Reflexão da CNJP para a Quaresma
de 2015
Da Globalização da Indiferença
a uma Ética do Cuidado
1. “Globalização da Indiferença”, é a formulação usada na Mensagem
do Papa Francisco enviada a todos nós, católicos, para a Quaresma
de 20151. Nessa mensagem o Papa interpela-nos: “Fortalecei os vossos
corações!”2. Como podemos fortalecer os nosso corações face à indiferença?
O termo católico vem do grego “katholikos”, que quer dizer
para todos ou universal. Um católico será então aquele ou aquela que
professa o catolicismo, isto é, que procura ter uma perspetiva universal,
orientando-se para todos os seus irmãos. Na Reflexão para a Quaresma
de 2015 a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), consciente
do seu papel interpelador da comunidade dos cristãos e da sociedade
em geral no que toca às questões de justiça e paz, propõe-se contrapor
à globalização da indiferença uma Ética do Cuidado.
2. Vivemos num mundo de enormes desequilíbrios sociais. De ano a
ano, as fortunas de alguns aumentam face a maiorias que não têm o essencial
para viver. As nossas sociedades produzem exclusões numa espiral
sem fim. A “crise” dos mercados mundiais tem atravessado todas as classes
sociais abalando inclusivamente a “classe média”, com consequências
a nível de desemprego, pobreza infantil, vulnerabilização da vida familiar,
exclusão, etc. No contexto português temos vindo a assistir com alguma
indiferença ao avolumar destes desequilíbrios. Cerca de dois milhões de
portugueses estão em situação de pobreza ou na iminência dela. Continuamos
a ser pressionados pelas imposições do norte da Europa. Nunca
como agora precisamos de coesão social. No entanto cada um (ou cada
comunidade), de um modo individualista, trata de si próprio e ignora o
que se passa à sua volta, esquecendo que as soluções ou são globais... ou
não há soluções.
• Fortaleçamos os nossos corações, afirma o Papa Francisco, ao
mesmo tempo que os alargamos num movimento de dentro para
fora, em ondas de solidariedade. Tornemo-nos Homens e Mulheres
presentes no mundo e não “presentes ao mundo” de uma
forma distanciada e autoprotetora. Nesta Quaresma, tempo de
despojamento e de conversão interior, meditemos sobre o pecado
da indiferença e pensemos nas ações que cada um ou cada uma
pode escolher fazer ou não fazer.
1 Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2015
2 Epístola de Tiago 5, 8
3. Reconhecemos a necessidade de mudanças nas instituições que
nos governam a nível nacional e internacional no sentido de se orientarem
para uma proteção dos mais frágeis e vulneráveis ou mesmo excluídos,
das minorias e dos grupos marginalizados, tomando os seres
humanos e sua circunstância como centro das nossas preocupações e
empenhamentos. Em contraponto, o mundo misterioso dos mecanismos
do “mercado”, das empresas e contas bancárias off-shore, da especulação
e das transações financeiras fictícias, representa os interesses
irresponsáveis de uma minoria. Aceitamos acriticamente o “deus do
mercado” ou aceitamos o desafio do Papa de que o sistema económico
precisa de ser repensado profundamente?
• Quem é este “deus do mercado” aqui e agora, no nosso paí? Que
significa para nós, cristãos, adorar um Deus Único, o Deus de
Jesus Cristo, o “pobre dos pobres” e “Homem de todas as dores”?
• Somos desafiados a pôr em prática as sucessivas interpelações do
Papa Francisco, que nos convida a ser «um corpo que conhece
e cuida dos seus membros mais frágeis, pobres e pequeninos».
Quando o Papa Francisco nos fala “do Lázaro sentado à sua porta
fechada”, como nos sentimos interpelados a cuidar dos “Lázaros
de hoje” e, ao jeito de Jesus Cristo, estendemos a mão e curamos
as feridas no corpo e na alma dos nossos irmãos?
