Frei Bento Domingues:
a escrita e Jesus, Portugal e o mundo, a missa e o livro da vida
“Não
gosto de escrever. Se pudesse, era todo o tempo a ler. Gosto também de discutir
o que leio com outros e gosto do debate”, diz frei Bento Domingues, numa
entrevista a Manuel Vilas Boas, na TSF, onde passa em revista algumas das ideias das duas
antologias de crónicas do Público, editadas nos últimos meses: Um Mundo Que Falta Fazer e A Insurreição de Jesus.
Na
Antena 1, na véspera da sessão de dia 19 na Gulbenkian, Duarte Belo entrevistou
também o teólogo dominicano. Sobre o título do último volume de antologia, diz
frei Bento: “A insurreição de Jesus não é a organização de um movimento bélico
(...) o que ele queria era mudar a mente das pessoas, o evangelho é isso. O que
ele pregava era a alegria, porque mudamos de vida, mudamos de orientação de v
ida, mudamos para ver o mundo a partir dos excluídos; nesse aspecto, estou
muito agradecido a Deus por nos ter facultado a possibilidade de um
papa como o Papa Francisco...” (a entrevista pode ser escutada aqui na íntegra)
Também
antes do encontro na Gulbenkian, Bento Domingues foi entrevistado por Luís
Caetano no programa A Ronda da Noite, da Antena 2, durante dois
dias. “Eu não queria uma missa para crianças, [outra para] adolescentes ou
adultos. A eucaristia é celebração da família dos filhos de Deus (...) fazemos
uma festa, que seja o momento em que se transforma a vida subvertemos as
desgraças da nossa semana”, dizia ele, dia 17.
Na
segunda noite, acrescentava: “Devemos evangelizar tanto a nossa sensibilidade,
como a nossa imaginação, como a nossa inteligência, os nossos afectos, as
nossas relações (...) Jesus morreu com as pessoas todas no seu
coração, com os seus próprios inimigos, é isso que temos que viver e morrer:
para uma vida nova, para dizer que o mundo não tem de ser de amigos e
inimigos...
(o
programa pode ser escutado aqui)
Na Grande Entrevista da RTPI, dia 24 de Setembro, com Vítor Gonçalves, frei Bento
falou muito dos seus hábitos pessoais de leitura e escrita, bem como da
situação económica do país, distinguindo entre a pobreza como opção, que “dá
uma liberdade enorme”, e a “pobreza imposta” que torna muitas pessoas em
“miseráveis” e falando sobre o livro da sua vida – a Summa Theologica, de São Tomás de Aquino: “Ele escreveu aquilo porque achava
que havia uma variedade enorme de questões disputadas; e, em vez de
declarações, começa sempre por interrogações.”
As entrevistas antes referidas da Sábado e da Visão passaram
entretanto a estar disponíveis na internet. Na Sábado, Rita Garcia perguntava a
frei Bento: Tem esperança de que este Papa torne Jesus um apetite? “Já fez
isso. Não impõe nada, mas compreende as pessoas. A única coisa de que gostamos
é de ser amados. Quem acredita em Deus, sabe que está no coração d’Ele e
ninguém o arranca de lá. É isso que os cristãos têm de testemunhar.”
(para
ler a entrevista na íntegra é necessário ir clicando
sucessivamente nas diferentes fotos)
Na Visão, Sara Belo Luís perguntava:
- Essa
necessidade de ver o mundo a partir dos que mais precisam é cada vez mais
atual?
-
Sempre foi. O poder sempre foi dos ricos, dos poderosos, dos impérios. Vale-nos
a cintilação daqueles que, tanto no paganismo como no cristianismo, dizem
"mas". Como quando, na descoberta do Mundo Novo, dos chamados países
da América Latina, uma pequena comunidade de dominicanos escreveu um texto a
denunciar o que estava a acontecer aos índios, em nome da exploração do ouro.
