Santa Marta, a apóstola da
hospitalidade e do trabalho
A sua memória
litúrgica celebra-se a 29 de julho, por iniciativa dos franciscanos, em 1262. Santa Marta corresponde a uma personagem bíblica referida no Evangelho de Lucas (vd Lc 10,38-42) e no de João (vd Jo 11,1-45; 12,2). A irmã de Lázaro e de Maria de Betânia, (também chamada de
Margareth, nalguns lugares), perto de Jerusalém, é a padroeira das lavadeiras,
das cozinheiras e donas de casa, dos anfitriões, dos estalajadeiros e
hoteleiros, dos nutricionistas e dietistas; e, ainda de acordo com a tradição,
é protetora contra as falsas preocupações, como: mau olhado, inveja, pragas,
bruxarias, descarrego e outras superstições para as quais ela oferece um escudo
impenetrável. Foi uma das mulheres que acompanharam Jesus no calvário e na ressurreição.
O nome Marta é transliteração do grego Μαρθα,
que por si já é tradução do aramaico מַרְתָּא, que significa “a mestra” ou “a
senhora”. A forma aramaica ocorre numa inscrição datada como sendo do primeiro
século, que se encontra num Museu em Nápoles.
Marta, a hospedeira de Cristo,
era filha de Siro e de Eucária, descendente de estirpe real. O pai era
governador da Síria e de muitas regiões marítimas. Com sua irmã e irmão, por
direito de herança materna, possuía três fortalezas: Magdala, Betânia e parte
da cidade de Jerusalém. Nunca se disse que tivesse marido ou vivesse com homem
algum. Era a anfitriã e a dona da casa por
ser a irmã mais velha. Quando Jesus se hospedava em sua casa, em Betânia, Marta
era solícita e cuidava do seu bem-estar. Numa visita, recorda Lucas no seu Evangelho,
Marta reclamou por Maria ter ficado sentada a ouvir Jesus, deixando-a com o
trabalho todo. Jesus, porém, sentenciou: “Marta, Marta, andas inquieta e
agitada com muita coisa, quando uma só é necessária. De facto, Maria escolheu a
melhor parte, que lhe não será tirada” (Lc 10,41-42). Marta tornou-se, pois, o protótipo da ativista cristã e
Maria o símbolo da vida contemplativa.
Marta, dado o seu temperamento ativo e pressuroso, foi a
única que foi procurar Jesus e sair-lhe ao encontro, quando Lázaro morreu, ao
passo que Maria ficou recatada em casa. A tradição diz ainda que, para aqueles
que diziam que já era tarde e que Lázaro já estava morto, Marta retrucou
energicamente que não tinha a menor importância e que Jesus iria curá-lo. E de
facto, quando Jesus chegou, Lázaro já estava enterrado e o seu corpo já
apresentava sinais de putrefação, mas Marta não se abalou, e com enorme fé,
falou a Jesus: “Senhor, se cá estivesses, meu irmão não teria morrido, mas eu
sei que tudo o que pedires a Deus, Deus To concederá!” (Jo 11,21-22). E, quando o Mestre afiança que o irmão ressuscitará, ela
remete a fé para a ressurreição no último dia. Porém, Jesus lança-lhe um repto
de fé: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha
morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim não morrerá jamais.
Acreditas nisto?”. Ao que Marta respondeu com firmeza: “Acredito, Senhor, eu já
acreditava que Tu és o Messias, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo” (cf Jo 11,23-27). Então, muitos dos judeus que tinham vindo ter com Maria,
ao verem o que Jesus fizera, acreditaram (Jo 11,45). E não digam que esta alma ativista não é também alma de
contemplação!
Como se pode verificar, o ativismo de Marta é condimentando
por uma fé profunda em Cristo. E é um ativismo incessante que, se parece
emulatório perante a sobredita atitude de Maria (só que também queria que sua irmã
O servisse, porque estava convencida de que não bastaria o mundo inteiro para
servir hóspede tão nobre), seis dias antes da
Páscoa, quando ofereceram um jantar a Jesus, enquanto Maria ungia os pés de
Jesus com o perfume de espicanardo genuíno e os enxugava com os cabelos, Marta
andava a servir (cf Jo 12, 1-2).
