terça-feira, 30 de setembro de 2014

Frei Bento Domingues: a escrita e Jesus, Portugal e o mundo, a missa e o livro da vida


Frei Bento Domingues: a escrita e Jesus, Portugal e o mundo, a missa e o livro da vida


 
“Não gosto de escrever. Se pudesse, era todo o tempo a ler. Gosto também de discutir o que leio com outros e gosto do debate”, diz frei Bento Domingues, numa entrevista a Manuel Vilas Boas, na TSF, onde passa em revista algumas das ideias das duas antologias de crónicas do Público, editadas nos últimos meses: Um Mundo Que Falta Fazer A Insurreição de Jesus.

 

Na Antena 1, na véspera da sessão de dia 19 na Gulbenkian, Duarte Belo entrevistou também o teólogo dominicano. Sobre o título do último volume de antologia, diz frei Bento: “A insurreição de Jesus não é a organização de um movimento bélico (...) o que ele queria era mudar a mente das pessoas, o evangelho é isso. O que ele pregava era a alegria, porque mudamos de vida, mudamos de orientação de v ida, mudamos para ver o mundo a partir dos excluídos; nesse aspecto, estou muito agradecido a Deus  por nos ter facultado a possibilidade de um papa como o Papa Francisco...” (a entrevista pode ser escutada aqui na íntegra)

 

Também antes do encontro na Gulbenkian, Bento Domingues foi entrevistado por Luís Caetano no programa A Ronda da Noite, da Antena 2, durante dois dias. “Eu não queria uma missa para crianças, [outra para] adolescentes ou adultos. A eucaristia é celebração da família dos filhos de Deus (...) fazemos uma festa, que seja o momento em que se transforma a vida subvertemos as desgraças da nossa semana”, dizia ele, dia 17

Na segunda noite, acrescentava: “Devemos evangelizar tanto a nossa sensibilidade, como a nossa imaginação, como a nossa inteligência, os nossos afectos, as nossas  relações (...) Jesus morreu com as pessoas todas no seu coração, com os seus próprios inimigos, é isso que temos que viver e morrer: para uma vida nova, para dizer que o mundo não tem de ser de amigos e inimigos...

(o programa pode ser escutado aqui)

 

Na Grande Entrevista da RTPI, dia 24 de Setembro, com Vítor Gonçalves, frei Bento falou muito dos seus hábitos pessoais de leitura e escrita, bem como da situação económica do país, distinguindo entre a pobreza como opção, que “dá uma liberdade enorme”, e a “pobreza imposta” que torna muitas pessoas em “miseráveis” e falando sobre o livro da sua vida – a Summa Theologica, de São Tomás de Aquino: “Ele escreveu aquilo porque achava que havia uma variedade enorme de questões disputadas; e, em vez de declarações, começa sempre por interrogações.”

As entrevistas antes referidas da Sábado e da Visão passaram entretanto a estar disponíveis na internet. Na Sábado, Rita Garcia perguntava a frei Bento: Tem esperança de que este Papa torne Jesus um apetite? “Já fez isso. Não impõe nada, mas compreende as pessoas. A única coisa de que gostamos é de ser amados. Quem acredita em Deus, sabe que está no coração d’Ele e ninguém o arranca de lá. É isso que os cristãos têm de testemunhar.”

(para ler a entrevista na íntegra é necessário ir clicando sucessivamente nas diferentes fotos)

 

Na Visão, Sara Belo Luís perguntava:

- Essa necessidade de ver o mundo a partir dos que mais precisam é cada vez mais atual?

 

- Sempre foi. O poder sempre foi dos ricos, dos poderosos, dos impérios. Vale-nos a cintilação daqueles que, tanto no paganismo como no cristianismo, dizem "mas". Como quando, na descoberta do Mundo Novo, dos chamados países da América Latina, uma pequena comunidade de dominicanos escreveu um texto a denunciar o que estava a acontecer aos índios, em nome da exploração do ouro. Estes é que são os momentos evangélicos. Aqui é que reconhecemos que somos irmãos e filhos de Deus. Organizem a economia como quiserem, organizem as finanças como quiserem, organizem os hospitais como quiserem, mas não o façam segundo o princípio da exclusão.

