A
passagem do papa Francisco pelo Brasil, para a Jornada Mundial da
Juventude no Rio de Janeiro, deixou profundas marcas e mensagens, já comentadas
amplamente. Desejo, no entanto, retomar o pronunciamento que fez na sua visita
à comunidade da Varginha, no dia 25 de julho.
Não
deixa de ser eloquente que, depois de sua acolhida protocolar na Palácio
Guanabara e da peregrinação a Aparecida, o primeiro pronunciamento público do
papa Francisco no Rio de Janeiro tenha acontecido, justamente, na visita
a uma comunidade pobre. Engana-se, porém, quem pensa que foi apenas um ato
teatral do “Papa dos pobres”.
Foi
daquela tribuna, do meio dos pobres da Varginha, que o Papa pronunciou o
discurso social mais importante de sua passagem pelo Brasil. Palavras simples e
diretas, como é de seu estilo, para que todos pudessem entender, ele falou com
os pobres, mas também se dirigiu a quem tem poder e posses, em todos os níveis,
locais e mundiais. Sua fala, de fato, retrata uma síntese da Doutrina Social da
Igreja.
Observou
o Papa Francisco que os pobres são capazes de dar ao mundo uma grande
lição de solidariedade, “palavra frequentemente esquecida ou silenciada, porque
incômoda”. Dispensando o texto, ele observou que o conceito de solidariedade
é tido quase como um palavrão, que não faz parte de certa concepção do convívio
social nem deve ser pronunciado.
A
noção de solidariedade desenvolveu-se, com sempre maior clareza, no
ensino social da Igreja do século XX. No egoísmo e individualismo, que permeiam
e regulam, com frequência, as relações sociais, cada um, cada grupo ou país é
levado a reivindicar e afirmar seus próprios direitos, sem ter em conta a sua
contribuição para o bem comum. Na atitude solidária há sempre a preocupação
pelo bem comum. A solidariedade é um dos princípios éticos basilares da
concepção cristã de organização social, política e econômica.
Não
se trata de vaga compaixão, distante e descomprometida, diante dos males de
outras pessoas próximas ou distantes; pelo contrário, é o empenho firme e
perseverante pelo bem de todos e de cada um; uma vez que todos dependem uns dos
outros, todos também são responsáveis uns pelos outros.
A
solidariedade é um dever moral, que decorre dos vínculos de natureza
existentes entre todos os seres humanos, membros da mesma espécie e de uma grande
família; todos estão vinculados uns aos outros, no bem e no mal; a sorte de uns
está ligada à sorte de todos. Estamos todos no mesmo barco.
O
dever de solidariedade é o mesmo, tanto para as pessoas como para os
povos. Seria alienante a ordem socioeconômica que dificultasse ou não
estimulasse a solidariedade social. Se dependemos de todos, não podemos
desinteressar-nos dos outros e nenhum povo pode pensar em “ser feliz sozinho”;
nem devemos esquecer, nas decisões que hoje tomamos, dos que virão a integrar,
depois de nós, a família humana.
Algumas
questões, como a economia, a ecologia e a família, requerem, de maneira mais
clara, decisões e atitudes solidárias. A economia mundial é claramente
interdependente e as decisões dos governantes da cada país precisam levar em
conta também o conjunto da economia mundial. Além disso, “negócios obscuros”,
tráfico, mau emprego ou desvio do patrimônio público são atitudes marcadamente
anti-solidárias. Também no campo da ecologia, nossas decisões e posturas, no bem
e no mal, envolvem os outros e as futuras gerações. E a família, base da vida
social, é o primeiro e mais importante sujeito da educação para uma vida
solidária; nela se aprende a compartilhar, a ajustar as necessidades de cada um
às possibilidades e condições de todos.
Negar
o princípio da solidariedade levaria também a negar uma das principais
forças propulsoras da civilização, para adotar novamente a lei da selva, onde
os mais fortes sobrevivem e os mais fracos são abandonados à própria sorte. Os
mecanismos perversos que destroem o convívio social, só podem ser vencidos
mediante a prática da verdadeira solidariedade. Só desta maneira muitas
energias positivas poderão desprender-se inteiramente em prol do
desenvolvimento e da paz. Se é verdade que a paz é fruto da justiça (cf. Is
32,17), podemos afirmar também: opus solidarietatis pax – a paz é obra da
solidariedade.
O
papa Francisco apelou à sociedade brasileira para que não poupe esforços
no combate às injustiças sociais e na luta pela inclusão de todos os seus
membros. A respeito da “pacificação” de comunidades dominadas pelo crime
organizado, advertiu que a pacificação duradoura e a felicidade de toda a
sociedade só serão conseguidas quando não houver mais pessoas abandonadas ou
deixadas à margem: “a grandeza de uma sociedade aparece no modo como ela trata
os mais necessitados, aqueles que não têm outra coisa além de sua pobreza”.
Com
palavras simples e mansas, mas firmes, voltou a afirmar o que já disseram,
antes, outros Pontífices em Documentos do Ensino Social da Igreja: diante das
intoleráveis desigualdades sociais e econômicas, que clamam aos céus, a Igreja
está do lado dos pobres e não pode calar sua voz.
Em
vez de palavras contundentes sobre as manifestações de rua, acontecidas mesmo
durante a sua presença no Rio de Janeiro, ele se dirigiu aos jovens: “vocês que
possuem uma sensibilidade especial frente às injustiças, mas muitas
vezes se desiludem com notícias que falam de corrupção, de pessoas que, em vez
de buscar o bem comum, procuram seu próprio benefício. Nunca desanimem, não
percam a confiança, não deixem que se apague a esperança”.
É
verdade, a realidade pode mudar, quando a solidariedade deixar de ser um
conceito antissocial. “Procurem ser os primeiros a praticar o bem e a não se acostumar
com o mal”, concluiu o Papa.
(Publicado
no Jornal O ESTADO DE S.PAULO, edição
de 10 de agosto de 2013)
Sem comentários:
Enviar um comentário