O
Papa Francisco e o Cântico das Criaturas
No
dia da memória de São Francisco de Assis, o irmão pobre por opção e o
exponencial irmão universal, aqui deixo a seguinte reflexão sobre o seu Cântico das Criaturas, feito doutrina e
ação da Igreja por Francisco de Buenos Aires, transformado em Pastor Universal.
Quando
Georgio Mario Bergoglio foi eleito para o Sumo Pontificado, a 13 de março de
2013, assumiu o nome de Francisco, correspondendo ao apelo de um colega do
conclave a que não se esquecesse dos pobres.
E,
de facto, é raro vir ao de cima uma intervenção deste Papa que não remeta para
o insano combate à pobreza – e para a atenção aos pobres – no que ela tem de
mais nefasto: a miséria e o abandono; a fome, causada pela guerra e pela
péssima distribuição da riqueza; os conflitos regionais, que tiram vidas,
perseguem cidadãos e criam ondas incontidas de prófugos e refugiados; a
exploração e o espezinhamento; o silenciamento e o assédio moral; a violação e
o abuso sexual; a prostituição estigmatizada e de elite; a escravização; o
tráfico de pessoas (sobretudo de mulheres e crianças), de órgãos e de armas; e todas
as formas de discriminação.
Porém,
na linha do Poverello de Assis, Bergoglio adota a pobreza santa pelo Reino de
Deus e assim a propõe aos verdadeiros seguidores de Jesus de Nazaré e solicita
a todos os discípulos de Cristo e filhos da Igreja que a abracem, ao menos in spiritu, para o que Reino de Deus
prevaleça sobre todas as preocupações. É nesta atitude da pobreza livremente
escolhida que se conseguirá o extermínio da pobreza-miséria a que uns poucos homens,
impantes de poder e peritos na hábil engenharia do dinheiro e do poder, votam
outros homens por força do capitalismo selvagem – seja ele privado ou estatal –
que faz absoluta fé na insaciável economia de mercado e/ou na burocrática
economia planificada.
E
é ao serviço desta pobreza eleita contra a pobreza imposta que Francisco, o
Bispo de Roma, quer uma Igreja de portas abertas ou como a cuidadora dos
débeis, doentes ou feridos como que em hospital de campanha, na direção das
periferias existenciais, mas sem deixar o vigor que o centro inala neste corpo
servidor, sempre com referência explícita a Jesus Ressuscitado. É ao serviço
desta pobreza eleita contra a pobreza como que infligida em termos de punição a
muitos dos seres humanos que o cardeal argentino, tornado Papa romano, propõe a
guarda do irmão, segundo o estilo querido por Deus, da família, à moda de São José,
da Igreja, à semelhança do arcanjo São Miguel, e das criaturas, como Francisco
de Assis.
***
Porém,
enquanto o Poverello de Assis, o irmão universal, escreve o seu Cântico das Criaturas (em
italiano, Cantico dele creature; em
latim, Laudes Creaturarum), ou Cântico do Irmão Sol (em italiano, Cantico di frate Sol), numa perspetiva de poesia mística ou de
teologia pessoal, Francisco, o Pastoral universal, escreve a sua encíclica Laudato Si’, inspirado no místico de
Assis, mas como proposta doutrinal de teologia e programa de ação para toda a
Igreja e para todo o mundo. É a guarda da Casa
Comum que está em causa; é a obra da criação, que, ao invés do desígnio do
Criador, que a concebeu para benefício de todos, corre o risco de destruição
por obra da ambição de uns tantos contra a necessidade e o direito dos demais,
que são milhões e milhões.
***
O Cântico
das Criaturas, historicamente mencionado pela
primeira vez na Vita Prima de Tommaso
da Celano, em1228, é uma notável canção religiosa tipicamente cristã composta por Francisco de Assis no
dialeto úmbrio, do italiano, e
provavelmente uma das primeiras obras escritas naquele dialeto.
Ao invés de
outras canções religiosas da época, esta é tão simples e genuína que parece quase
infantil na maneira como o trovador místico louva a Deus, dando-Lhe graças por criações
como o “Irmão Fogo” e a “Irmã Água”. Frequentemente o Poverello se
referia aos animais como irmãos e
irmãs da Humanidade, rejeitava
qualquer tipo de acúmulo material e confortos sensuais, em troca da “Senhora Pobreza”,
a dama das suas preferências.
Francisco
terá composto a maior parte do seu
cântico nos fins de 1224,
enquanto se restabelecia de uma doença em São
Damião, numa pequena cabana para ele construída por Clara de Assis e outras mulheres
pertencentes à Ordem irmã. De acordo com a tradição franciscana, ela terá sido
cantada pela primeira vez pelo irmão Francisco e pelos irmãos Angelo e Leo,
dois de seus companheiros originais, no leito de morte de Francisco, com o verso que louva a "Irmã Morte", acrescentado apenas
alguns minutos antes.
