MELGAÇO
DIA DO
BRANDEIRO
OLHARES
GEOLÓGICOS E ANTROPOLÓGICOS
José Rodrigues Lima
A Declaração
Patrimonial proclamada a 7 de Setembro de 1996, e inserida no projecto cultural
“Memória e Fronteira” preconiza a comemoração do Dia do Brandeiro.
Está estabelecido que
no primeiro sábado de Agosto se proceda à homenagem a todos aqueles que seguiam
a rota da transumância, partindo da parte baixa da freguesia da Gave, para as
terras altas da Aveleira, apascentando o gado bovino, caprino e cavalar.
Pretende-se perpetuar a
diversidade cultural existente naquele espaço geocultural e transmitir para o
futuro “lugares e vivências” humanizadas.
ARTE DA SOLIDARIEDADE ACTIVA
O acontecimento cultural faz parte do programa “Melgaço em
Festa”.
O Presidente da Câmara de Melgaço, Manoel Batista; a
Vereadora da Cultura, Maria José Codesso; o Presidente da Junta da Gave,
Agostinho Alves; o Pároco da Gave, Raul Fernandes, e outras entidades locais e
regionais marcaram presença, estimulando a vida cultural daquela comunidade
agro-pastoril.
Os homens do cajado firme “com os olhos cheios de memória e
pensamentos lavados pela aragem”, testemunharam vivências misturadas com os
aromas da montanha e onde correm os ribeiros do Aveleira, Calcado e Vidoeiro.
As conversas relataram episódios vividos naquele santuário
natural que é a Branda da Aveleira, onde se pode dar descanso ao corpo e paz ao
espírito, alojando-se nas casas de granito recuperadas e ao serviço dos
turistas, formando uma verdadeira aldeia de montanha a 1.120 metros de
altitude.
Pelo território há testemunhos da arte da sobrevivência que
conviveu com a arte da solidariedade activa.
Também na montanha está a história da terra e a memória dos
homens.
Há caminhos patrimoniais não rompidos onde sentimos o mítico
e conhecemos a história.
SUBI ONDE OS MEUS OLHOS ESTÃO
A poesia de Pedro Homem de Mello ajudou à comemoração.
Assim : “Subi às frias montanhas, / Pelas veredas estranhas /
Onde meus olhos estão”.
De Miguel Torga recordou-se que “há sempre um reino
maravilhoso, um mundo de primária beleza, de intimidade, que ora fugia esquivo
pelas brenhas, tímido e secreto, ou sorria dum postigo acolhedor e fraterno”.
Do sociólogo Eugénio Castro Caldas lembrou-se que “ Ser
minhoto é ser celta / castrejo, galaico, pouco lusitano, mais suevo do que
visigodo…”
A sabedoria e o simbolismo alimentaram os espíritos: “Na
sombra dos tempos / Os velhos sabiam, / Ouvir as vozes do mundo a falar; / Onde
o segredo é saber calar” (Pedro d’Orey).
O pensamento do geógrafo Orlando Ribeiro esteve presente:
“Aqui se encontram também os últimos restos de deambulações do gado grosso… Um
caso de povoamento desdobrado, pelas necessidades da pastagem e da cultura...
Com tons cinzentos e acastanhados.
O saudoso etnógrafo alto-minhoto, José Rosa de Araújo, foi
recordado com as suas expressões regionalistas: “É preciso ter os olhos sem
remelas e os ouvidos escabichados, para apreciar a cultura.”
Muitos do participantes, por certo, seguiram a recomendação
de Marcel Proust: “A verdadeira viagem não é partir para longe, mas inventar um
novo olhar”.
Olhámos e apreciámos o território que o antigo brandeiro José
Maria Rodrigues assim registou: “Da Peneda até ao Mouro, / Tudo é teu oh minha
terra; / Tens a frescura do rio / E o verde escuro da serra”.
Para a Branda de Aveleira subiu-se com o gado através do
tempo secular, e aí se permanecia de Maio a Setembro, em comunhão com a
natureza e recebendo o cheiro da “terra-mãe”.
Para abrigo construíram-se as cardenhas. A poesia sublinha:
“Estas paredes erguidas, / Pelas mãos dos nossos avós; / São muitas vidas
vividas, / Que falam dentro de nós…” (D. Mello)
BRANDA E CARDENHAS
A palavra branda é um signo linguístico que alguns eruditos
escrevem veranda, pois defendem que deriva de Verão.
O vocábulo branda está consagrado na geografia humana, na
antropologia, na cartografia e na linguagem do Alto-Minho.
A origem etimológica do termo branda, com rigor, ainda não
está determinada.
No Dicionário de Cândido de Figueiredo (Lisboa, 1913), branda
significa tapada ou pastagem nas montanhas (de brando?).
Derivará do latim “veranu”, com o significado de primaveril.
