VELHAS E NOVAS ESCRAVATURAS
Por Frei Bento Domingues, O.P.
Por Frei Bento Domingues, O.P.
Público, 04JAN2015
1. A escravatura não tem data de
começo. Com a descoberta das Américas começaram a ser usadas como escravas as
populações ameríndias. Depois, recorreu-se ao comércio transatlântico.
Calculando que por cada escravo que chegava vivo, quatro morriam pelo caminho,
o resultado são sessenta milhões de africanos, a que é preciso acrescentar
ainda os destinados às colónias asiáticas de Inglaterra e de França. Somando
tudo, temos, aproximadamente, noventa milhões. Como perguntava Antón de
Montesinos: E estes não serão seres humanos?[1]
Fr.
Bartolomé de las Casas tinha razão para denunciar a destruição tanto das Índias
e como a de África[2].
Marcello Caetano[3]
verifica que até ao século XIX, todas as nações coloniais praticaram a
escravatura. As chamadas colónias de plantação careciam de mão-de-obra adaptada
às condições do meio e que só podia ser obtida mediante a compra de escravos,
no continente africano. Os navios empregados no tráfico dirigiam-se aos portos
de embarque, onde se encontravam estabelecidos os intermediários – os negreiros
-, que geralmente obtinham as suas peças por meio de permuta feita com os
régulos indígenas, visto estes disporem despoticamente da liberdade e da vida
dos súbditos, além de possuírem também escravos e de poderem sempre obter mais
através da rapina e da guerra com outras tribos.
Morrem umas
escravaturas, nascem outras.
2. O Papa, na sua mensagem para o Dia
Mundial da Paz, nota que hoje, na sequência duma evolução positiva da
consciência humana, a escravatura foi formalmente abolida. No próprio Direito
Internacional consta como norma irrevogável.
Mas, apesar
da comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para acabar com a
escravatura, em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para a
combater, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, mulheres e homens, de todas
as idades – são privadas de liberdade e constrangidas a viver em condições
semelhantes às da escravatura.
Bergoglio
não esquece a teologia do Antigo (AT) e do Novo Testamento (NT) que fundamenta
a defesa da pessoa, que tem valor, mas não tem preço. Mas não repousa nessa memória.
Pensa nos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos
mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico
aos trabalhos agrícolas e industriais, tanto nos países em que não há
legislação segundo os padrões internacionais, como naqueles em que há e não é
cumprida.
Não esquece
as condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu
trajecto dramático, passam fome, são privados de liberdade, despojados dos seus
bens e abusados física e sexualmente. Lembra aqueles que, chegados ao seu
destino, depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança,
ficam detidos em condições às vezes desumanas.
Recorda os
que em diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas são obrigados a
passar à clandestinidade, e aqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam
viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações
nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante
em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade
da estadia ao contrato de trabalho... Sim! O Papa pensa no «trabalho escravo».
Como
esquecer as pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam
muitos menores, as escravas e escravos sexuais; as mulheres forçadas a
casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em
sucessão a um familiar por morte do marido, sem poderem recusar?
Bergoglio
não pode deixar de pensar nos menores e adultos, objecto de tráfico e
comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados,
para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou
venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional.
Finalmente,
todos aqueles e aquelas que são raptados e mantidos em cativeiro
por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou,
especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais.
Muitos desaparecem - alguns são vendidos várias vezes – outros torturados, mutilados,
mortos.
3. No cristianismo não pode haver
senhores e escravos. Só irmãos. Jesus nem servos quer, quer amigos. Talvez não
fosse má ideia acabar, de uma vez por todas, com as piedosas evocações de
servas e escravas. Que se perderia com isso?
Quando se
reza: eis a escrava do Senhor, talvez não se pense, que este Senhor não
quer nem escravos nem escravas, mas amigos e amigas. Porque não lhe fazer a
vontade?
Bom Ano
04.01.2015
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