Estes é que são os momentos evangélicos. Aqui é que reconhecemos que somos
irmãos e filhos de Deus. Organizem a economia como quiserem, organizem as
finanças como quiserem, organizem os hospitais como quiserem, mas não o façam
segundo o princípio da exclusão.
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Frei Bento Domingues: "Que
mundo é este que queremos fazer?"
O Frade dominicano conta em entrevista à VISÃO que nunca se cansa de
pregar:?"A única coisa que me importa é a insurreição"
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Se
a qualidade de uma entrevista se medisse pelas perguntas do jornalista, esta
seria uma entrevista falhada. Da meia dúzia de questões que a VISÃO levava
preparadas, duas, três no máximo, foram concretizadas. Frei Bento Domingues,
frade dominicano, heterodoxo, espírito livre, 80 anos completados em agosto
último, fala sobre tudo e interpela-se a si próprio. No momento em que a
Temas e Debates publica mais um volume das suas crónicas dominicais no jornal
Público (A Insurreição de Jesus, 512 págs., €19,90), a obra de frei Bento
Domingues também é debatida na Fundação Gulbenkian (ver Homenagem na
Gulbenkian). E ele, apesar de não ser vaidoso, vai lá estar. Não é de
clausuras.
Sabe quem são os seus leitores?
Tenho uma ideia porque, de vez em quando,
vou tendo alguns ecos. Há uma franja de gente que se diz católica não
praticante, que se sente afastada, pessoas que sempre viram o fenómeno
religioso de uma forma crítica, pessoas que, antes do 25 de Abril,
trabalharam comigo na resistência ao antigo regime e, depois, também, pessoas
que não têm nada a ver com a Igreja e que são até bastante anticlericais.
Os anticlericais são os desagradáveis...
Não, não são nada desagradáveis. E têm
muitas razões para serem anticlericais.
Acha que os seus textos alguma vez
contribuíram para a conversão de alguém?
A conversão é, na minha maneira de ver, o
fruto da graça de Deus e do facto de as pessoas se deixarem abalar por essa
graça.
E alguma vez ajudou alguém a reaproximar-se
da fé?
Muita gente me diz isso. Mas essa questão
prende-se com a história do século XX português. Durante a I República, houve
disputas entre franciscanos e jesuítas, por causa da liberdade de voto no
Partido Nacionalista, e instituiu-se, pela primeira vez em Portugal, uma
espécie de laicidade lúcida que divide a prática social e política da sua
expressão religiosa.
Que o Estado Novo tratou de contrariar.
Isso é muito importante para entender as
dificuldades do catolicismo hoje. Os católicos, os próprios monárquicos
católicos e os bispos achavam que Salazar era produto da providência divina.
E mesmo que não estivessem totalmente de acordo, aderiram ao regime que deu
espaço de liberdade à Igreja. Entretanto, todas as vozes católicas
dissonantes (como a do padre Joaquim Alves Ferreira, que publicou o livro A Largueza
do Reino de Deus, que, no fundo, era sobre a estreiteza da mentalidade
católica oficial, ou a do padre Abel Varzim, responsável pela divulgação do
pensamento católico no mundo operário) foram sendo afastadas. Nas eleições de
1958, perante o apoio de alguns católicos a Humberto Delgado e a célebre
carta de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, o episcopado preferiu
continuar com Salazar.
E o que é que, em seu entender, isso ajuda a explicar?
Por um lado, há uma confusão entre o apoio
a Salazar e o ser católico. Por outro lado, quando veio o 25 de Abril e os
católicos, que tinham resistido ao regime, começaram a entrar na política,
comete-se um erro: os católicos têm a dimensão da intervenção e a dimensão
espiritual e teológica. Não defendo o partido confessional, sou absolutamente
contra, militei, durante muitos anos, contra isso. Mas não faz sentido que os
católicos que entraram na política não tenham tido uma instância que
alimentasse a sua fé. A política comeu tudo. Além disso, também houve problemas
internos, na Igreja, que têm, por exemplo, a ver com o facto de o Papa Paulo
VI, na encíclica Humanae Vitae, ter feito referência aos métodos
contracetivos.
