus gestos - o automóvel utilitário, o sorriso
franco, os abraços ternos, os seus inesperados telefonemas a este e àquela, a
visita a prisões e lavar os pés a mulheres, incluindo uma muçulmana, fornecer
duche, barbeiro e um kit de higiene aos sem-abrigo, a nomeação da
maioria de cardeais de fora da Europa, visitas certeiras ao estrangeiro, a
anteposição da graça e da misericórdia à lei e à doutrina - querem que se torne
claro que o centro da Igreja é o ser humano, sempre frágil e necessitado de
compreensão e ternura, e o Evangelho enquanto notícia boa e felicitante.
E outras reformas podem estar a caminho. Evidentemente, não mudará o essencial
da doutrina. "Irá, isso sim", diz o padre franciscano, seu amigo
argentino, R. de la Serna, "reconduzir a Igreja à sua verdadeira doutrina,
a que ficou esquecida, a que repõe o ser humano no centro. Ao devolver a
posição central ao ser humano que sofre, bem como à sua relação com Deus, as
atitudes de aspereza face à homossexualidade, ao divórcio e outros temas assim
começarão a mudar". Quanto ao fim da proibição da comunhão aos católicos
divorciados e recasados, Juan Carlos Scannone, o amigo jesuíta, seu antigo
professor, refere: "Ele disse-me: "Quero ouvir toda a gente."
Ele vai esperar pelo Sínodo de Outubro e vai ouvir toda a gente, mas está definitivamente
aberto a uma mudança." O pastor e professor universitário N. Saracco falou
com Francisco sobre a lei do celibato obrigatório dos padres. "Se ele
conseguir sobreviver às pressões da Igreja hoje e aos resultados do Sínodo
sobre a família, acho que estará em condições para falar sobre o
celibato", afirma. Perguntado pelo jornalista se se trata apenas de uma
intuição, Saracco tem "um sorriso maroto" e diz: "É mais do que
intuição."
Já como estudante, Francisco revelou, nas palavras de Scannone, um "elevado
discernimento espiritual e capacidade política". Agora, quer operar uma
revolução na Igreja, sabendo ao mesmo tempo que tem responsabilidades mundiais,
e, de facto, tornou-se uma voz político-moral global. Hoje e no próximo Sábado,
darei exemplos significativos dessa influência mundial.
1. Fez questão de a sua primeira visita ser a Lampedusa. E aí ficou um apelo
dramático, repetido no Parlamento Europeu: o Mediterrâneo não pode converter-se
num "cemitério", com tragédias que se sucedem quase diariamente.
Neste momento, o medo maior dos europeus tem a ver com as migrações. Para lá da
condenação da insensatez das guerras no Iraque e na Líbia e do apelo ao
humanismo e à solidariedade, pergunta essencial é se a Europa não tem obrigação
de contribuir urgentemente para o desenvolvimento da África, estancando a
tragédia na sua raiz. Mas, por outro lado, também se pergunta se os africanos
não têm de ouvir os apelos que nomeadamente Obama lhes deixou na sua recente
visita ao seu continente. Denunciou "o cancro da corrupção", com
desvios de milhares de milhões de dólares, que deviam ser usados para o
desenvolvimento dos povos. Apelou à democracia e ao fim de conflitos violentos
intermináveis. "Ninguém devia ser presidente para a vida": "Não
percebo porque é que as pessoas querem ficar tanto tempo no poder,
especialmente quando têm muito dinheiro." Atirou contra a homofobia e a
opressão da mulher: "África são as belas e talentosas filhas, tão capazes
como os filhos de África."
2. Neste contexto, Francisco conhece o poder de Putin e quer boas relações.
Aliás, um dos seus sonhos é visitar Moscovo. O seu "ministro" dos
Negócios Estrangeiros, arcebispo R. Gallagher, declarou há dias: "A
Federação Russa pode ter um papel na estabilização do Mediterrâneo, igual ao
que teve na obtenção de um acordo sobre o programa nuclear iraniano."
O Papa Francisco tem consigo a missão decisiva de pôr ordem e renovar a Igreja.
Mas sobre ele pesam igualmente responsabilidades históricas para com a
humanidade toda, e também aqui o seu desempenho tem despertado, como disse Raúl
Castro, "admiração mundial". Aliás, ele é um grande diplomata,
afirmando o embaixador britânico junto da Santa Sé, Nagel Baker: "Nunca
tivemos tanto trabalho. Todos os governos nos pedem continuamente in-formações
sobre os movimentos do Papa Francisco."
Na continuação do texto de Sábado passado, apresento outros sinais da sua
influência global.
