SUSTER E
PREVENIR A BARBÁRIE
por Frei
Bento Domingues, O.P.
Público
18.01.2015
1.
Repetiu-se, muitas vezes, que tanto a religião como a irreligião dos
portugueses eram bastante analfabetas. Basta, porém, um acontecimento relevante
para que os meios de comunicação social mostrem a nossa abundância em peritos
do vasto e complexo mundo das religiões. Uns espantam-se, outros duvidam, mas o
nosso génio repentino tem destas coisas. Seria, porém, injusto não reconhecer
que o panorama da nossa iliteracia religiosa não se tenha vindo a alterar.
Importa, no
entanto, não esquecer de onde vimos, se quisermos compreender a alergia do Papa
Francisco ao clericalismo e ao proselitismo, assim como as resistências ao
espírito das suas reformas. A espantosa entrevista à jornalista argentina,
Elisabeta Piqué, merecia uma demorada visita que terei de adiar[1]. Mas
acima de tudo, se não quisermos confundir o combate aos movimentos terroristas
do “Estado islâmico” com o Islão, importa compreender a calda de cultura religiosa
de que ele se reclama. Uma viagem ao nosso passado católico pode ajudar-nos a
compreender o outro e a ser exigentes no diálogo inter-religioso.
Um
prestigioso investigador do Centro de Estudos do Pensamento Português da
Universidade Católica, Afonso Rocha, mostrou como no século XIX, mais
precisamente, de 1850 a 1910, se processou, em Portugal, uma grande mudança na
filosofia da religião. Numa obra notável – coroa de várias outras - apresentou
e caracterizou as figuras que mais se destacaram nesse significativo período:
Pedro Amorim Viana, José Maria da Cunha Seixas, Teófilo Braga, Antero de
Quental, Guerra Junqueiro, Sampaio (Bruno) e Basílio Teles. Manifestaram-se em
ruptura com o catolicismo da Igreja de Roma, de então, enquanto adversária da
razão, da consciência e do progresso, mas não eram ateus[2].
2. Por um lado, era o próprio
catolicismo português que demonstrava continuar completamente preso àquilo que
representava a tradição católica no seu pior, designadamente no respeitante à
desconfiança para com tudo o que fosse afirmação da liberdade de consciência e
de religião, da razão e do progresso, intransigentemente dogmático e
tradicionalista na sua prática teológica e pastoral, não indo além de um
posicionamento de “reacção”, de “apologética” e de “polémica” em relação a tudo
que tivesse sabor a “moderno”.
Segundo
este autor, o catolicismo português, ao aproximar e identificar as concepções e
as posições destes filósofos e pensadores com o racionalismo, o materialismo, a
irreligiosidade e o ateísmo estava a ser guiado por um espírito claramente
inquisitorial, intolerante e retrógrado. Com o inquestionável apoio do
magistério oficial do Papa da altura, o comportamento teológico-pastoral mais
corrente era o de suspeitar e condenar tudo o que fosse concepções e posições
de sabor moderno, designadamente as que pudessem minar a doutrina e os dogmas
do catolicismo.
Por outro
lado, o novo pensamento português, identificado com a consciência, a razão e o
progresso, propunha uma sociedade baseada na racionalidade positivo-científica,
servida por uma religião de liberdade de consciência e de tolerância. Seria uma
religião mística e da razão, sem hierarquia e sem normas, tão alheia à revelação
positiva e ao carácter institucional, organizado, como às pretensões do dogma
de uma “religião verdadeira”, única e universal, presente na “Igreja de Roma”.
3. Para Afonso Rocha, os pensadores e
filósofos que estudou – em comunhão com outros companheiros estrangeiros -
longe de poderem ser interpretados e apodados de irreligiosos e ateus, tendo em
conta as suas concepções e posições sobre o religioso, deverão ser considerados
como profetas e agentes de uma concepção religiosa assente em valores
perenes e imprescritíveis.
Quais são
esses valores? Uma religião essencialmente mística, de âmbito universal, cujos
“dogmas sacratíssimos” não poderão deixar de ser os da liberdade de
consciência, da tolerância, da razão e do progresso. Conforme os tempos e
lugares, os povos e as culturas poderão traduzi-los em diversas e grandes
religiões.
Para
mostrar a incapacidade do pensamento católico em compreender o repto do
pensamento moderno, a ruptura com o catolicismo de Trento, a liberdade de
consciência e de religião, o autor observa que só na década de sessenta do séc.
XX, com a “Declaração sobre a Liberdade Religiosa”, no concílio Vaticano II, é
que a Igreja conseguiu dar esse salto. Acrescentaria: sem esse salto,
estaríamos na situação cultural e religiosa do Islão.
Foi
muito importante ver aqueles Chefes de Estado de vários continentes, unidos
contra a barbárie e pela liberdade de todos. Mas, diante das suas
responsabilidades históricas e actuais, que estão a fazer para evitar tragédias
semelhantes?
Desfilar
não pode ser o único objectivo daquela grande convocatória. O que importa é
tocar a reunir para encontrarem, nas zonas de conflito, onde reina e se
desenvolve a barbárie, os meios adequados para a suster e prevenir.
18.01.2015
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