A
pessoa: ser em tensão
Anselmo Borges
DN 07NOV2015
Já não é
sustentável uma concepção dualista do ser humano, à maneira de Platão ou
Descartes: composto de alma e corpo, matéria e espírito. O homem é uma
realidade unitária, para lá do dualismo e do materialismo. O jesuíta J.
Mahoney, que já foi membro da Comissão Teológica Internacional, escreveu de
modo feliz: "Não se deve considerar a alma humana, constitutiva da pessoa,
como se fosse um espírito puro infundido a partir de fora num receptáculo
biológico no instante da concepção, mas referir-se a ela mais apropriadamente
entendendo-a como um brotar ou emergir a partir do interior do próprio material
biológico dado pelos progenitores, genuínos originantes pela sua parte, sem
necessidade de ter de recorrer a uma intervenção divina quase milagrosa, para a
produção de uma nova realidade. Portanto, a afinidade que existe entre matéria
e espírito permite-nos, e inclusivamente exige-nos, considerar o emergir da
nova pessoa humana como um processo que leva tempo e requer um certo período de
existência pré-pessoal como o umbral através do qual se dá a passagem a uma
existência animada no sentido pleno da palavra."
A própria
Bíblia tem uma concepção unitária da pessoa. Por isso, não se crê na
imortalidade da alma, mas na ressurreição dos mortos, não no sentido da
reanimação do cadáver, mas da plenitude da existência da pessoa toda em Deus.
Mas, se a
constituição do homem é a de um ser unitário, também é fundamental entender que
é um ser em tensão. Habituados a pensá-lo como "animal racional",
rapidamente esquecemos a animalidade, para ficarmos apenas com a razão
abstracta. Escreveu Hegel: "O que é racional é real e o que é real é
racional." Mas vários filósofos, como Nietzsche, Freud, Ernst Bloch,
chamaram a atenção para o facto de a razão, o logos puro, não explicar o
processo do mundo: na raiz do mundo está um intensivo da ordem do querer. Quem
mais sublinhou isso foi Schopenhauer: há uma força que tem o predomínio sobre
os planos e juízos da razão: o impulso, a "vontade". Portanto, no ser
humano, há o impulso e a razão, a pulsão e o lógico, o afecto e o pensamento, a
emoção e o cálculo. O próprio cérebro, que forma um todo holístico, tem três
níveis; Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num, mas também em
conflito: o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro
da afectividade, e o córtex com o neocórtex, em conexão com as capacidades
lógicas.
A luz
racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano inconsciente e também
tenebroso. Por isso, nem sempre conseguimos viver em harmonia e é preciso estar
de sobreaviso para não se cair em catástrofes mortais, também porque as
respostas emocionais podem escapar ao controlo racional, por causa do chamado "atalho
neuronal" e do "sequestro emocional": as informações são lidas
pelo cérebro emocional e só depois pelo racional. Quem nunca fez a experiência
de deitar as mãos à cabeça: "Como foi possível eu ter feito isso!.. Aí,
não era eu." Sem emoção, o que seria a vida, na relação com os outros, na
própria ética, no que à música se refere? Mas não se pode esquecer a razão. O
ser humano é rácio-emocional.
Para lá
desta, há muitas outras tensões. Vimos da natureza, somos natureza, mas
contrapomo-nos à natureza, é em nós que a evolução toma consciência de si:
somos da natureza e na natureza e nem sempre a pessoa consegue integrar a
natureza. Vivemos no presente, sempre no presente, mas vimos do passado,
voltados para o futuro; se perdêssemos a memória, não perderíamos apenas o
passado, mas a identidade, já não saberíamos quem somos; e estamos sempre
voltados para o futuro, é ele que nos alenta pela esperança. Já somos, mas
ainda não somos o que havemos de ser. Somos finitos, mas estamos
constitutivamente abertos ao Infinito e perguntamos ao Infinito pelo Infinito,
isto é, por Deus. Sabemos que sabemos e sobretudo sabemos que não sabemos e,
por isso, perguntamos ilimitadamente; daí, vivermos no desassossego, inquietos.
Somos limitados, mas a condição de possibilidade de darmos conta do limite é o
ilimitado, de tal modo que, indo ao fora de nós, ao que há e ao que não há, ao
real e ao possível e ao impossível, ao ser, vimos a nós numa intimidade única.
Estamos em nós e no outro de nós: dentro e fora de nós. E desdobramo-nos,
reflectindo, de tal modo que, vendo-nos como sujeito que se objectiva, tomamos
consciência da nossa identidade. Ah, e o outro! Vamos ao encontro do outro, mas
do outro que é outro como eu, mas sobretudo um eu que não sou eu: um outro eu e
um eu outro. E lá está o encontro, feito de alegria, de fascínio, mas também o
desencontro da ameaça e do possível conflito.
Saber e
sabedoria têm o mesmo étimo: sapere, relacionado com sabor. Para viver, não
basta o saber, que é sobretudo teórico, racional. A sabedoria de viver implica
a consciência das tensões e conviver sabiamente com elas.
http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/a-pessoa-ser-em-tensao-4873797.html
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