segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Da Globalização da Indiferença a uma É tica do Cuidado

Reflexão da CNJP para a Quaresma

de 2015

Da Globalização da Indiferença

a uma Ética do Cuidado


1. “Globalização da Indiferença”, é a formulação usada na Mensagem



do Papa Francisco enviada a todos nós, católicos, para a Quaresma

de 20151. Nessa mensagem o Papa interpela-nos: “Fortalecei os vossos

corações!”2. Como podemos fortalecer os nosso corações face à indiferença?



O termo católico vem do grego “katholikos”, que quer dizer

para todos ou universal. Um católico será então aquele ou aquela que



professa o catolicismo, isto é, que procura ter uma perspetiva universal,

orientando-se para todos os seus irmãos. Na Reflexão para a Quaresma



de 2015 a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), consciente

do seu papel interpelador da comunidade dos cristãos e da sociedade

em geral no que toca às questões de justiça e paz, propõe-se contrapor

à globalização da indiferença uma Ética do Cuidado.

2. Vivemos num mundo de enormes desequilíbrios sociais. De ano a



ano, as fortunas de alguns aumentam face a maiorias que não têm o essencial

para viver. As nossas sociedades produzem exclusões numa espiral

sem fim. A “crise” dos mercados mundiais tem atravessado todas as classes

sociais abalando inclusivamente a “classe média”, com consequências

a nível de desemprego, pobreza infantil, vulnerabilização da vida familiar,

exclusão, etc. No contexto português temos vindo a assistir com alguma

indiferença ao avolumar destes desequilíbrios. Cerca de dois milhões de

portugueses estão em situação de pobreza ou na iminência dela. Continuamos

a ser pressionados pelas imposições do norte da Europa. Nunca

como agora precisamos de coesão social. No entanto cada um (ou cada

comunidade), de um modo individualista, trata de si próprio e ignora o

que se passa à sua volta, esquecendo que as soluções ou são globais... ou

não há soluções.

• Fortaleçamos os nossos corações, afirma o Papa Francisco, ao

mesmo tempo que os alargamos num movimento de dentro para

fora, em ondas de solidariedade. Tornemo-nos Homens e Mulheres

presentes no mundo e não “presentes ao mundo” de uma



forma distanciada e autoprotetora. Nesta Quaresma, tempo de

despojamento e de conversão interior, meditemos sobre o pecado

da indiferença e pensemos nas ações que cada um ou cada uma



pode escolher fazer ou não fazer.

1 Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2015

2 Epístola de Tiago 5, 8

3. Reconhecemos a necessidade de mudanças nas instituições que



nos governam a nível nacional e internacional no sentido de se orientarem

para uma proteção dos mais frágeis e vulneráveis ou mesmo excluídos,

das minorias e dos grupos marginalizados, tomando os seres

humanos e sua circunstância como centro das nossas preocupações e

empenhamentos. Em contraponto, o mundo misterioso dos mecanismos

do “mercado”, das empresas e contas bancárias off-shore, da especulação



e das transações financeiras fictícias, representa os interesses

irresponsáveis de uma minoria. Aceitamos acriticamente o “deus do

mercado” ou aceitamos o desafio do Papa de que o sistema económico

precisa de ser repensado profundamente?

• Quem é este “deus do mercado” aqui e agora, no nosso paí? Que

significa para nós, cristãos, adorar um Deus Único, o Deus de

Jesus Cristo, o “pobre dos pobres” e “Homem de todas as dores”?

• Somos desafiados a pôr em prática as sucessivas interpelações do

Papa Francisco, que nos convida a ser «um corpo que conhece

e cuida dos seus membros mais frágeis, pobres e pequeninos».

Quando o Papa Francisco nos fala “do Lázaro sentado à sua porta

fechada”, como nos sentimos interpelados a cuidar dos “Lázaros

de hoje” e, ao jeito de Jesus Cristo, estendemos a mão e curamos

as feridas no corpo e na alma dos nossos irmãos?