4. «Também como indivíduos temos a tentação da indiferença. Estamos
saturados de notícias e imagens impressionantes que nos relatam
o sofrimento humano, sentindo ao mesmo tempo toda a nossa incapacidade
de intervir. Que fazer para não nos deixarmos absorver por esta
espiral de terror e impotência?», afirma o Papa Francisco. Confrontamo-
-nos com as notícias do terror em que vivem tantos países e populações.
Ao sermos inundados diariamente por essas notícias, corremos o risco
de nos tornamos indiferentes ao sofrimento dos outros – incluindo tantos
grupos cristãos perseguidos –, acomodando-nos na nossa confortável
cegueira. Afirmamos dentro de nós próprios – «ainda estamos num país
seguro...» – esquecendo que a fome, a ausência de condições de saúde e
habitação, o atropelo aos direitos humanos mais básicos, afetam irmãos
nossos. O terrorismo que invadiu a Europa também nos bate à porta e
está a tornar-se nosso vizinho.
• Será que não experimentamos também outros tipos de terrorismo
num avolumar da “espiral de violência” na sociedade portuguesa?
• Inspirados pelo Cristo dos Evangelhos ou por Paulo nas suas
viagens e cartas para todos – judeus e gentios –, como podemos
abraçar solidariamente o mundo com as nossas ações individuais
e coletivas? Como poderemos, como nos exorta Francisco, «unir-
-nos à Igreja do Céu em oração»?
5. Face à insegurança e ameaças de que estamos rodeados, às injustiças
permanentes, ao atropelo dos direitos das minorias, incluindo
as minorias imigrantes, o Papa Francisco reflete: «o sofrimento do
próximo constitui um apelo à conversão, porque a necessidade do irmão
recorda-me a fragilidade da minha vida, a minha dependência
de Deus e dos irmãos.» Cada vez mais raras vezes vamos para a rua
manifestar-nos, denunciando as gritantes injustiças que se instalaram
de modo subtil nas sociedades e países onde vivemos, a não ser que os
nossos interesses imediatos sejam afetados.
• Nesta Europa envelhecida e virada para si mesma, consentimos
que se levantem muralhas entre “nós” e “os outros”? Vamos à raiz
e às causas que provocam o terrorismo? Queremos acolher e fazer
“hospitalidade” e encontro com os imigrantes, em vez de querer
“integrá-los”, muitas vezes à força3? Como nos podemos tornar
mais acolhedores e hospitaleiros: apenas com os turistas que trazem
divisas? Em que medida nos sentimos solidários e responsáveis
pelo que se passa no Mediterrâneo e na ilha de Lampedusa?
Será que não temos Lampedusas no nosso país?
6. Francisco convida a que tornemos as nossas comunidades “ilhas
de misericórdia no meio do mar da indiferença”, (...) «atravessando o limiar
que as põem em relação com a sociedade circundante», não se fechando
em si mesmas. Queremos que a Igreja seja uma Igreja “do limiar”.
Queremos que as nossas famílias sejam “comunidades do limiar”.
• Quem é a “minha famíia”? O que consideramos uma famíia
alargada? Como acolhemos e ajudamos na Igreja e nas nossas
famílias e comunidades, afirmando-os, aqueles que vivem nas
periferias, sejam elas económicas, sociais, culturais, geográficas,
étnicas, religiosas, de orientação sexual ou outras? Visitamos
3 Ver Comunicado da CNJP de 3 de fevereiro de 2015.
os presos e os doentes sem família? Vamos à procura dos sem-
-abrigo? Apoiamos e acolhemos em nossas casas as famílias no
limiar da pobreza? Como ajudamos os que se encontram no flagelo
do desemprego? Que apoio damos às crianças e jovens que
se defrontam com o insucesso escolar? Como nos solidarizamos
com as vítimas de violência doméstica, dos abusos sexuais e da
pedofilia? Como escutamos a solidão de tantos? Como cuidamos
ou ajudamos a morrer os mais velhos? Libertamo-nos deles
para os colocar em verdadeiros “depósitos” que não são senão
antecâmaras de tristeza, solidão e morte? Tornamo-nos indiferentes
àqueles que nos deram a vida, a educação e nos transmitiram
valores e cultura/s? Para cada uma destas perguntas a
resposta é do foro individual, mas também coletiva, ao nível da
mudança das estruturas injustas em que vivemos e que queremos
transformar.