Uma tradição refere que Lázaro e suas irmãs, Marta e Maria,
foram para Chipre onde ele se tornara bispo de Kition ou Lanarka. As suas supostas
relíquias teriam sido trasladadas para Constantinopla e várias igrejas e capelas
foram erigidas em sua honra na Síria. A Basílica de São Lázaro, santo padroeiro
de Lanarka, construída em 890 da nossa era, era um templo cristão do século V, no
qual existia um sarcófago com a com a inscrição: “Lázaro, o amigo de Cristo”.
Isto reforça a tradição de que ele vivera sua “segunda vida ressuscitado” em
Kition, Lanarka.
Porém, segundo
outra tradição, depois
da Ascensão do Senhor, quando da dispersão dos discípulos, ela, seu irmão
Lázaro, sua irmã Maria Madalena e ainda São Maximino — que as tinha batizado e
a quem foram entregues pelo Espírito Santo — além de muitos outros, foram
colocados num barco pelos infiéis, sem remos, nem velas, nem leme, nem
alimentos, pois tudo lhes roubaram. Mas, guiados pelo Senhor, chegaram a
Marselha, na região da Provença; depois, foram para o território de Aix e lá missionaram
e converteram o povo à fé.
Ainda,
segundo esta tradição, Santa
Marta era muito eloquente e toda a gente se agradava dela. Naquele tempo, vivia
nas margens do Ródano, num bosque, entre Arles e Avinhão, um dragão, metade
animal, metade peixe, maior do que um boi e mais comprido que um cavalo, com
dentes afiados como espadas, e protegido de ambos os lados por escamas como
escudos. Ocultando-se no rio, matava todos os transeuntes e fazia naufragar os
barcos. Tinha, como reza a lenda, ido por mar desde a Galácia da Ásia, fora
gerado por Leviatã – que era uma ferocíssima serpente aquática – e por um
animal chamado ónaco, oriundo da região da Galácia, que expele os seus dejetos
até à distância de uma jarda como se fosse a ponta de um dardo, queimando como
fogo tudo o que atingem. Marta, a pedido do povo, foi procurá-lo e encontrou-o
no bosque a devorar um homem; atirou água benta sobre ele e mostrou-lhe uma
cruz.
Em seguida, vencido e parado como
uma ovelha, Marta atou-lhe o seu cinto e ali mesmo foi morto pelo povo com
lanças e pedras. Os naturais dessa região chamavam Tarascurus àquele dragão; por isso, em sua memória,
aquele lugar ainda se denomina de Tarasconus (hoje Tarascon), em vez de
Nerluc, que significa “lago negro”, porque os bosques eram sombrios e escuros.
A partir de então, com o
beneplácito de seu mestre Maximino e de sua irmã, Marta ali permaneceu
entregue, sem desfalecimento, às orações e aos jejuns. Depois, tendo-se reunido
nesse lugar uma multidão de religiosas e construído uma grande basílica em
honra da Bem-aventura Virgem Maria, levou uma vida austera: abstinha-se de
carne, de toda a gordura, de ovos, de queijo e de vinho; só comia uma vez por
dia, fazia cem genuflexões de dia e outras tantas à noite. Uma vez, a crer em La Légende Dorée, quando pregava junto de
Avinhão, entre a cidade e o rio Ródano, um jovem que, estando além do rio,
queria ouvir suas palavras, mas não tinha barco; e, tendo começado a nadar, foi
levado pela força da corrente e logo morreu afogado. Muito a custo, encontraram
o seu corpo ao segundo dia e colocaram-no aos pés de Marta para que o
ressuscitasse. Ela prostrou-se ao chão de braços abertos em cruz e orou assim:
“Senhor Jesus Cristo, que outrora ressuscitastes o meu querido irmão, olha, ó
meu hóspede caríssimo, para a fé destes circunstantes e ressuscita este rapaz. Pegou-lhe
na mão e ele imediatamente ressuscitou, recebendo o santo batismo.
Santo Eusébio conta no livro
quinto da História
Eclesiástica, que
uma mulher que sofria de um fluxo de sangue, depois de sarada, foi para o seu
jardim e fez uma estátua parecida com Nosso Senhor Jesus Cristo, com a túnica e
a fímbria como tinha visto, reverenciando-a com muita frequência. Mas cresceram
as ervas, até então destituídas de qualquer virtude, e ficaram com tal poder
que, daí em diante, curaram muitos enfermos. Santo Ambrósio diz que essa mulher
fora precisamente Santa Marta. Da mesma forma São Jerónimo refere, como conta
na História
Tripartida, que Juliano, o Apóstata, tirou a estátua feita por ela para lá
colocar a sua, que logo foi destruída por um raio.