4. «Também como indivíduos temos a tentação da indiferença. Estamos



saturados de notícias e imagens impressionantes que nos relatam

o sofrimento humano, sentindo ao mesmo tempo toda a nossa incapacidade

de intervir. Que fazer para não nos deixarmos absorver por esta

espiral de terror e impotência?», afirma o Papa Francisco. Confrontamo-

-nos com as notícias do terror em que vivem tantos países e populações.

Ao sermos inundados diariamente por essas notícias, corremos o risco

de nos tornamos indiferentes ao sofrimento dos outros – incluindo tantos

grupos cristãos perseguidos –, acomodando-nos na nossa confortável

cegueira. Afirmamos dentro de nós próprios – «ainda estamos num país

seguro...» – esquecendo que a fome, a ausência de condições de saúde e

habitação, o atropelo aos direitos humanos mais básicos, afetam irmãos

nossos. O terrorismo que invadiu a Europa também nos bate à porta e

está a tornar-se nosso vizinho.

• Será que não experimentamos também outros tipos de terrorismo

num avolumar da “espiral de violênciana sociedade portuguesa?



• Inspirados pelo Cristo dos Evangelhos ou por Paulo nas suas

viagens e cartas para todos – judeus e gentios –, como podemos



abraçar solidariamente o mundo com as nossas ações individuais

e coletivas? Como poderemos, como nos exorta Francisco, «unir-

-nos à Igreja do Céu em oração»?

5. Face à insegurança e ameaças de que estamos rodeados, às injustiças



permanentes, ao atropelo dos direitos das minorias, incluindo

as minorias imigrantes, o Papa Francisco reflete: «o sofrimento do

próximo constitui um apelo à conversão, porque a necessidade do irmão

recorda-me a fragilidade da minha vida, a minha dependência

de Deus e dos irmãos.» Cada vez mais raras vezes vamos para a rua

manifestar-nos, denunciando as gritantes injustiças que se instalaram

de modo subtil nas sociedades e países onde vivemos, a não ser que os

nossos interesses imediatos sejam afetados.

• Nesta Europa envelhecida e virada para si mesma, consentimos

que se levantem muralhas entre “nós” e “os outros”? Vamos à raiz

e às causas que provocam o terrorismo? Queremos acolher e fazer

“hospitalidade” e encontro com os imigrantes, em vez de querer

“integrá-los”, muitas vezes à força3? Como nos podemos tornar



mais acolhedores e hospitaleiros: apenas com os turistas que trazem

divisas? Em que medida nos sentimos solidários e responsáveis

pelo que se passa no Mediterrâneo e na ilha de Lampedusa?

Será que não temos Lampedusas no nosso país?

6. Francisco convida a que tornemos as nossas comunidades “ilhas



de misericórdia no meio do mar da indiferença”, (...) «atravessando o limiar

que as põem em relação com a sociedade circundante», não se fechando

em si mesmas. Queremos que a Igreja seja uma Igreja “do limiar”.

Queremos que as nossas famílias sejam “comunidades do limiar”.

• Quem é a “minha famíia”? O que consideramos uma famíia

alargada? Como acolhemos e ajudamos na Igreja e nas nossas

famílias e comunidades, afirmando-os, aqueles que vivem nas

periferias, sejam elas económicas, sociais, culturais, geográficas,

étnicas, religiosas, de orientação sexual ou outras? Visitamos

3 Ver Comunicado da CNJP de 3 de fevereiro de 2015.



os presos e os doentes sem família? Vamos à procura dos sem-

-abrigo? Apoiamos e acolhemos em nossas casas as famílias no

limiar da pobreza? Como ajudamos os que se encontram no flagelo

do desemprego? Que apoio damos às crianças e jovens que

se defrontam com o insucesso escolar? Como nos solidarizamos

com as vítimas de violência doméstica, dos abusos sexuais e da

pedofilia? Como escutamos a solidão de tantos? Como cuidamos

ou ajudamos a morrer os mais velhos? Libertamo-nos deles

para os colocar em verdadeiros “depósitos” que não são senão

antecâmaras de tristeza, solidão e morte? Tornamo-nos indiferentes

àqueles que nos deram a vida, a educação e nos transmitiram

valores e cultura/s? Para cada uma destas perguntas a

resposta é do foro individual, mas também coletiva, ao nível da

mudança das estruturas injustas em que vivemos e que queremos

transformar.