7. Alerta o Papa Francisco: «Quando estamos bem e comodamente
instalados, esquecemo-nos certamente dos outros (...), não nos interessam
os seus problemas nem as tribulações e injustiças que sofrem:
assim o nosso coração cai na indiferença? O desemprego atinge dramaticamente
a sociedade portuguesa criando exclusão a todos os níveis. A
pobreza infantil não cessa de aumentar. O trabalho já não faz parte da
identidade do ser-se homem ou mulher. Tornou-se apenas importante
“ter um emprego” que garanta a “minha” sobrevivência e a dos “meus”;
sem emprego caímos no “estigma” que leva muitos à exclusão e à auto-
-exclusão. Os índices de desemprego mantêm-se elevados, com especial
incidência nas mulheres e nos jovens.
A capacidade de resiliência
humana é infinita mas... até quando?
• Desejamos encontrar formas de estender a mão aos nossos irmãos
desempregados. Queremos garantir a multiplicação dos
pães e dos peixes4 para fazer face à fome no corpo e na alma que
atravessa a sociedade portuguesa... e o mundo. Mas estamos
dispostos a encontrar modos de vida mais frugais e simples, vivendo
com menos para que “outros” tenham um pouco mais?
Esses “outros” incluem os que habitam nos antípodas, os cha-
4 João 6, 1-15
mados países do hemisfério sul. Ou escolhemos instalar-nos na
indiferença? Enquanto cristãos, pactuamos com o subemprego, a
exploração pelo trabalho, a “globalização” do trabalho escravo e
o assédio sexual, o “stalking” no trabalho, a discriminação no emprego
das mulheres-mães ou daquelas e daqueles que querem ter
filhos? Que ética de justiça queremos? Justiça diferente para uns
e para outros? Para os que podem pagar e para os que não podem
pagar? Como podemos ser agentes indignados da falta de Justiça,
inspirados pelos ensinamentos de Jesus Cristo quando expulsa os
vendilhões do templo5?
8. O direito à saúde é um direito indelével do ser humano. Deus
criou-nos “seres encarnados”. Diz Francisco: «Na encarnação, na vida
terrena, (...) abre-se definitivamente a porta entre Deus e [os seres humanos],
entre o Céu e a Terra.» Desejamos uma ética da/na saúde que
não discrimine ninguém. A indiferença à dor e sofrimento na carne e
no espírito do outro não será uma negação da parábola do Bom Samaritano?
6
• Queremos ser “autores” e “sujeitos” da nossa prória saúe de
um modo solidário, isto é, pensando nos outros, nos que não têm
sequer um médico ou um hospital para se tratarem. Tornamos
presente o facto de não haver condições mínimas de saúde e sobrevivência
básica noutros pontos do planeta. Mas conformamo-
-nos com uma saúde segregada. Queremos uma saúde para os
que podem pagar e outra saúde para os que não podem pagar?
Somos indiferentes à solidão, abandono, maus-tratos, negligência,
quando se trata de alguns outros?
• Temos direito ao lazer. Mas este será apenas luxo de uns quantos
ou um direito de todos? Podemos usar os tempos de lazer de um
modo solidário, na consciência do privilégio que é ter tempos de
lazer. Podemos saborear a vida apesar das suas restrições: beleza,
arte, cultura, desporto... tudo é dom de Deus. Qual o papel do voluntariado
nas nossas vidas quotidianas? Da gratuidade? Do dom
e daquilo que nos é dado?