3. Se um desejo maior de Francisco é visitar Moscovo, outro é ir a Pequim. O
presidente Xi Jinping e Francisco trocaram mensagens de cortesia nas suas
respectivas eleições em 2013 e a Igreja chinesa ordenou nos princípios deste
mês o primeiro bispo fiel a Roma nos últimos três anos e ordenará em breve o
segundo com a aprovação de Francisco. Sinais de abertura do governo chinês, que
trabalha com o Vaticano para restabelecer relações diplomáticas. Hoje, com uns
12 milhões de católicos e mais de 70 milhões de cristãos, a China poderá ser em
2030 o país do mundo com maior número de cristãos, estando Francisco convencido
de que o futuro do cristianismo se joga em grande parte na Ásia.
4. Na Europa, que países visitou Francisco? Significativamente três, de maioria
muçulmana: Albânia, Bósnia e Turquia, com razoável convivência inter-religiosa.
Francisco sabe que um problema maior no mundo e na Europa é e será a relação
entre cristãos e muçulmanos. As duas religiões juntas são metade da humanidade,
o que significa que a paz entre elas tem importância decisiva para o futuro.
Mas Francisco não se cansa de apelar à comunidade internacional para não
abandonar as minorias cristãs e outras, perseguidas e esmagadas no Médio
Oriente. O seu secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, lembrou mesmo, na
ONU, que, para deter as agressões terroristas, "é lícito e urgente" o
recurso "à acção multilateral e a um uso proporcionado da força".
Neste contexto, o vaticanista Sandro Magister sublinha a importância do acordo
entre a Santa Sé e o Estado da Palestina, assinado em 26 de Junho no Vaticano.
A novidade não estaria tanto na fórmula "Estado da Palestina", mas
sobretudo no reconhecimento explícito da liberdade de religião e de
consciência, bem como da liberdade da Igreja não só nos lugares de culto mas
também nas actividades caritativas e sociais, no ensino, nos meios de
comunicação social. "Trata-se de um reconhecimento sem precedentes por
parte de um país muçulmano e poderia abrir o caminho para algo semelhante
noutros países. Não é mero acaso o cardeal Parolin ter viajado recentemente até
Abu Dhabi para inaugurar uma nova igreja com as mais altas autoridades dos
Emiratos Árabes Unidos: uma mensagem eloquente para a vizinha Arábia Saudita,
onde a simples posse de uma Bíblia continua a ser um delito gravíssimo" e
a conversão a outra religião, sujeita à pena capital.
5. A encíclica Laudato si" ficará na história como a Magna Carta da
ecologia integral, afirmando o teólogo X. Pikaza que "talvez não haja um
documento da Igreja Católica que vá ter mais influência que esta
encíclica".
Francisco acaba de designar o dia 1 de Setembro como Dia Mundial de Oração pelo
Cuidado da Criação. A encíclica foi louvada pelo secretário-geral da ONU, a FAO
declarou que "nunca um papa falou tão directamente sobre o meio ambiente e
com tanta credibilidade moral". Obama, que acaba de tomar medidas
ecológicas históricas, citou o Papa, assegurando que a luta contra as mudanças
climáticas "é uma obrigação moral". Neste contexto, a quatro meses da
conferência sobre o clima que reunirá em Paris, em Dezembro, sob a égide da
ONU, os seus 195 membros, na qual Francisco deposita grande esperança, François
Hollande, num encontro em Paris de 40 personalidades políticas, religiosas e
morais do mundo inteiro, declarou que é preciso chegar a acordo: "Não é
uma questão de chefes de Estado ou de governo, mas de todos os habitantes do
planeta." Prémios Nobel, reunidos em Constança, Alemanha, advertiram para
as mudanças climáticas: se nada for feito, caminhamos para "uma ampla
tragédia humana".
6. Por causa das suas posições a favor dos pobres e contra um sistema económico
e financeiro que mata, conservadores americanos há que acusam Francisco de
esquerdista, com concepções marxistas. O que ele não é. Neste contexto, The
Washington Post, 1 de Agosto, escreveu que "não se pode entender o Papa
sem Perón e Evita". Influenciado pelo peronismo na juventude, Francisco
rejeita tanto o marxismo como o capitalismo selvagem, sem regras. O jornal cita
o jesuíta Juan C. Scannone, seu antigo professor: é a favor de uma
"teologia do povo", "não critica a economia de mercado, mas a
fetichização do dinheiro e do livre mercado. Uma coisa é a economia de mercado
e outra a hegemonia do capital sobre o povo".
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo
Ortográfico
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