Isso afastou as pessoas?
Para muitos jovens, para muitos casais, foi
um verdadeiro balde de água fria. A partir daí, muitos católicos passaram a
viver constrangidos, em duplo registo, outros afastaram-se. É como este
problema de agora - aos divorciados que voltaram a casar-se é-lhes negado o
acesso à eucaristia de uma forma, julgo, muito bárbara...
Não podem comungar...
A simbólica da missa é a simbólica da
refeição. E, no fundo, estamos a dizer-lhes: vêm à refeição, mas não comem. O
que acontece é que, depois, faz-se o catolicismo em autogestão ou à la carte,
há um assunto com o qual estou de acordo, alinho, mas há outro assunto com o
qual estou em desacordo, não alinho. Neste momento, assistimos a um alívio
hesitante, pois as atitudes do atual Papa dão-nos outra respiração. O seu
texto A Alegria do Evangelho grita esperança.
O mundo estava a precisar de um Papa
popular?
Não é só de um Papa popular, é de alguém
que veja o mundo a partir dos excluídos e, sobretudo, que não tenha uma
atitude de exclusão. Além disso, o Papa Francisco também não está zangado com
o mundo, respira alegria, tem vontade de unir as pessoas. ?E, mesmo assim,
ainda é capaz de falar, como ainda agora falou, sobre a necessidade de fazer
frente a esta onda de violência em nome de Deus, essas jihads todas.
Essa necessidade de ver o mundo a partir
dos que mais precisam é cada vez mais atual?
Sempre foi. O poder sempre foi dos ricos,
dos poderosos, dos impérios. Vale-nos a cintilação daqueles que, tanto no
paganismo como no cristianismo, dizem "mas". Como quando, na
descoberta do Mundo Novo, dos chamados países da América Latina, uma pequena
comunidade de dominicanos escreveu um texto a denunciar o que estava a
acontecer aos índios, em nome da exploração do ouro. Estes é que são os
momentos evangélicos. Aqui é que reconhecemos que somos irmãos e filhos de
Deus. Organizem a economia como quiserem, organizem as finanças como
quiserem, organizem os hospitais como quiserem, mas não o façam segundo o
princípio da exclusão.
Em alguns momentos da história, a Igreja
Católica também excluiu...
Claro que sim. Dou um exemplo muito
simples: entra-se numa igreja, numa missa de domingo e alguém fala para
aquelas pessoas que não podem abrir a boca. O Papa Francisco já disse aos
outros bispos e aos padres para não aborrecerem as pessoas, que mesmo na
ordem moral há uma hierarquia de verdades, há umas coisas mais importantes
que outras... E há uma certa forma de fazer que leva a que, depois, as
pessoas digam "isto não resolve nada". As pessoas vão à eucaristia
para receberem iluminação para a semana, para se fortalecerem, para se
encontrarem umas com as outras, para ?participarem nesta coisa de ir mudando
a nossa vida... Apesar de ser minhoto, eu gosto muito da filosofia
alentejana...
Gosta de "ir sendo", como costuma
dizer.
É isso, até porque esta coisa de realizar a
nossa vida é um processo complicado. ?O "normalzinho" é um bocado
cinzento e, depois, há o sofrimento e todo esse mundo de violência com o qual
é muito difícil lidarmos. Gosto muito de uma devoção que existe perto de
Lamego, a Nossa Senhora do Alívio, pois penso que estamos no mundo para
aliviar a dor dos outros. Além disso, também compete à Igreja ajudar as
pessoas a regozijarem-se com a alegria, a reconhecerem aquilo em que se
sentem felizes. E não andar a culpabilizá-las por razões de ordem sexual, por
trapalhadas...
A não ser moralista?