5 Marcos 11, 15-19
6 Lucas 10, 25-37
9. Somos desafiados a educar as novas gerações para uma consciência
mundial e planetária. Francisco afirma na sua mensagem: «o mundo
tende a fechar-se em si mesmo», assinalando que «o povo de Deus tem
necessidade de renovação para não cair na indiferença nem se fechar em
si mesmo».
• Queremos educar as novas gerações para esta “consciêcia planetária”.
Ensinar-lhes a descentrarem-se, a recusarem perspetivas
etnocêntricas. Queremos levá-las a tornarem-se corresponsáveis
por um “mundo aberto” e interdependente. Queremos educar
todos numa escola inclusiva, que não segregue, permitindo, simultaneamente,
que cada um atinja a excelência de que for capaz.
Mas, então, o que é “liberdade de escolha”? Quem pode ter
liberdade de escolha? Como fazemos contracorrente à exclusão
escolar?
Concluindo....
«A Deus não lhe é indiferente o mundo», afirma Francisco. Esse Deus
que «ama este mundo até ao ponto de entregar o seu Filho pela salvação
de todo o homem». Desejamos alimentar a nossa fome de Deus tornando-
nos mais profundamente humanos na universalidade do nosso catolicismo.
Desejamos beber dessa “Fonte de Água Viva” que é Cristo Jesus.
Contra a globalização da indiferença será então necessária uma
nova Ética. A CNJP propõe uma Ética do Cuidado, enquanto movimento
do nosso coração para fora que, simultaneamente, fortalece por dentro
o coração de cada um e de cada uma de nós: uma ética do cuidado com
tudo e com todos, contrapondo-se à globalização da indiferença.
«O cuidado, afirma Maria de Lurdes Pintasilgo7, trata das atitudes
e das ações que testemunham que os humanos, as suas
comunidades e nações, não estão isolados mas são interdependentes,
conscientes da existência do outro e prontos a comprometerem-
se com os outros (...). A ética do “cuidar” ultrapassa a
7 Maria de Lurdes Pintasilgo, 19w98, Relatório da Comissão Independente População
e Qualidade de Vida (Nações Unidas), pp. 343-344.
um nível muito mais elevado a meta macroeconómica de uma
melhoria de qualidade de vida “algures” no futuro distante. (...)
Uma ética do cuidado reside mais numa prática e menos num
conjunto de princípios prédefinidos. (...) Implica um ‘hábito
geral da mente’ centrado no cuidar (...).»
O Papa convida-nos a passar do paradigma do excesso ao paradigma
da partilha e da solidariedade universal: aprendamos o “hábito geral” de
uma mente centrada no cuidar. Procuremos re-significar, aqui e agora, o
sentido da comunhão dos santos, «a comunhão de todas as coisas santas»,
como afirma o Papa Francisco, deixando que «o amor vença a indiferença
». Nesta Quaresma queremos abraçar a proposta do Papa de «tornar
todas as coisas santas», como antídoto à globalização da indiferença, ao
pecado da indiferença desejando que essa participação nas coisas santas
– «aquilo que cada um possui, não o reserva só para si, mas tudo é para
todos» –, se torne uma verdadeira prática do “cuidado”.
Aceitemos o convite de Francisco ao silêncio, à meditação, à escuta, à
oração. Peçamos a Deus um olhar atento e “não habituado”. Balbuciemos
as Bem-Aventuranças na certeza das nossas limitações mas, simultaneamente,
com a fé de que, com a ajuda de Deus, saberemos «fortalecer os
nossos corações».
Fiquemos com uma nova bem-aventurança, que integra as que conhecemos:
Bem-aventurados vós os que têm um coração forte, solidário e
atento, que experimentam o cuidado em dimensões cada vez mais abrangentes,
interligadas e complexas, porque fareis vosso o Reino de Deus!
Caminhemos nesta Quaresma de 2015 ao encontro da Páscoa da Redenção!
18 de fevereiro de 2015
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