ESPÍRITO
CRIADOR
Frei Bento
Domingues, O. P.
Público
07.06.2015
1.
Há pessoas que fazem profissão de optimismo. Olham sempre, ou fingem olhar,
para o “lado positivo” de tudo e, perante qualquer desgraça, repetem: ainda
podia ter sido muito pior! São capazes de recuar até à pedra lascada para
mostrar que agora estamos no melhor dos mundos. Se alguém, mais sensível à
questão social, por exemplo, observa que 20% da população detém 80% dos
recursos mundiais, a resposta já está pronta: as desigualdades são a principal
fonte de progresso para todos.
Quem
não quer ser acusado de negativista refugia-se no prestigiado casamento do pessimismo
da inteligência com o optimismo da vontade. Por não apreciar esses
tranquilizantes, o filósofo espanhol, Xavier Zubiri, apressa-se a declarar que
durante toda a sua vida só conheceu a emoção do puro problematismo.
Um
dos alimentos principais da filosofia são as interrogações. Mas a
problematização contínua é o luxo de quem não tem que decidir. As decisões não
podem esperar ver todas as dúvidas resolvidas. A concepção aristotélica da
prudência – virtude da decisão bem ponderada – recomenda-se tanto aos “tontos
com iniciativa”, como aos eternos hesitantes.
Não
tenho que venerar nenhuma dessas atitudes. A todas falta, seja em que domínio
for, a alma da vida: o inesperado, o imprevisível da criatividade, a fuga à
rotina, a irrupção do novo.
É precisamente por isso que gosto do hino litúrgico de J. A. Mourão, inspirado
e enxertado na música de A. Gouzes. Implora o Espírito do Pentecostes, a grande
metáfora da realidade profunda do mundo e da Igreja em movimento: Sopro
criador vem distribuir a fala! Vem força de partir, vem rio de fogo largo!
Esse é o refrão. O
hino tem cinco estrofes. Deixo aqui duas apenas: Tu que revelas a presença
do Deus vivo / no coração do mundo e da vida / Tu que pulsas em nós como
fermento/ semente de fogo, terra orientada. - Tu és a nossa vontade de viver/
intensamente a vida até ao fim/ o presente e o futuro da nossa esperança/ o que
anima a festa no coração do homem.
2. Quando acolhido no íntimo do
quotidiano, é o Espírito de Cristo que nos volta os olhos para o ritmo
invisível dos trabalhos do mundo, seja na investigação das ciências, nas
surpreendentes aproximações entre pessoas e povos, na criação de beleza em
todas as artes, de todos os tempos, e nos alerta para o desconcerto do
mundo.
Herberto Helder[1], num
dos seus poemas místicos, depois de sugerir a mão que refaz o universo, na sua
unidade rítmica, cada coisa e cada animal com a sua aura, descansa: Sento-me
a conversar com Deus; palavra, música, martelo / uma equação:
conversa de ida e volta (…) Deus não se debruça na canção; destroça/ a
cadência.
Não tem nada a ver com a recomendação piedosa de dar lugar a Deus na nossa
vida. Essa recomendação esquece que é, na realidade do mundo, que se vive a sua
transcendência absoluta. Para o Mestre Eckhart, um Deus que precisa de um lugar
é um ídolo: por isso é que peço a Deus que me livre de Deus. E
sublinhava: Deus só pode estar num lugar sem lugar. Nós, sim! Precisamos
de acordar, seja onde for, para a divindade em que vivemos, nos movemos e
existimos[2].
Os grandes
criadores de paradoxos, os místicos, religiosos ou não, impedem a
linguagem religiosa de perder o sal e adormecer nas definições dogmáticas. O
terminal da viagem da fé teologal não são os credos, o culto, os sacramentos ou
o direito canónico, embora sejam sinalizações importantes nos labirintos do
percurso das Igrejas cristãs. Mas S. Paulo notou que todos os carismas e a
própria fé teologal se desfaz na luz infinita do Amor que nos acolhe no termo
da viagem.
3. No Domingo passado, foi celebrada na Liturgia católica a Santíssima
Trindade. Com música de Langeac, foi cantado, na Missa em que participei, na
capela do Colégio de S. José, um hino muito belo de Santa Catarina de Sena, que
transcrevo:
Ó Deus, Trindade Santa, ó Luz mais radiosa que toda a luz, fogo
mais ardente que todo o fogo, Tu és um oceano, a paz. Tu és um mar sem fundo,
mais eu mergulho, mais eu me afundo, mais eu Te encontro, mais eu Te procuro
ainda. Sede que Tu saciaste no deserto um dia, para sempre ficar com sede de
Ti.
É no dinamismo da
simbólica trinitária, na procura criadora da máxima unidade na máxima
diversidade, que a Natureza e o percurso da História Humana se podem salvar.
Tudo se perde quando, em nome da unidade, se sacrifica a pluralidade e quando,
em nome da diversidade, se esquece a comunhão universal. Como diz o citado
poema de H. Helder: e depois ninguém fala, e cada coisa actua/ sobre
cada coisa, e tudo o que é visível abala / o território invisível./
Redivivo. E foi por essa mínima palavra que apareceu não / se sabe o quê que
arrancou / à folha e à esferográfica canhota a poderosa superfície / de Deus, e
assim é / que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,/
apenas.
Este
poeta tem mesmo a “temperatura de Deus”.
7
de Junho de 2015
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