O CULTO DOS ANTEPASSADOS NO ESPAÇO DOS
VIVOS
José Rodrigues Lima
A solidariedade que se estabelece numa comunidade, quando se anuncia o falecimento de alguém, novo ou idoso, é significativa. A mobilidade social é uma realidade aquando o velório, o funeral e as missas pelas almas dos falecidos. Aliás, as ofertas em honra dos mortos, a encomendação das almas, a celebração do “cabo d’ ano”, influência da Galiza em terras do Alto Minho, o milho para as almas, a reza anual, as procissões ao cemitério, a cerimónia do “acendimento” na igreja paroquial de Castro Laboreiro e das obradas noutras localidades, no domingo seguinte ao falecimento de alguém, são testemunhos eloquentes de que “os mortos pertencem aos vivos, conforme expressão popular.
Algumas destas tradições foram-se
perdendo numa sociedade em mudança.
A poetisa Teresa Rita Lopes escreveu, no seu livro
“Cicatriz” que “o cemitério é lindo/na espuma de asseio/qual salinha de estar”.
O signo linguístico cemitério, conforme a origem do
grego significa “dormitório”, e por derivação dos povos germânicos terá o
significado de “jardim da igreja”. Á referida literata acrescenta ainda; “desde
que sento à minha mesa /mais mortos do que vivos/percebo a necessidade dos
antigos/de imaginar, os deuses lares/de sentir sobre nós/os gestos
protectores/dos antepassados/A sua bênção.”
A consciência da morte abre as portas do simbólico da
fantasia e do imaginário com apelos ao inconsciente colectivo. Fustel de Coulanges
afirmou que uma família era um grupo de pessoas às quais a religião permite
invocar o lar e oferecer o mesmo banquete fúnebre aos antepassados.
Testemunhos -
A Lapa dos Defuntos
Desde o sitio de Cevide, em S. Gregório – Melgaço,
onde se encontra um nicho das alminhas, mesmo onde o afluente Trancoso desagua
o rio Minho, até ao planalto de Castro Laboreiro, onde o seu conjunto dolménico
expressivo, e atravessando litoral minhoto, encontramos o dólmen da Barrosa e a
mamoa da Eireira, bem como a pedra do repouso em Cardielos, constituindo
testemunhos significativos do culto dos mortos.
Nas terras do Soajo são referências do culto aos
antepassados o dólmen do Mezio, a Lapa dos Defuntos na Portela do Galo, e o
monte da freguesia da Ermida na Serra Amarela.
No Lindoso localiza-se o penedo do descanso, ponto de
paragem do cortejo fúnebre. Merece referência, ainda, “A cadeia da saudade”,
utilizada na zona ribeira da cidade de Viana do Castelo.
O culto dos mortos é uma constante no Noroeste
Peninsular, e tem merecido a investigação de José Mattoso, Pina Cabral, Marcial
Gondar, Lison Tolosana, Mandianes de Castro, V. Risco, Taboada, Xivite, A.
Fragas Fragas, Patrícia Galdey, Brian
O’Neill, Margarida Durães, Gabriela Oliveira, Constantino Cabral, Clara
Saraiva, Marino Ferro, Xosé Rego, entre outros.
Nas sociedades arcaicas, como refere F. Maria, os
homens temiam o contágio da morte, simbolizada pela decomposição do cadáver,
procurando evitá-la, ou apressá-la através de rituais e práticas funerárias que
simultaneamente exprimem a angústia da morte e a aspiração à imortalidade.
Os símbolos da morte, a iconografia, as manifestações
funerárias, os rituais em honra dos antepassados, fazem parte do quotidiano das
populações, e apresentam uma diversidade antropológica e histórica.
Manancial abundante sobre a demografia histórica e a
antropologia são os registos paroquiais, incluindo os livros das confrarias das
almas, tão arreigadas no Alto Minho. Fazendo uma análise sobre a documentação
referida, constatamos abundante informação e doutrinação sobre a morte.