Isso. E é a partir desta dupla atitude que
a Igreja deve evangelizar. Formar os políticos, os financeiros e os
investigadores de maneira a que estes se perguntem: estou a trabalhar na
banca, mas, então, para que é que serve a banca? Estou a trabalhar numa
empresa, quem é que serve esta empresa? As pessoas não só não se interrogam
como são deterministas. Ora, a mensagem do Evangelho é antifatal, não temos
que nos resignar com o mundo em que vivemos. E que mundo é este que queremos
fazer? Nas minhas crónicas, a única coisa que me importa é esta insurreição:
este mundo está mal construído e podia ser de outra maneira.
Nunca se cansa de pregar?
Não. Primeiro, nunca prego sozinho. E na
celebração, ao domingo, é a miudagem que ocupa o altar.
E quando sente indiferença na audiência,
não lhe apetece, digamos, ir pregar para outra freguesia?
Descobri o sentido da minha vida numa
pregação de um padre brasileiro, amigo de meu tio. Eu vivia na religião do
terror e, de repente, por causa dele, encontrei alegria na relação com Deus.
Quando ele me perguntou o que é que eu queria ser quando fosse grande, a
única resposta que veio de dentro foi: "Quero ser como você." Era
um miúdo e, até hoje, acho que essa foi a coisa mais verdadeira que disse em
toda a minha vida.
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Refletir
o sagrado e descobrir o profano
No
Jornal de Letras, Leonor Xavier publica um texto sobre Bento Domingues, com o
título Refletir
o sagrado e descobrir o profano:
Frei
Bento Domingues, O.P. é frade dominicano na ordem dos pregadores. Nascido em
Terras do Bouro, no mais remoto Portugal, desde criança foi pastor e às ovelhas
leu trechos em latim de um livro que teve, emprestado. “E elas gostavam”,
costuma contar. Na serra ouvia o eco da sua voz e seguia os ritmos da natureza,
pela intuição dos cinco sentidos que até hoje, tem abertos e alerta. Muito cedo
descobriu a sua vocação, e na certeza da revelação e da fé se formou e ordenou
dominicano, fazendo da proclamação do Evangelho, na liberdade de expressão e na
caritas/amor absoluto a obra da sua vida. Agora que festejamos os seus 80
anos em homenagem e lançamento de dois volumes de antologia das mais de
mil crónicas publicadas no Público, é também celebrada a sua tão singular
figura. Homem do campo e hoje andarilho na cidade, Frei Bento tem a malícia do
dia a dia, a inteligência na adaptação às circunstância, o humor, o sentido
crítico, a compaixão, a tolerância. Ele conhece os caminhos e os atalhos, usa
os transportes públicos, evolui com facilidade pelos mais variados ambientes,
de olhar sempre vivo e atento. Falando, escrevendo, investigando, debatendo,
comunicando, Frei Bento Domingues não se esgota nunca. Disponível para os
sacramentos do nascimento, do crescimento e da morte, celebrando a Eucaristia,
pregando sobre as parábolas ou os profetas, em conversa casual de amigos ou
circunstâncias gerais, ele discute as questões da atualidade, convive com crentes
e não crentes e acredita na liberdade da democracia e no direito à opinião. É
teólogo estudioso do Antigo e do Novo Testamento, de textos apócrifos,
conhecedor das várias religiões e das doutrinas dos doutores da Igreja, das
vivências dos grandes místicos. É leitor de pensadores e filósofos, de autores
universais e contemporâneos, de poesia. Acompanhar os textos de Frei Bento
Domingues é refletir sobre o sagrado e descobrir o profano. É entender que
Jesus Cristo é centro absoluto da presença de Deus no seu testemunho, na sua
obra, na sua vida. É descobrir a sua devoção a Nossa Senhora. Na missa de
domingo de Cristo Rei, em 2010, anotei um fragmento da homilia de Frei Bento,
quando citou Teillard de Chardin: “A criação está sempre a acontecer, toda a história
está sempre a ser.”- para acrescentar que “Na nossa ação de construção do mundo
há um clandestino, que é Jesus.” Penso que assim tudo se explica.
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