 

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Frei Bento Domingues: "Que mundo é este que queremos fazer?"

O Frade dominicano conta em entrevista à VISÃO que nunca se cansa de pregar:?"A única coisa que me importa é a insurreição"

Sara Belo Luís (Entrevista publicada na VISÃO 1124, de 18 de setembro)
16:34 Sexta feira, 26 de Setembro de 2014 |
Se a qualidade de uma entrevista se medisse pelas perguntas do jornalista, esta seria uma entrevista falhada. Da meia dúzia de questões que a VISÃO levava preparadas, duas, três no máximo, foram concretizadas. Frei Bento Domingues, frade dominicano, heterodoxo, espírito livre, 80 anos completados em agosto último, fala sobre tudo e interpela-se a si próprio. No momento em que a Temas e Debates publica mais um volume das suas crónicas dominicais no jornal Público (A Insurreição de Jesus, 512 págs., €19,90), a obra de frei Bento Domingues também é debatida na Fundação Gulbenkian (ver Homenagem na Gulbenkian). E ele, apesar de não ser vaidoso, vai lá estar. Não é de clausuras.
Sabe quem são os seus leitores?
Tenho uma ideia porque, de vez em quando, vou tendo alguns ecos. Há uma franja de gente que se diz católica não praticante, que se sente afastada, pessoas que sempre viram o fenómeno religioso de uma forma crítica, pessoas que, antes do 25 de Abril, trabalharam comigo na resistência ao antigo regime e, depois, também, pessoas que não têm nada a ver com a Igreja e que são até bastante anticlericais.
Os anticlericais são os desagradáveis...
Não, não são nada desagradáveis. E têm muitas razões para serem anticlericais.
Acha que os seus textos alguma vez contribuíram para a conversão de alguém?
A conversão é, na minha maneira de ver, o fruto da graça de Deus e do facto de as pessoas se deixarem abalar por essa graça.
E alguma vez ajudou alguém a reaproximar-se da fé?
Muita gente me diz isso. Mas essa questão prende-se com a história do século XX português. Durante a I República, houve disputas entre franciscanos e jesuítas, por causa da liberdade de voto no Partido Nacionalista, e instituiu-se, pela primeira vez em Portugal, uma espécie de laicidade lúcida que divide a prática social e política da sua expressão religiosa.
Que o Estado Novo tratou de contrariar.
Isso é muito importante para entender as dificuldades do catolicismo hoje. Os católicos, os próprios monárquicos católicos e os bispos achavam que Salazar era produto da providência divina. E mesmo que não estivessem totalmente de acordo, aderiram ao regime que deu espaço de liberdade à Igreja. Entretanto, todas as vozes católicas dissonantes (como a do padre Joaquim Alves Ferreira, que publicou o livro A Largueza do Reino de Deus, que, no fundo, era sobre a estreiteza da mentalidade católica oficial, ou a do padre Abel Varzim, responsável pela divulgação do pensamento católico no mundo operário) foram sendo afastadas. Nas eleições de 1958, perante o apoio de alguns católicos a Humberto Delgado e a célebre carta de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, o episcopado preferiu continuar com Salazar.
E o que é que, em seu entender, isso ajuda a explicar?
Por um lado, há uma confusão entre o apoio a Salazar e o ser católico. Por outro lado, quando veio o 25 de Abril e os católicos, que tinham resistido ao regime, começaram a entrar na política, comete-se um erro: os católicos têm a dimensão da intervenção e a dimensão espiritual e teológica. Não defendo o partido confessional, sou absolutamente contra, militei, durante muitos anos, contra isso. Mas não faz sentido que os católicos que entraram na política não tenham tido uma instância que alimentasse a sua fé. A política comeu tudo. Além disso, também houve problemas internos, na Igreja, que têm, por exemplo, a ver com o facto de o Papa Paulo VI, na encíclica Humanae Vitae, ter feito referência aos métodos contracetivos.
Isso afastou as pessoas?
Para muitos jovens, para muitos casais, foi um verdadeiro balde de água fria. A partir daí, muitos católicos passaram a viver constrangidos, em duplo registo, outros afastaram-se. É como este problema de agora - aos divorciados que voltaram a casar-se é-lhes negado o acesso à eucaristia de uma forma, julgo, muito bárbara...
Não podem comungar...