***
Neste cântico da Criação, Francisco de Assis salienta, de forma simples, aspetos
importantes a ter em conta: o reconhecimento da transcendência e da bondade de
Deus Criador; a asserção de que nada é tão bom como Deus, de quem procede toda
a bondade; a índole maravilhosa das obras de Deus, cheias da sabedoria divina; a
bondade relativa dos males que sofremos, como por exemplo a morte, e a razão de
não de serem superiores na ordem universal; e o dever do homem de não se
revoltar com os males que sofre, mas de louvar a Deus que, por meio desses
males relativos, nos prepara bens muito maiores.
Porém, o Cântico das Criaturas não pode ser atacado pelo ângulo do
panteísmo. Tanto no texto como na mente de Francisco não subsiste qualquer
confusão entre criador e criatura. Com efeito, quem é louvado é o Criador pela
excelência das criaturas que Ele fez do nada. Por isso, repete à maneira de
estribilho: “Lodato sia mi' Signore”
[Louvado sejas, meu
Senhor] e afirma que só
a Deus se deve louvor, glória e honra, assim como toda a bênção.
Por outro lado, Francisco afirma que
as criaturas são materialmente boas e que nelas podem ser encontrados símbolos
de Deus, que permitem conhecer por analogia a infinita bondade de Deus através
do bem e da beleza da criação. Assim, em toda a criatura há bem material e,
enquanto símbolo, toda criatura é significativa e portadora de bens e dons
espirituais. Por isso, o Irmão de Assis louva em cada criatura o que ela tem
materialmente de bom e os símbolos dos bens espirituais que nela existem. É
assim o franciscanismo o antídoto da gnose.
Nestes termos, o poeta místico louva
o irmão sol pelo bem material que nos faz; e louva a irmã água pelas suas
quatro qualidades, duas materiais e duas simbólicas.
Materialmente, a água é útil e
preciosa; espiritualmente, simboliza a virtude da humildade e a da castidade. É
símbolo da humildade, porque procura sempre o lugar mais abaixo, precisamente
como aquele que é humilde. E, como quem se humilha será exaltado, a água, que
busca sempre o lugar mais abaixo, será exaltada ao encontrar a grandeza do
Oceano e ao tornar-se una com ele, assumindo aí a sua grandeza. Por outro lado,
é símbolo da castidade, porque, embora como ser irracional não possa ter
virtudes, ela, que tudo limpa e lava (mesmo suja pode lavar, até certo ponto, as mãos
do homem), é símbolo da
castidade e da pureza.
Ademais, face a este mundo moderno,
panteísta e gnóstico, que foge da cruz, é preciso recordar que até a morte
corporal comporta um bem relativo e que, por isso, ela também pode ser chamada
de “irmã”. E não se pode esquecer que o manso e suave Francisco de Assis não se
inibe de amaldiçoar aqueles que aceitarem a morte espiritual do pecado até ao
momento da morte corporal, porque só a morte do pecado é péssima: “Guai a quelli” que a morte física encontrar
mortos espiritualmente pelo pecado.
Deus ilumina-nos e aquece-nos todo
dia por meio do sol que bem simboliza o Criador de todas as coisas (visíveis e invisíveis), pois que, assim como a luz do sol
permite que vejamos as coisas à luz da verdade física, o Verbo de Deus dá-nos a
conhecer a realidade à luz da verdade total. E, assim como o sol, dando-nos
calor, nos permite possuir o bem da vida física, assim o amor de Deus nos procura
e nos aquece continuamente para que tenhamos a vida da graça.
No trinómio sol, luz e calor, é impossível
separar o fogo da luz, separar a luz do calor, separar o calor do fogo. Fogo,
luz e calor são realmente inseparáveis. Por isso, não se pode separar a
omnipotência da Verdade e do Amor. Assim, Deus dispõe que, mesmo à noite, o céu
estrelado gire ante o deslumbramento dos nossos olhos, provocando-nos à contemplação
das belezas eternas e lembrando-nos que toda beleza terrena é passageira e que
só a que não muda é verdadeiramente amável.
E, apesar desse constante e altíssimo
apelo, os nossos olhos tendem a mirar e a admirar a terra. Por isso, é
pertinente o apelo pascal de São Paulo:
"Se, portanto,
ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto onde Cristo está sentado à
direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas lá de cima, e não às da terra, porque
estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo,
vossa vida, aparecer, então também vós aparecereis com ele na
glória." (Cl
3,1-4).