“lembra-te da morte e não pecarás”; “Lembra-te homem que és pó. E em pó hás-de
tornar-te”; “a vida muda-se, não acaba”. Mesmo assim, é de referir a
persistência de alguns ritos pagãos. Nos atos mais solenes dos “vivos”, e a
decorrer no calendário anual. O “mortos” estão presentes.
Perspectiva
Antropológica
Segundo Mircea Eliade, a agricultura, como técnica
profana e como forma de culto, encontra o mundo dos mortos em dois planos
distintos. O primeiro é a solidariedade com a terra; os mortos como sementes,
são enterrados, penetrando na dimensão clónica só a eles acessível. Por outro
lado, a agricultura é, por excelência, uma técnica de fertilidade, da vida que
se reproduz multiplicando-se, os mortos são particularmente atraídos por este
mistério do renascimento.
Semelhantes às sementes enterradas na matriz telúrica,
os mortos esperam o seu regresso à vida sob uma nova forma. É por isso que eles
se aproximam dos vivos, sobretudo nos momentos em que a tensão vital das
comunidades atinge o seu máximo, quer dizer, nas festas chamadas da
fertilidade, quando as forças da natureza e do grupo humano são evocadas,
desencadeadas e exacerbadas por ritos.
As almas dos mortos estão sedentas de plenitude
biológica, de excesso orgânico, pois este transbordamento vital, compensa a
pobreza da sua substância, e projecta-nos numa corrente impetuosa de
virtualidades e de gérmens. M. Eliade acrescenta, ainda que o festim colectivo
representa justamente esta concepção de energia vital, com todos os excessos
que implica é, pois, indispensável, tanto para as festas agrícolas como para a
comemoração dos mortos. Outrora, os banquetes tinham lugar perto dos próprios
túmulos, para que o defunto pudesse participar do excedente vital desencadeado
perto dele.
Citando alguns casos, aquele investigador refere que na
Índia, o feijão era uma oferenda levada aos mortos. Na China, o leito conjugal
encontrava-se no canto sombrio da casa, no sítio onde se conservavam as
sementes, e por cima do lugar onde enterravam os mortos.
A ligação entre os antepassados, as colheitas e a
sexualidade é tão estreita, que os cultos funerários, agrários e genéticos se
interpenetram, às vexes, até à sua completa fusão. Nos povos nórdicos, o Natal
(Jul) era a festa dos mortos e ao mesmo tempo, uma exaltação de fertilidade e
da vida. É no Natal que se realizam banquetes copiosos, e moutas vezes, se
celebram os casamentos e se cuida dos túmulos.
Os mortos regressam nesses dias para tomarem parte nos
ritos de fertilidade dos vivos. Na Suécia, a mulher guardava no baú do dote um
pedaço de bolo de casamento para o levar consigo para a cova. Da mesma forma,
tanto nos países nórdicos como na China, as mulheres são amortalhadas nos
vestidos de noivas.
Rituais na
Várzea
Entre nós, e bem localizada na povoação da Várzea,
aldeia do Soajo, mesmo junto da raia portuguesa e galega, ainda há pouco tempo
se conservava o costume referido por Mircea Eliade, pois o vestido de noiva
acompanhava a defunta para a cova. Noutras localidades, também na noite de Ceia
de Natal, os lugares à mesa contam sempre com o falecido ou falecida naquele
ano, colocando as famílias pratos e talheres, para os que já partiram, como se
estivessem em comunhão física. Em tempos praticou-se o costume de se dormir na
cozinha, sobre a palha, na noite de natal, deixando as camas desocupadas para
que “os antepassados” que comparecessem, se pudessem deitar e dormir na cama,
conforme refere E, Verga de Oliveira.
A mesa fica com comida, pois durante a noite, os
antepassados vem associar-se à festa dos vivos. Aliás, faz parte da estrutura
cultural desta zona do Ocidente, a comunhão com os antepassados sendo de sublinhar
a Costa do Norte (Galiza).
