O primeiro
filho
Sidónio Ferreira Crespo
Meio perdida, aliás, neste instante completamente, regressa
ao quarto da maternidade, deixando o seu que há pouco tempo era parte do seu
corpo, agora, aos cuidados médicos e de enfermagem, para o obrigar a respirar e
a experimentar os seus primeiros momentos secos. A anestesia injectada através da milagrosa
agulha, vai deixando a epidural de fazer efeito e a lucidez absoluta começa,
então, a aparecer, a pouco e pouco.
Eis que chega, depois, a criança recém nascida. Rostinho
redondo, toda flácida, rosada, num sossego que quase sufoca das ondas do amor
que levanta dentro da gente. A chata da enfermeira pergunta se urinou e, quando
finalmente, ouve a resposta afirmativa, acrescenta — e defecou? —. Bolas! Não
são horas de falar nessas coisas, mas nos cuidados, futuros, do bebé.
É hora, também, de regularizar outras situações relacionadas
com a higiene da mulher e daquele que há pouco era nascituro. — Venha tomar um
banho. — Convida a danada da enfermeira.
A pessoa, enquanto tenta calcular todas as possibilidades de
fuga viáveis, responde, automaticamente, após o parto, as sensações vividas são
as mais estranhas. Parece que tudo está solto por dentro do corpo, sem caber,
sem poder segurar-se. Pensar que, no primeiro passo a dar se iria tropeçar, de
certeza, através da mente, no útero ou na bexiga, tudo vencido pela gravidade,
toma-se um prodígio. O pensamento gravita no espaço físico que nos envolve,
dando a impressão que não deve ser muito diferente do que andar no planeta lua.
O que não se poderia imaginar revelou-se, então, quando a
enfermeira pediu para ser tirada a bata do hospital. Nos momentos seguintes, as
cenas vividas deveriam estar censuradas para menores e, principalmente, para
puérperas. A barriga, a barriguinha, da qual tanto se cuida virou uma... uma
coisa completamente diferente do que era antes. Lamenta-se! Mas num jeito
bastante ameno aceita-se, face ao prazer de ser mãe.
A enfermeira aconselha a usar cinta, a fim de dar início ao
esforço, para arrumação interna, do organismo da pessoa. Nada está perdido.
Tudo se conjuga. Vem a caminho a troca de fralda, o bálsamo, as gotas para as
dores intestinais, a compensação do momento, a certeza de que tudo está no
lugar adequado, na hora exacta, na conjugação com a mãe, o pai, restante
família e aquela bênçãozinha toda acautelada. Meu Deus! Tudo gira em volta
daquela criança e nem se dá conta de que tudo isso é o primeiro dia, ou na
verdade, as primeiras horas, orientado pela enfermeira que dá, sempre, uma
mãozinha.
Há mulheres e mulheres! Aquelas que não querem ter filhos
por opção própria. Aquelas que queriam ter filhos, mas a medicina ainda não
debelara as causas impeditivas. Aquelas que gostavam, porventura, de ter
filhos, mas por variadas razões, tanto próprias, como conjunturais, ladeiam o
problema do parto. E há as que a ocasião materna é tudo para elas. Criar um
ser, dentro delas, preso por um cordão umbilical, durante cerca de nove meses e
sentir, com o tempo, essa nova pessoa a criar forma e a dar sinais de
vivacidade, torna-se fenomenal, além de se transformar num dos maiores dons da
natureza. 0 Projecto procriar, à primeira vista, é muito assustador. Surge a
responsabilidade, na vida, de ter que administrar, pela primeira vez, algo que
não pode, jamais, dar errado. Não se pode acabar, cancelar, adiar, deixar para
o outro dia, protelar, prorrogar, delegar, fugir, a correr, para o meio da
rua... É necessário encarar!
O primeiro dia em casa, após a maternidade, torna-se uma
loucura. Falta a prática, sobra a manga da camisa para uns bracinhos tão
miudinhos, sem falar nos intermináveis choros e nos "cocós” em jacto. E o
banho? Loucura colocar na banheira uma coisinha de tão pequena dimensão e
friorenta. Muitas fraldas. As cólicas prosseguem. Depois, tudo se acalma. A
rotina torna-se agradável...
Uma vez em casa, por norma, tudo fica a cargo da mãe, que
atende o bebé, além do não menos trabalhoso puerpério. Nesse período, segundo
dizem os peritos do foro da obstetrícia, tecnicamente compreendido entre os
doze meses que separam o parto da vida normal, as primeiras semanas são
maçadoras. O peito incha, dói, seca, dói de novo, depois racha, a cinta aperta,
a barriga cai toda a vez que se vai tomar banho, mas o marido e os pais, dos
dois lados, agora avós, tentam controlar todas estas crises que afectam o
normal funcionamento familiar. Se os réditos, porventura, não escasseiam,
pensa-se consultar o cirurgião plástico, a fim de reparar todas aquelas
sequelas, através do silencioso bisturi, sem tão-pouco esquecer as estrias
corporais, que só com cremes e massagens ficam apenas disfarçadas. E ninguém
dorme dentro de casa... porque o redentor pequerrucho acorda, a cada instante,
na sequência dos eventuais ataques de choro.
O tempo passa... As feridas cicatrizam, a barriga volta ao
normal, pelo menos ao que se pode considerar normal, dali para a frente, e os
hormónios estabilizam. Nota-se o desdobrar das unhinhas das crianças, as
fraldas vão sujando menos, o umbigo cai, os sonos equilibram-se e tudo, então,
se vai ajustando. Chegará o dia em que a mãe e o pai conseguem acertar,
novamente, a metarmofose do viver.
É uma delícia presenciar o rebento a crescer... Observar os
primeiros sorrisos, a ida às vacinas, as iniciais tentativas de segurar as
coisas, o jeito que vai tomando, que cada dia se torna mais apaixonante. Mas,
quando se está no auge do idílio, acaba-se a licença de maternidade. Que
aborrecimento! Um novo cordão de vida se parte. Uma ruptura mais doída, é
verdade, mas tudo terá de ser adaptado, atenta a lei natural que rege as
coisas.
É nos doze primeiros meses de vida que a criança alcança a
sua maior taxa de crescimento. O normal é dobrar de tamanho e de peso. Sem
falar, tão-pouco, no que tem de aprender a sentar-se, a andar, a expressar as
vontades, a comer, a brincar, a rir e a falar. Vieram os primeiros passos, as
primeiras quedas e, logo em seguida, um tombo enorme, que se espera ser o
único, mas que nunca bate certo. Para maior complicação surge, ainda, a
esquisita comichão numa boca tão pequenina, devido ao nascimento dos primeiros
dentes.
Engraçado! Como o bebé se desenvolve rápido. Aliás, de
repente. Não é que se pariu hoje e nem se sente o tempo passar, até se perceber
que virou a um sujeitinho voluntarioso e falante. Tudo acontece aos saltos! Num
dia mal se sustentam sentados e passado pouco tempo estão engatinhando. Os
primeiros anos de vida são um mundo cheio de descobertas, para o bebé, e
surpresas, para os pais.
A gente fica parva cada vez que uma nova habilidade é
adquirida, por mais que se tenha vivido tudo, ali, sempre de perto. Aparece o
abraço mais apertado e querido do mundo, quando ele, ou ela, numa alegria
cintilante, mostrando uma carinha cheia de felicidade, afirma, de forma
peremptória, sem reservas íntimas, mais ainda com a voz oscilante, que ama os
pais.
Nota: Este conto, por vontade do autor, não segue as normas
do novo acordo ortográfico.
A aurora do Lima – 18 de Junho de 2015
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