O sal e a religião
Por Anselmo Borges
DN 17.01.2015
A propósito dos trágicos e bárbaros acontecimentos em
Paris ficam aí algumas reflexões
1. Estamos confrontados
com a questão do outro. Somos, por natureza, sociais: fazemo-nos uns aos
outros, a nossa identidade é sempre atravessada pela alteridade. Mas o outro
enquanto diferença é ao mesmo tempo espaço de fascínio — quem não gosta de
viajar para conhecer outros povos, outras culturas? — e de perigo — o outro é o
desconhecido perante o qual é preciso prevenir-se.
Viveremos cada vez mais
em sociedades multiculturais e multi-religiosas. Aí está a riqueza da
diferença, mas, simultaneamente, o sobressalto dessa mesma diferença. Isto
impõe o conhecimento mútuo, o diálogo intercultural e inter-religioso. É cada
vez mais claro, como há muito repete o teólogo Hans Küng: não haverá paz entre
as nações sem paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões sem o
seu conhecimento e o diálogo entre elas; urge um consenso ético mínimo global.
2. A liberdade de
expressão é um direito fundamental e uma conquista civilizacional a que se não
pode renunciar. Também no domínio religioso: estou, por exemplo, convencido de
que, se a liberdade de pensamento e de expressão na Igreja Católica não
estivesse tão tolhida, ela, Igreja, não teria tido os problemas e até infâmias
por que tem passado.
Face à crítica da
religião, até com cartoons satíricos, patetas e boçais, não fico aflito. Já
Kant escreveu que a religião, apesar da sua majestade, não está imune à
crítica. Distingo muito bem entre o Sagrado, Deus em si mesmo, que nós nunca
atingimos — os cartoonistas também não — e as nossas formas humanas de nos
relacionarmos com Ele. Ora, muitas vezes, essas formas são ridículas, inumanas,
supersticiosas, e os críticos obrigam-nos a ver isso e a corrigir.
Evidentemente, quem
critica deve ter o sentido das suas responsabilidades quanto ao que faz e às
suas consequências. Há críticas patetas e boçais: elas ficam com os seus
autores.
Por outro lado, quem se
sente ofendido ou injuriado, ferido nos seus direitos, tem o direito à defesa
segundo a lei: protestando, organizando manifestações, recorrendo aos
tribunais. Não se pode é recorrer à violência, ao terror que mata. Frente a um
deus que legitimasse a violência bruta, a degola, a violação, a decapitação, só
haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu. Um deus assim seria pior do
que nós, quando estamos de bem com a razão e a humanidade.
3. É sabido que também
há fundamentalismo entre os cristãos, como lembrou o Papa Francisco, e também
os cristãos cometeram barbaridades sem conta. De qualquer modo, aprenderam,
também a partir dos ensinamentos de Jesus, que é necessário ler criticamente os
textos sagrados, separar a religião e a política, criar Estados laicos, que
garantam a liberdade religiosa de todos, incluindo a dos ateus, e resolver os
diferendos e castigar os crimes, seguindo leis votadas em Parlamentos
pluralistas e democráticos.
4. Não creio que haja
guerras e violência exclusivamente religiosas. Aí, a religião servirá sobretudo
para legitimar interesses outros: políticos, económicos, geoestratégicos.
Penso, por exemplo, que há velhos ressentimentos do mundo muçulmano contra o
Ocidente. Lá estão a colonização, as cruzadas, a questão da Palestina, a
invasão do Iraque e o bombardeamento da Líbia e o caos que se seguiu, a falta
de integração daqueles e daquelas que vivem nos arrabaldes das cidades
europeias. Isso não justifica de modo nenhum o terror em nome de Deus, e
impõe-se, por exemplo, combater, também pela força das armas, o autoproclamado
Estado Islâmico, no quadro, evidentemente, do Direito Internacional. Mas dá que
pensar e obriga a agir.
5. Como dá que pensar
que milhares de jovens europeus sejam aliciados pelo jihadismo para combater
nas fileiras do Estado Islâmico. O que é que os move? Não será também porque,
face ao vazio de valores, no quadro de um consumismo pedante e do tédio gerado
pelo hedonismo fácil, não encontrando sentido, procuram uma grande causa,
embora louca? Perante o nada de valores de uma Europa descrente de si,
decapitada pelo materialismo, buscam no califado a senda da heroicidade e da
salvação?
6. Quando vou a Viseu,
passo pelo monumento ao bispo D. António Alves Martins, meditando na sua
afirmação sob a estátua: "A religião deve ser como o sal na comida; nem
muito nem pouco; só o preciso." Por outras palavras, quanto à religião,
nem de menos nem de mais. Estou convencido de que, sem religião, isto é, sem a
religação ao Mistério último, a vida humana é mais pobre, acanhada, sem
horizonte de transcendência e sentido último. Mas espreita sempre o perigo do
fanatismo, que pode espalhar a pequenez, a humilhação e até a morte e o horror.
O fanatismo, desembocando no terrorismo, é o pior inimigo da religião na sua
verdade.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo
Acordo Ortográfico
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