Comunhão com
os Antigos
Procurando estar de acordo com o investigador Carlos
A. Ferreira de Almeida, os castrejos depois de incinerarem os mortos, colocavam
as suas cinzas dentro ou ao lado das suas casas de habitação. Uma sociedade
consanguínea que não dispensa a comunhão com os antigos.
O interesse que os mortos da família e o culto das
almas têm nesta zona, nos tempos modernos, e de que uma das mais originais
expressões é a dos nichos das alminhas, tem assim longínquos antecedentes.
Conforme explica Teófilo Braga no livro “O Povo
Português nos seus costumes, crenças e tradições, a expressão sapatos de
defunto está relacionada com o compromisso duma confraria de Coimbra (1835),
que regulando o enterro dos “irmãos”, diz que os sapatos do confrade morto
ficariam “para o campaneiro”. Nestas confrarias ou irmandades, o campaneiro era
o que avisava para o enterro, tocando a campainha pelas ruas, competindo-lhe
essa gratificação. Na Escócia este costume está materializado em superstição. O
escritor Watter Scott relata nos “Cantos Populares da Escócia” uma canção, a
ser executada diante da pessoa falecida, e acompanha-a com esta notícia
extraída de um manuscrito; “acredita-se que é bom dar uma vez na vida um par de
sapatos a um pobre, porque após a morte, o defunto é obrigado a passar descalço
através da sua grande braseira, cheia de espinhos, a não ser que pelos muitos
méritos da esmola indicada, se resgate dessa penitência. À margem da braseira
aparece um velho e entrega os mesmos sapatos, que em vida lhe foram oferecidos.
Assim, calcando-os, o benemérito poderá com eles atravessar os sítios mais
ásperos. Em algumas zonas do país, ainda se conserva a expressão: “quem espera
por sapatos de defunto, toda a vida anda descalço”
Memória
Paroquial
Consultando os registos paroquiais da freguesia de
Chaviães, Melgaço, localizamos o livro misto de 1597, presentemente retirado à
consulta, devido ao mau estado de conservação.
É de mencionar, que, em 1662, o Abade Francisco de Lyra
Castro narrou o seguinte registo de óbito: “Aos vinte e oito dias do mês de
Outubro do ano de mil seiscentos e sessenta e dois faleceu, com todos os
Sacramentos, Domingos Rodrigues, da Portela do Couto, meu freguês, de uma bala
com que foi passado, saindo da Praça de Melgaço a pelejar com o inimigo, o
galego, que ao tal tempo veio em arrebaldes da dita Praça. Seu corpo foi
sepultado nesta Igreja. Fez testamento em que dispôs por sua alma dezoito missas
repartidas em três ofícios. E para que conste de tudo fiz e assinei. Francisco
de Lyra Castr. Abb”. À margem “Registado – 1º Estado 6; 2º Estado 6; 3º outros
6 – Domingos Rodrigues.
O mesmo abade “lavrou”, ainda, em 1666, o seguinte
assento: “Aos dezoito dias do mês de Junho do ano de mil seiscentos e sessenta
e seis faleceu com todos os Sacramentos Isabel Rodrigues, viúva da Tapada desta
freguesia. Fez testamento em que dispôs por sua alma doze missas em três
ofícios, em cada um sua missa cantada e os últimos ofertados cem reis cada um;
mais duas missas votivas: uma a Nossa Senhora da Peneda e outra à Senhora da
Orada. Esmolas à Confraria do Santíssimo um cabaço de vinho; à das almas outro
cabaço de vinho; à Confraria do Nome de Deus, de Nossa Senhora e de S.
Sebastião, a cada uma meio cabaço de vinho. E para que conste foi, digo, seu
corpo foi sepultado dentro da igreja. E para que conste fiz e assinei. Era ut
supra. Francisco de Lyra Castro.