7. Alerta o Papa Francisco: «Quando estamos bem e comodamente



instalados, esquecemo-nos certamente dos outros (...), não nos interessam

os seus problemas nem as tribulações e injustiças que sofrem:

assim o nosso coração cai na indiferença? O desemprego atinge dramaticamente

a sociedade portuguesa criando exclusão a todos os níveis. A

pobreza infantil não cessa de aumentar. O trabalho já não faz parte da

identidade do ser-se homem ou mulher. Tornou-se apenas importante

“ter um emprego” que garanta a “minha” sobrevivência e a dos “meus”;

sem emprego caímos no “estigma” que leva muitos à exclusão e à auto-

-exclusão. Os índices de desemprego mantêm-se elevados, com especial

incidência nas mulheres e nos jovens.

A capacidade de resiliência

humana é infinita mas... até quando?

• Desejamos encontrar formas de estender a mão aos nossos irmãos



desempregados. Queremos garantir a multiplicação dos

pães e dos peixes4 para fazer face à fome no corpo e na alma que



atravessa a sociedade portuguesa... e o mundo. Mas estamos

dispostos a encontrar modos de vida mais frugais e simples, vivendo

com menos para que “outros” tenham um pouco mais?

Esses “outros” incluem os que habitam nos antípodas, os cha-

4 João 6, 1-15



mados países do hemisfério sul. Ou escolhemos instalar-nos na

indiferença? Enquanto cristãos, pactuamos com o subemprego, a

exploração pelo trabalho, a “globalização” do trabalho escravo e

o assédio sexual, o “stalking” no trabalho, a discriminação no emprego



das mulheres-mães ou daquelas e daqueles que querem ter

filhos? Que ética de justiça queremos? Justiça diferente para uns

e para outros? Para os que podem pagar e para os que não podem

pagar? Como podemos ser agentes indignados da falta de Justiça,

inspirados pelos ensinamentos de Jesus Cristo quando expulsa os

vendilhões do templo5?

8. O direito à saúde é um direito indelével do ser humano. Deus



criou-nos “seres encarnados”. Diz Francisco: «Na encarnação, na vida

terrena, (...) abre-se definitivamente a porta entre Deus e [os seres humanos],

entre o Céu e a Terra.» Desejamos uma ética da/na saúde que

não discrimine ninguém. A indiferença à dor e sofrimento na carne e

no espírito do outro não será uma negação da parábola do Bom Samaritano?



6

• Queremos ser “autores” e “sujeitos” da nossa prória saúe de



um modo solidário, isto é, pensando nos outros, nos que não têm

sequer um médico ou um hospital para se tratarem. Tornamos

presente o facto de não haver condições mínimas de saúde e sobrevivência

básica noutros pontos do planeta. Mas conformamo-

-nos com uma saúde segregada. Queremos uma saúde para os

que podem pagar e outra saúde para os que não podem pagar?

Somos indiferentes à solidão, abandono, maus-tratos, negligência,

quando se trata de alguns outros?



• Temos direito ao lazer. Mas este será apenas luxo de uns quantos

ou um direito de todos? Podemos usar os tempos de lazer de um

modo solidário, na consciência do privilégio que é ter tempos de

lazer. Podemos saborear a vida apesar das suas restrições: beleza,

arte, cultura, desporto... tudo é dom de Deus. Qual o papel do voluntariado

nas nossas vidas quotidianas? Da gratuidade? Do dom

e daquilo que nos é dado?