No Grande Dicionário de Língua Portuguesa (Lisboa, 1981), o termo branda
significa pastagem da serra aproveitada pelo gado transumante no Verão (de
Abril a Setembro); abrigo de pastor e o que se oferece, de noite, ao gado que
no Verão sobe a serra para pastar.
O grande etnógrafo J. leite de Vasconcelos diz que branda
corresponde a verãa-verenata. Pensa-se que o vocábulo terá origem pré-romana.
A palavra refere-se ao universo agro-pastoril de montanha,
com características diversas e singulares, de acordo com as diferentes regiões
do Noroeste Peninsular.
Mais simples parece ser o termo inverneira, referindo o local
do vale, onde se recolhem as famílias das brandas, de Dezembro a Abril, durante
a estação fria, ventosa, de chuva e de neve.
O facto é que nos locais altos da montanha há boas pastagens
para os gados, sendo os ares mais brandos e as águas cristalinas e leves,
constituindo espaços de harmonia singular.
Há a branda pastoril, de cultivo e mista (pastoril e
cultivo).
A palavra cardenha ou cardanha deriva do vocábulo latino
“cardo” (inis), significando coucoeira, gonzo, quício, e será uma casa térrea
onde os jornaleiros dormem. Esta definição parece ser uma metonímia de gonzo.
O Dicionário de Cândido de Figueiredo diz ser preferível o
emprego de cardenha, usado por Camilo Castelo Branco em “Sereia” pp. 113 e
“Amor de Perdição” pp.265.
O especialista José P. Machado apresenta-o com o significado
de choupana, casa pobre.
De cardo viria cardinale, que diz respeito ao gonzo ou eixo,
e nesse sentido se toma a terceira vertebra cervical, também apelidada de
gnício.
As cardenhas são construções rudimentares, feitas de pedra
tosca que se encontra nos locais de montanha, sendo a cobertura de lajes,
formando uma falsa cúpula. Muitas possuem dois níveis, sendo o de cima para
dormir o brandeiro, e a parte de baixo para o gado.
Estas casarotas sem idade, cobertas de cinzentos líquens, são
bem a imagem da aspereza primitiva da vida das gentes serranas, frugal e dura,
revelando uma tendência ancestral inconsciente.
Podemos referir que estes testemunhos da paisagem cultural
revelam memórias celtas.
PAISAGEM CULTURAL
Ao peregrinar pela branda tentámos localizar a zona do Batateiro
com a anta, a Ermida da Nossa Senhora da Guia, a Pata do Mouro na Calçada do
Moniz, a Cova dos Anhos, o Poulo das Beiguinhas e o Coto Grande com coroas.
O sítio da “junção das águas Entre-os-Portos”, é onde se incorporam
as águas dos ribeiros que formam o rio Vez das águas límpidas e truteiras.
O património material vai das referidas cardenhas e cortelhos
até aos utensílios utilizados no quotidiano do brandeiro: um lenço, duas
mantas, alguns potes ou asados, duas broas e um presunto, dois cabaços
descascados, chicolateira velhinha, eram os traste usados.
Junta-se ainda o mascoto, o ripanço, o arado de pau, a concha
de madeira, a cana de pesca, o corno, a malga do caldo e o prato para as
comidas.
Da alimentação recorda-se o caldo de leite, a água de unto, o
caldo de farinha, os mínharos, as batatas solteiras e os formigos. A sopa de
vinho alegrava os dias e não fazia mal nenhum.
Como nota curiosa é de sublinhar que os brandeiros,
geralmente, comiam o caldo ao cair da tarde, sentados na soleira da cardenha.
Do património imaterial fazem parte as sentidas emoções dos
sustos quando o gado se tresmalhava, ou se ouvia o uivar do lobo ou quando ele
atacava algum animal.
O som das aves nocturnas com os sons agourentos quebravam,
por vezes, o silêncio da noite escura.
A montanha forjou o carácter forte dos brandeiros das
caminhadas longas e com suores pela canícula do dia.
Ao romper do dia os brandeiros saem com o gado para o pasto e
saúdam os companheiros com bom-dia. A resposta era pronta, “pois Deus nos dê os
bons dias”.
A VIRAGEM NOS ANOS SESSENTA
Por volta dos anos sessenta muitos brandeiros jovens aderiram
ao movimento demográfico, económico, cultural e político que foi a emigração,
tentando orientar as suas vidas no contexto de países europeus.
Foi o período da emigração clandestina ou “ a salto”, ou com “passaporte
de coelho”.
As actividades da branda acentuaram a sua queda.
Para avaliar o que foi a fuga de braços jovens para as
cidades europeias, basta referir que entre 1960-1965 houve no tribunal de
Melgaço 803 processos e as causas eram o engajamento, a emigração clandestina a
falsificação de passaportes.