Os tarasconenses, lembrados da
história do dragão Tarasca, resolveram procurar as relíquias de Marta, que
encontraram em 1187, construíram um templo, em 1197, para a guarda das mesmas e
tomaram como sua padroeira a benfeitora dos seus antepassados.
***
Santo Agostinho,
bispo de Hipona, no século V, no Sermo 103, 1-2. 6 (PL 38, 613.615), elogia a hospitalidade de Marta, cujas recompensas
estende a todos os que se tornarem hospitaleiros para Jesus Cristo e para
aqueles em cuja figura humana Ele sofre:
Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa. Ante a multiplicidade de ocupações, “devemos aspirar a
um único fim”, porque estamos a caminho e não em morada permanente, em viagem e
não na pátria definitiva, no tempo do desejo e não no da posse plena. Mas devemos
aspirar, sem preguiça e sem desânimo – sublinha Agostinho – para um dia
podermos chegar ao fim.
E explica
o sentido da irmandade de Marta e de Maria e o sentido do serviço ao Mestre:
Eram irmãs, não apenas de sangue, mas também pelos
sentimentos religiosos. Ambas unidas ao Senhor, em perfeita harmonia, serviam
ao Senhor corporalmente presente. Marta recebeu-O como se fora peregrino.
Todavia, era a serva que recebia o Senhor, a doente que acolhia o Médico; a
criatura que hospedava o Criador. Recebeu o Senhor para lhe dar o alimento
corporal, enquanto ela precisava do alimento espiritual. O Senhor toma a forma
de servo e possuía um corpo que lhe fazia sentir fome e sede. Nesta condição, é
alimentado pelos servos, por condescendência, não por necessidade. Portanto, o
Senhor foi recebido por Marta como hóspede, enquanto Ele, por desígnio divino, veio
para o que era seu, e os seus não o acolheram. Mas a todos que o
receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo
1,11-12).
E o santo
Bispo de Hipona explicita o mistério da condescendência divina em Cristo:
Adotou os servos, que fez irmãos; remiu os cativos,
que fez co-herdeiros. Ninguém de vós diga só para os antigos: Felizes os que mereceram
receber Cristo em casa! Não te entristeças, não te lamentes por teres nascido
em tempo que já não podes ver o Senhor corporalmente. Não te privou desta
honra, pois afirmou: Todas as vezes que fizestes isso a um de meus irmãos,
foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).
E interpela
quem segue os passos de Marta sobre os últimos tempos, os da parusia:
Quando chegares à outra pátria, encontrarás peregrinos
para hospedar? Famintos para repartires com eles o pão? Sedentos para lhes dares
de beber? Doentes para visitar? Desunidos para reconciliar? Mortos para
sepultar? Lá não haverá nada disso. Haverá o que Maria escolheu: seremos alimentados,
não alimentaremos. Lá se cumprirá em perfeição e plenitude o que Maria escolheu
aqui: daquela mesa farta, recolhia as migalhas da palavra do Senhor. Queres
saber o que há de acontecer lá? É o Senhor que o diz a respeito dos servos: Em
verdade vos digo: Ele mesmo vai fazê-los sentar-se à mesa e, passando,
os servirá (Lc 12,37).
Referências:
Bíblia Sagrada – MEL EDITORES – Estarreja, 2012;
http://www.aascj.org.br/home/2010/07/29/conheca-a-historia-da-vida-de-santa-marta-a-hospedeira-de-nosso-senhor-jesus-cristo/, ac. Julho de 2014;
Leite, J.; Coelho, A. (2005). Santos de Todos os Dias. Vol. de
julho. Matosinhos: Quid novi;
Sacra Congregatio pro Cultu Divino (1989). Liturgia das Horas,
III. Coimbra: Gráfica de Coimbra;
Nova Bíblia dos Capuchinhos – Difusora Bíblica – Lisboa/Fátima,
1998
2014.07.29
Louro de Carvalho
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