A simbólica da missa é a simbólica da refeição. E, no fundo, estamos a dizer-lhes: vêm à refeição, mas não comem. O que acontece é que, depois, faz-se o catolicismo em autogestão ou à la carte, há um assunto com o qual estou de acordo, alinho, mas há outro assunto com o qual estou em desacordo, não alinho. Neste momento, assistimos a um alívio hesitante, pois as atitudes do atual Papa dão-nos outra respiração. O seu texto A Alegria do Evangelho grita esperança.
O mundo estava a precisar de um Papa popular?
Não é só de um Papa popular, é de alguém que veja o mundo a partir dos excluídos e, sobretudo, que não tenha uma atitude de exclusão. Além disso, o Papa Francisco também não está zangado com o mundo, respira alegria, tem vontade de unir as pessoas. ?E, mesmo assim, ainda é capaz de falar, como ainda agora falou, sobre a necessidade de fazer frente a esta onda de violência em nome de Deus, essas jihads todas.
Essa necessidade de ver o mundo a partir dos que mais precisam é cada vez mais atual?
Sempre foi. O poder sempre foi dos ricos, dos poderosos, dos impérios. Vale-nos a cintilação daqueles que, tanto no paganismo como no cristianismo, dizem "mas". Como quando, na descoberta do Mundo Novo, dos chamados países da América Latina, uma pequena comunidade de dominicanos escreveu um texto a denunciar o que estava a acontecer aos índios, em nome da exploração do ouro. Estes é que são os momentos evangélicos. Aqui é que reconhecemos que somos irmãos e filhos de Deus. Organizem a economia como quiserem, organizem as finanças como quiserem, organizem os hospitais como quiserem, mas não o façam segundo o princípio da exclusão.
Em alguns momentos da história, a Igreja Católica também excluiu...
Claro que sim. Dou um exemplo muito simples: entra-se numa igreja, numa missa de domingo e alguém fala para aquelas pessoas que não podem abrir a boca. O Papa Francisco já disse aos outros bispos e aos padres para não aborrecerem as pessoas, que mesmo na ordem moral há uma hierarquia de verdades, há umas coisas mais importantes que outras... E há uma certa forma de fazer que leva a que, depois, as pessoas digam "isto não resolve nada". As pessoas vão à eucaristia para receberem iluminação para a semana, para se fortalecerem, para se encontrarem umas com as outras, para ?participarem nesta coisa de ir mudando a nossa vida... Apesar de ser minhoto, eu gosto muito da filosofia alentejana...
Gosta de "ir sendo", como costuma dizer.
É isso, até porque esta coisa de realizar a nossa vida é um processo complicado. ?O "normalzinho" é um bocado cinzento e, depois, há o sofrimento e todo esse mundo de violência com o qual é muito difícil lidarmos. Gosto muito de uma devoção que existe perto de Lamego, a Nossa Senhora do Alívio, pois penso que estamos no mundo para aliviar a dor dos outros. Além disso, também compete à Igreja ajudar as pessoas a regozijarem-se com a alegria, a reconhecerem aquilo em que se sentem felizes. E não andar a culpabilizá-las por razões de ordem sexual, por trapalhadas...
A não ser moralista?
Isso. E é a partir desta dupla atitude que a Igreja deve evangelizar. Formar os políticos, os financeiros e os investigadores de maneira a que estes se perguntem: estou a trabalhar na banca, mas, então, para que é que serve a banca? Estou a trabalhar numa empresa, quem é que serve esta empresa? As pessoas não só não se interrogam como são deterministas. Ora, a mensagem do Evangelho é antifatal, não temos que nos resignar com o mundo em que vivemos. E que mundo é este que queremos fazer? Nas minhas crónicas, a única coisa que me importa é esta insurreição: este mundo está mal construído e podia ser de outra maneira.
Nunca se cansa de pregar?
Não. Primeiro, nunca prego sozinho. E na celebração, ao domingo, é a miudagem que ocupa o altar.
E quando sente indiferença na audiência, não lhe apetece, digamos, ir pregar para outra freguesia?
Descobri o sentido da minha vida numa pregação de um padre brasileiro, amigo de meu tio. Eu vivia na religião do terror e, de repente, por causa dele, encontrei alegria na relação com Deus. Quando ele me perguntou o que é que eu queria ser quando fosse grande, a única resposta que veio de dentro foi: "Quero ser como você." Era um miúdo e, até hoje, acho que essa foi a coisa mais verdadeira que disse em toda a minha vida.

