SEM
JUSTIÇA NEM MISERICÓRDIA
Frei Bento
Domingues, O. P.
Público
26ABR2015
1. Lampedusa é um dos cemitérios onde
são afogados os que procuram fugir da guerra, da violência, da fome e da
própria morte. Foi por aí que o Papa Francisco começou as suas visitas
pastorais e onde fez a homilia mais breve da sua vida: Que vergonha!
Quando se
perde a vergonha, perde-se a decência e tornam-se vazios os apelos às
convenções internacionais, à justiça, à misericórdia e a qualquer princípio.
Dir-se-á que estou a simplificar questões complexas de ordem económica, social,
cultural e política que envolvem as migrações. As máfias do tráfego humano
dominam os seus percursos. É evidente que deixar afogar os pais e os filhos é
muito mais simples.
A Europa
não pode esquecer a sua parte de
responsabilidade pelo que se passa no Medio Oriente. Os horrores da Palestina,
do Iraque, da Síria, da Líbia, do Egipto, etc. obrigam as populações a pagar
muito caro a morte no Mediterrâneo.
Antes,
porém, de repartir responsabilidades, importa perceber que precisamos de
crescer numa solidariedade que permita a todos os povos tornarem-se artífices
do seu destino, como já dizia Paulo VI em 1967. Em 1971, lembrou que os mais
favorecidos deviam renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar,
com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros.
Para o Papa
Francisco, em 2013, a solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece
a função social da propriedade e o destino universal dos bens, como realidades
anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justifica-se para
cuidar deles e aumentá-los, de modo a servirem melhor o bem comum. Por isso, a
solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver aos pobres o que lhes
corresponde. Animados pelos seus Pastores, os cristãos são chamados, em
todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres.
Isto não basta, diz,
Bergoglio: é preciso assegurar a educação, o acesso aos cuidados de saúde e,
especialmente, ao trabalho. No trabalho livre, criativo, participativo e
solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida[1].
2. O Papa anda a ser acusado de não
ser um teólogo, mas, apenas, um pastor. É uma tentativa ridícula para
dizer o quanto ele os incomoda. Neste Domingo, em que Jesus se chama a si
próprio pastor – o bom Pastor - a acusação é o maior dos elogios. Vou,
no entanto, deixar aqui, a base teológica das opções de Francisco.
“O pobre
ocupa um lugar epistemológico central, isto é, o pobre constitui o lugar a
partir do qual se procura pensar o conceito de Deus, de Cristo, da graça, da
história, da missão das Igrejas, o sentido da economia, da política, o futuro
das sociedades e do ser humano. Partindo da perspectiva do pobre, percebemos
até que ponto são excludentes as actuais sociedades e em que medida as
religiões e as Igrejas são arrastadas pelos interesses dos poderosos”[2].
Bergoglio
pertence, sem dúvida, à “fecunda geração dos bispos latino-americanos que, a
partir da década de sessenta do século passado, mudaram a face do cristianismo
desse continente: antepuseram a ortopraxis à ortodoxia, a
fidelidade ao povo à obediência ao Vaticano; optaram pela solidariedade com as
maiorias populares empobrecidas face às alianças com os poderosos e fizeram seu
o princípio-libertação frente ao princípio-resignação que, durante muito tempo,
caracterizou o cristianismo da América Latina”[3].
Porque será
que tantas pessoas, de tantos países - católicos ou não - se reconhecem, se
solidarizam e se sentem interpeladas pelas atitudes e mensagens deste Papa,
como se ele fosse o seu guia espiritual?
Talvez por
ele não querer mandar em ninguém e denunciar aqueles que querem tornar a Igreja
uma instituição de poder, de dominação das consciências, em vez de uma
fraternidade de serviço, seja de quem for, mas, sobretudo, daqueles que sobram
na sociedade.
3. A grande dificuldade que Jesus
encontrou na relação com os seus discípulos pode exprimir-se de forma muito
simples: andavam dominados pela ânsia do poder que criava rivalidades entre
eles. Jesus foi obrigado a ser muito claro: entre vós quem quiser ser o
primeiro coloque-se ao serviço de todos. O próprio Jesus sentiu-se
desesperado com a persistência desta atitude, até mesmo depois da ressurreição
(Act 1 6-9). Prometeu o Espírito Santo, Espírito de conversão permanente da
Igreja, para que viva ao serviço de todos na oração, na fraternidade, na
partilha dos bens. Este é o regime da Igreja quando não se atraiçoa a si
própria.
A traição
maior é a perda da consciência de que todos são Igreja, ao mesmo título. A
Igreja é um Nós, de voluntários, sem proprietários.
No Domingo
passado, a Ana Vicente entrou, para sempre, na alegria de Deus. Com a Maria
João Sande Lemos trouxe para Portugal, em 1997, o Movimento Internacional Nós
Somos Igreja. Tudo o que a Ana realizou em prol da condição feminina, dentro e
fora da Igreja, exige uma atenção e uma abordagem que não cabem nestas linhas.
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