Aqui fica o texto em úmbrio e
em português:
Em úmbrio:
Altissimu onnipotente bon
signore. Tue so le laude la gloria e l onore et onne benedictione. Ad te solo altissimo se konfano. Et nullu homo ene
dignu te mentouare.
Laudato sie mi signore cum tucte le tue creature spetialmente messor lo
frate sole, lo quale iorno et allumini per loi. Et ellu e bellu e radiante cum
grande splendore. De te altissimo porta significatione.
Laudato si mi signore per sora luna e le stelle. In celu l ai
formate et pretiose et belle.
Laudato si mi signore per frate uento et per aere et nubilo et sereno
et onne tempo, per lo quale a le tue creature dai sustentamento.
Laudato si mi signore per sor acqua, la quale e multo utile et humile
et pretiosa et casta.
Laudato si mi signore per per frate focu, per lo quale ennallumini la
nocte, ed ello e bello et iucundo et robusto et forte.
Laudato si mi signore per sora nostra matre terra, la quale ne sustenta
et gouerna et produce diuersi fructi con coloriti fiore et herba.
Laudato si mi signore per quelli ke perdonano per lo tue amore et
sostengo infirmitate et tribulatione. Beati quelli ke l sosterranno in pace, ka
da te altissimo sirano incoronati.
Laudato si mi signore per sora nostra morte corporale, da la quale
nulla homo uiuente po skappare, guai a cquelli ke morrano ne le peccata
mortali. Beati quelli ke trouara ne le tue sanctissime uoluntati ka la morte
secunda nol farra male.
Laudate et benedicete mi signore et rengratiate et seruiteli cum grande
humilitate.
Em português:
Altíssimo,
Omnipotente, Bom Senhor,
Teus são o Louvor, a Glória, a Honra e toda a Bênção. Louvado sejas, meu Senhor, com todas as Tuas criaturas, especialmente o senhor irmão Sol, que clareia o dia e que, com a sua luz, nos ilumina. Ele é belo e radiante, com grande esplendor; de Ti, Altíssimo, é a imagem. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, que no céu formaste, claras, preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, pelo ar e pelas nuvens, pelo sereno e por todo o tempo em que dás sustento às Tuas criaturas. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, útil e humilde, preciosa e casta. |
Louvado sejas, meu Senhor,
pelo irmão fogo, com o qual iluminas a noite. Ele é belo e alegre, vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa, produz frutos diversos, flores e ervas. Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam pelo Teu amor e suportam as enfermidades e tribulações. Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal,
– Ai de quem morra em pecado
mortal! –
da qual homem algum pode escapar. Louvai todos e bendizei o meu Senhor! Dai-Lhe graças e servi-O com grande humildade! |
***
Francisco de
Assis, depois de ter abraçado em definitivo a dama Pobreza, começou por
empreender – seguindo à letra o apelo que ouviu do Senhor: Francisco, reconstrói a minha Igreja! – a reconstrução de
igrejinhas caídas, com o seu próprio trabalho, assentando pedras, comendo do
que lhe davam na rua. E, após a reconstrução da Igreja de São Damião, restaurou
uma capela próxima das muralhas de Assis e a Igreja de Santa Maria dos Anjos.
Porém, com o
tempo, São Francisco compreendeu que deveria reconstruir a Igreja dos fiéis e
não apenas as igrejas impressas em templos de pedra. E, durante a leitura do
Evangelho numa celebração da Missa ouviu e compreendeu que os discípulos de
Jesus – devendo possuir ouro, nem prata, nem duas túnicas, nem sandálias –
devem pregar a paz e a conversão. No dia seguinte, os habitantes de Assis ficaram
surpreendidos quando ele chegou com uma túnica simples, uma corda amarrada à
cintura e os pés descalços. A todos que encontrava no caminho dizia: a
paz esteja convosco! Francisco acabou por passar a falar da vida de
Evangelho nos lugares públicos de Assis. Falava e agia com tamanha fé que o
povo o ouvia com respeito e admiração.
Também
Francisco, Pastor Universal, o novo amigo dos pobres e o irmão das criaturas,
que habitam a Casa Comum, começou com
a vida jesuítica, passou a apascentar o rebanho do povo de Deus que vive numa
grande arquidiocese e agora é o megafone de Deus e das suas criaturas (seres humanos – sobretudo os pobres –
os animais, as plantas, a terra, etc.) perante pequenos grupos e perante os grandes areópagos
mundiais, sobretudo a partir daquele que se alberga junto do túmulo de São
Pedro.
2015.10.04
– Louro de Carvalho
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