 


Refletir o sagrado e descobrir o profano

No Jornal de Letras, Leonor Xavier publica um texto sobre Bento Domingues, com o título Refletir o sagrado e descobrir o profano: 

 

Frei Bento Domingues, O.P. é frade dominicano na ordem dos pregadores. Nascido em Terras do Bouro, no mais remoto Portugal, desde criança foi pastor e às ovelhas leu trechos em latim de um livro que teve, emprestado. “E elas gostavam”, costuma contar. Na serra ouvia o eco da sua voz e seguia os ritmos da natureza, pela intuição dos cinco sentidos que até hoje, tem abertos e alerta. Muito cedo descobriu a sua vocação, e na certeza da revelação e da fé se formou e ordenou dominicano, fazendo da proclamação do Evangelho, na liberdade de expressão e na caritas/amor absoluto a obra da sua vida. Agora que festejamos os seus 80 anos  em homenagem e lançamento de dois volumes de antologia das mais de mil crónicas publicadas no Público, é também celebrada a sua tão singular figura. Homem do campo e hoje andarilho na cidade, Frei Bento tem a malícia do dia a dia, a inteligência na adaptação às circunstância, o humor, o sentido crítico, a compaixão, a tolerância. Ele conhece os caminhos e os atalhos, usa os transportes públicos, evolui com facilidade pelos mais variados ambientes, de olhar sempre vivo e atento. Falando, escrevendo, investigando, debatendo, comunicando, Frei Bento Domingues não se esgota nunca. Disponível para os sacramentos do nascimento, do crescimento e da morte, celebrando a Eucaristia, pregando sobre as parábolas ou os profetas, em conversa casual de amigos ou circunstâncias gerais, ele discute as questões da atualidade, convive com crentes e não crentes e acredita na liberdade da democracia e no direito à opinião. É teólogo estudioso do Antigo e do Novo Testamento, de textos apócrifos, conhecedor das várias religiões e das doutrinas dos doutores da Igreja, das vivências dos grandes místicos. É leitor de pensadores e filósofos, de autores universais e contemporâneos, de poesia. Acompanhar os textos de Frei Bento Domingues é refletir sobre o sagrado e descobrir o profano. É entender que Jesus Cristo é centro absoluto da presença de Deus no seu testemunho, na sua obra, na sua vida. É descobrir a sua devoção a Nossa Senhora. Na missa de domingo de Cristo Rei, em 2010, anotei um fragmento da homilia de Frei Bento, quando citou Teillard de Chardin: “A criação está sempre a acontecer, toda a história está sempre a ser.”- para acrescentar que “Na nossa ação de construção do mundo há um clandestino, que é Jesus.” Penso que assim tudo se explica.

 




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