As belezas da paisagem da branda abrem-nos janelas
escancaradas para regalar os olhos com a diversidade cultural. Esses espaços
merecem ser percorridos pelos andarilhos do fotojornalismo e os registos
fotográficos serem apresentados nos meios culturais urbanos
MONGES NA SERRA
Através de registos históricos referentes ao Mosteiro
Cisterciense do Ermelo, no Vale do Lima, e ao Mosteiro Cisterciense de Fiães,
já no vale do Minho, sabemos que a ligação directa entre ambos os mosteiros se
fazia pelo Soajo, Adrão, Miradouro, Peneda ou Cando, passando nas franjas da
Aveleira, prosseguindo por Lamas de Mouro para depois encontrar Santa Maria de
Fiães, sedimentado assim a “Rota Cisterciense do Alto-Minho”.
A comunidade cisterciense do Ermelo possuía terra no Cando e
Pomba. Os Mosteiro de Fiães, igualmente em Fervença, na Bouça do Homens, assim
como em Ciche e em Campelo da Aveleira.
Através dos documentos do Mosteiros de Fiães conhecemos os
foreiros Pedro Migueis, do Cando e outros do Vale de Poldros, bem como o
enfiteuta Gonçalo Fernandes, da Aveleira.
TESTEMUNHOS DOS GLACIARES
A especialista Raquel Alves, professora da Universidade do
Minho, prestou um contributo eloquente na comemoração do Dia do Brandeiro,
versando os testemunhos glaciares existentes e explicando a movimentação dos
mesmos.
A comunicação científica, com rigor em matéria da sua
especialidade, motivou os numerosos participantes que enchiam o salão do
recinto da Senhora da Guia.
“Quando o glaciar começa a retrair-se deixa na extremidade as
moreias frontais e terminais as quais podem formar morros de calhaus com
dezenas de metros de altura.
Podemos ver moreias de intersecção na junção do rio Vez e seu
afluente no rio Aveleira.
Nas margens do curso superior do rio Vez podem observar-se
também moreias laterais, de fundo e terminais”. (in Olhares Multidisciplinares-Branda da Aveleira, 2001).
Os interessados em aspectos geológicos podem concretizar “o
percurso geológico da Aveleira-Gave-Melgaço verificando a riqueza do
geossítio”.
VOLTAREMOS À BRANDA
A fim de dar continuidade ao património vivo da Branda da
Aveleira, no final da sessão cultural e de homenagem aos brandeiros foram apresentadas
várias sugestões.
Assim, deve-se proceder à conservação de uma cardenha como
núcleo museológico, bem como um cortelho do gado.
Por outro lado, fomentar a participação de várias entidades
para se definir e divulgar a “Rota Cisterciense do Alto-Minho” que nasce no
Mosteiro do Ermelo, passando pelo Mosteiro de Fiães e tendo o seu termo no
Mosteiro de Santa Maria de Osseira, na Galiza.
Perspectivou-se ainda a comemoração dos vinte anos do Dia do
Brandeiro a acontecer em 2016.
É de referir que o convívio contou com os tocadores de
concertina, portadores de espécimes raras de autênticas academias de música
regional.
Os brandeiros que comungaram com estes pedaços de terra, onde
cada espaço está denso de permanência e universalismo, foram os grandes
protagonistas e construtores de uma trama espessa e indissolúvel, onde os
factores geológicos, geográficos, ecológicos, económicos, antropológicos e a
biodiversidade operaram uma constante simbiose que contribuiu para a coesão
social em que o ideário celtista deixou marcas perduráveis.
Os brandeiros foram e são homens de carácter firme,
personalidades simbólicas e poéticas.
“Não é só na grande cidade, / que os poetas cantam bem; / Os
rouxinóis são da serra / E cantam como ninguém.”
Voltaremos à branda da aveleira com J. Rosseau no pensamento:
“Quando queremos estudar os homens precisamos de olhar à nossa volta; mas para
estudar os homens, precisamos de aprender a levar mais longe os nosso olhar;
devemos primeiro observar as diferenças para lhes descobrirmos as
propriedades.”
Bibliografia:
- Lima, José Rodrigues (coordenador), “Olhares
Multidisciplinares – Branda da Aveleira”, 2001.
- Oliveira, Ernesto Veiga de, “Construções Primitivas em
Portugal”, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991.
- Dias, Jorge, “Rio de Onor, Comunitarismo agro-pastoril”,
Lisboa, Editorial Presença, 1984.
- Ferro, Gaetano, “Sociedade humana e ambiente, no tempo”.
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979.
- Ribeiro, Orlando, “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”.
Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1986.
- Moreira, A., Simões M. “Carta Geológica de Portugal”,
1/50.000, Folha 1-D, Arcos de Valdevez.
- Sampaio, Gonçalo, “Flora Portuguesa”, Ed. 2, Porto, 1947.
- Jorge, Vítor Oliveira; Silva, Eduardo Jorge Lopes da;
Baptista, António Martinho; Jorge, Susana Oliveira, “As mamoas do alto da
Portela do Pau (Castro Laboreiro, Melgaço), Sociedade Portuguesa de
Antropologia e Etnologia, Porto, 1997.
José Rodrigues Lima
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