Podemos constatar que naquela paróquia rural e raiana,
bem como noutras, os registos de óbitos estão repletos de informações acerca de
vontades testamentárias relativas aos denominados “bens da alma” e esmolas oferecidas
para sufrágios.
Afogados no
Rio Minho
Do espólio da Confraria das Almas, da Paróquia de Chaviães,
para além dos livros das atas, com as referência que vão desde o “beberete da
irmandade”, o milho recebido, os
juros do dinheiro emprestado, até aos estandartes, encontramos a singular
“tumba” que serviu para transporta muitos afogados no rio Minho, aquando da
Guerra Civil de Espanha e a emigração clandestina, também denominada “a salto”.
As famílias doridas, por vezes, só tinham noticia da triste
ocorrência passado algum tempo. É de registar, como pormenor, que muitos das
vítimas afogadas aquando da guerra civil espanhola, eram deitados ao rio Minho
na ponte de Castrelos, junto a Ribadavia. Dos que tentaram a emigração
clandestina, atravessando o rio, e aí morreram afogados, um era natural dos
Açores.
Relações
Sociais
O antropólogo galego Martino Ferro, procedeu a uma
recolha exaustiva da tradição oral, narrando as aparições dos mortos,
registando o medo que produzem, e as relações entre vivos e mortos.
O referido antropólogo conclui que aquelas narrativas
são uma criação cultural estimável, pois atenuam a angústia perante a morte,
transmitindo normas básicas paras a convivência e reforçando as relações
sociais. A criação cultural depende dum lugar e dum momento histórico.
Da Teologia à
Ate Floral
No Alto Minho registamos, ainda, o canto às almas e o
toque dos sinos pelas almas benditas, bem como os nichos da alminha que se
encontram ao lado dos caminhos.
Os vivos fazem penitência caminhando a um santuário.
Os mortos são os romeiros do além que tem de purificar-se para chegarem limpos
ao “santuário”
Percorrendo os cemitérios, “jardins da saudade”
podemos afirmar que são também espaços culturais onde encontramos símbolos da
teologia da esperança, manifestações da arte funerária, fotografias retiradas
dos álbuns familiares, poemas de carinho, testemunhando-se o sentimento e as
emoções com rituais e silêncios respeitosos.
Os aromas dos cirios acesos e da lamparina de azeite,
os sons pesados dos sinos e os tons de arte floral criam um ambiente de grande comunhão
entre os presentes e os ausentes.
Assim, constatamos que uma das marcas culturais da
nossa memória colectiva, é o culto dos antepassados no espaço dos vivos.
Bibliografia
Ariés, Philipe e
Duby Georges
História da Vida Privada, 5º vol. - Porto Ed.
Afrontamento 1991
Essais sur L’histoire de la Morte n Occident de Moyer
âge à nous jours Ed. Souil, Col. Points
de Histoire 1975.
Arquivo Paroquial de Chaviães – Melgaço
Arquivo da Real Confraria do espírito santo de Paredes
de Coura
Braga, Teófilo – O Povo Português na sua crença, costumes, volume 1 –
Lisboa, D. Quixote, 1985.
Cabral, João
Pina – Os Cultos da morte no Noroeste de Portugal. In “A morte no Portugal Contemporâneo”
trad. Ana Falcão Bastos e José Moura
Carvalho, Lisboa, Quero 1985
Duby Georges, O Purgatório , Lisboa, Editorial Estampa
– 1992
Eliade, Mirea – Tratado da História das Religiões,
Lisboa – Ed. Cosmos 1970.
Ferro, xosé Romon Marino, Aparicion e Santa Compans,
Vigo. Edicions Quamio 1995
Gonçalves, Flávio “Os painéis do purgatório e a origem
das alminhas populares” in Boletim da Biblioteca Municipal de Matosinhos 1959.
Le Roy, Ladurie,
(Em-Manuel) L’Annuer et la Morten Pay d’oc., Ed. Gal-Limard, Paris 1980
José Rodrigues Lima
93 85 83 275
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