5 Marcos 11, 15-19

6 Lucas 10, 25-37

9. Somos desafiados a educar as novas gerações para uma consciência

mundial e planetária. Francisco afirma na sua mensagem: «o mundo



tende a fechar-se em si mesmo», assinalando que «o povo de Deus tem

necessidade de renovação para não cair na indiferença nem se fechar em

si mesmo».

• Queremos educar as novas gerações para esta “consciêcia planetária”.



Ensinar-lhes a descentrarem-se, a recusarem perspetivas

etnocêntricas. Queremos levá-las a tornarem-se corresponsáveis

por um “mundo aberto” e interdependente. Queremos educar

todos numa escola inclusiva, que não segregue, permitindo, simultaneamente,



que cada um atinja a excelência de que for capaz.

Mas, então, o que é “liberdade de escolha”? Quem pode ter

liberdade de escolha? Como fazemos contracorrente à exclusão

escolar?

Concluindo....


«A Deus não lhe é indiferente o mundo», afirma Francisco. Esse Deus

que «ama este mundo até ao ponto de entregar o seu Filho pela salvação

de todo o homem». Desejamos alimentar a nossa fome de Deus tornando-

nos mais profundamente humanos na universalidade do nosso catolicismo.

Desejamos beber dessa “Fonte de Água Viva” que é Cristo Jesus.

Contra a globalização da indiferença será então necessária uma

nova Ética. A CNJP propõe uma Ética do Cuidado, enquanto movimento



do nosso coração para fora que, simultaneamente, fortalece por dentro

o coração de cada um e de cada uma de nós: uma ética do cuidado com

tudo e com todos, contrapondo-se à globalização da indiferença.

«O cuidado, afirma Maria de Lurdes Pintasilgo7, trata das atitudes



e das ações que testemunham que os humanos, as suas

comunidades e nações, não estão isolados mas são interdependentes,

conscientes da existência do outro e prontos a comprometerem-

se com os outros (...). A ética do “cuidar” ultrapassa a

7 Maria de Lurdes Pintasilgo, 19w98, Relatório da Comissão Independente População

e Qualidade de Vida (Nações Unidas), pp. 343-344.



um nível muito mais elevado a meta macroeconómica de uma

melhoria de qualidade de vida “algures” no futuro distante. (...)

Uma ética do cuidado reside mais numa prática e menos num

conjunto de princípios prédefinidos. (...) Implica um ‘hábito

geral da mente’ centrado no cuidar (...).»

O Papa convida-nos a passar do paradigma do excesso ao paradigma

da partilha e da solidariedade universal: aprendamos o “hábito geral” de

uma mente centrada no cuidar. Procuremos re-significar, aqui e agora, o

sentido da comunhão dos santos, «a comunhão de todas as coisas santas»,



como afirma o Papa Francisco, deixando que «o amor vença a indiferença

». Nesta Quaresma queremos abraçar a proposta do Papa de «tornar

todas as coisas santas», como antídoto à globalização da indiferença, ao

pecado da indiferença desejando que essa participação nas coisas santas



– «aquilo que cada um possui, não o reserva só para si, mas tudo é para

todos» –, se torne uma verdadeira prática do “cuidado”.

Aceitemos o convite de Francisco ao silêncio, à meditação, à escuta, à

oração. Peçamos a Deus um olhar atento e “não habituado”. Balbuciemos

as Bem-Aventuranças na certeza das nossas limitações mas, simultaneamente,

com a fé de que, com a ajuda de Deus, saberemos «fortalecer os

nossos corações».

Fiquemos com uma nova bem-aventurança, que integra as que conhecemos:

Bem-aventurados vós os que têm um coração forte, solidário e

atento, que experimentam o cuidado em dimensões cada vez mais abrangentes,

interligadas e complexas, porque fareis vosso o Reino de Deus!

Caminhemos nesta Quaresma de 2015 ao encontro da Páscoa da Redenção!

18 de fevereiro de 2015

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