Solidão e ética do cuidado
por
ANSELMO BORGESDiário de Notícias 21.02.2015
Italo Calvino escreveu, em As Cidades Invisíveis:
"A cidade de Leónia refaz-se a si própria cada dia que passa: todas as
manhãs a população acorda no meio de lençóis frescos, lava-se com sabonetes
acabados de tirar da embalagem, veste roupas novinhas em folha, extrai do mais
aperfeiçoado frigorífico frascos e latas ainda intactos, ouvindo as últimas
canções no último modelo do aparelho de rádio. Nos passeios, embrulhados em
rígidos sacos de plástico, os restos da Leónia de ontem esperam o carro do lixo.
Não só tubos de pasta dentífrica bem apertados, lâmpadas fundidas, jornais,
contentores, restos de embalagens, mas também esquentadores, enciclopédias,
pianos, serviços de porcelana: mais do que pelas coisas que dia-a-dia são
fabricadas, vendidas, compradas, a opulência de Leónia mede-se pelas coisas que
dia-a-dia se deitam fora para dar lugar às novas. De tal modo que há quem se
interrogue se a verdadeira paixão de Leónia é realmente como dizem o gozar as
coisas novas e diferentes, ou antes o rejeitar, o afastar de si, o limpar-se de
uma constante impureza. A verdade é que os varredores são recebidos como anjos,
e a sua tarefa de remover os restos da existência de ontem está rodeada de um
respeito silencioso, como um ritual que inspira devoção, ou talvez porque uma
vez deitadas fora já ninguém quer tornar a pensar nessas coisas."
Quem cita o texto é o filósofo
João Maria André, numa conferência tão profunda como terna sobre o tema em
epígrafe, e o que aí fica é uma breve síntese. Leónia é uma metáfora para a
sociedade que quer o permanentemente novo, atirando o velho para fora. Mas hoje
já não são apenas as coisas que se descartam, "descartam-se também as
pessoas". Uma boa metáfora para "a sociedade líquida de
consumo", num tempo de "turbo consumismo", que resulta numa
felicidade paradoxal: "A felicidade está em ser-se permanentemente
infeliz, porque o consumo aumenta cada vez mais a insatisfação e a felicidade
da insatisfação é uma felicidade paradoxal." E aí está a solidão da
"sociedade líquida" (Zygmunt Bauman): "Está só o que consome,
porque se consome e tudo consome no consumismo; está só o que se vê excluído do
consumo, porque não tem acesso a ele."
Há dois modos na solidão: não é a
mesma coisa estar só e sentir-se só. O criador, o religioso, o artista, o
político, em última análise, qualquer ser humano que não queira andar sempre
distraído e à superfície das coisas, precisa de momentos de solidão, para
reflectir e poder estar consigo no mais íntimo e com a transcendência e a fonte
donde procede o ser e o criar: é a solidão habitada. A outra solidão é a
solidão do abandono, dos restos, da exclusão. E cada vez mais é nesta que se
está. Sobretudo os velhos. Nesta sociedade líquida do consumo e da vertigem da
velocidade, não há solidez de relações e de afectos - as relações fazem-se e
desfazem-se, os afectos "gastam-se e deitam-se fora"- nem memória nem
futuro: descartam-se os velhos e não há crianças.
O ser humano enquanto pessoa é
constitutivamente ser em relação, de tal modo que ser e ser em relação coincidem.
A identidade é sempre atravessada pela alteridade, na interacção com os outros.
Assim, ser pessoa enquanto liberdade é ser responsável, capaz de responder:
"Ser é responder, responder ao dom que nos coloca no ser."
Então, com a solidão, no processo
do envelhecimento, é a vulnerabilidade do ser humano que se manifesta: "um
processo de identidade em ruptura"; "a pessoa só, sem pontes para os
outros e para o mundo, é um ser assassinado na sua identidade"; "as
pessoas sós são pessoas anónimas", na angústia da saudade do passado, na
dissolução da memória e na perda do futuro, na incapacidade de ser projecto e,
por isso, de esperança.
A pessoa humana não é espírito
desencarnado, consciência abstracta. Dizia Laín Entralgo: eu sou um corpo que
sente, que pensa, que espera, que ama, que diz eu. Somos presentes pelo corpo.
Assim, a solidão é também ruptura com o corpo: a ausência da palavra, a
ausência do gesto, da carícia, da ternura. E envelhecer é despedir-se do corpo,
a sua perda lenta, no horizonte da morte: "A experiência da morte daqueles
que amamos é a experiência de um corpo que, sendo o corpo deles, já não são
eles no seu corpo."
Cá está então a ética do cuidado,
no sentido profundo e abrangente, holístico, do cuidar, que rompe a solidão
"através das portas corporais" e responde à vulnerabilidade do ser
humano.
Porque é que nos sentimos sós?
"Saber-se e sentir-se só é saber-se e sentir-se desabrigado, sem tecto,
sem morada." Por isso, "ajudar a vencer a solidão é oferecer a alguém
uma morada, uma hospedagem, o cuidado de um abrigo": o abrigo do nosso
olhar, o abrigo do nosso ouvido, da nossa palavra, da nosso mão, dos nossos
gestos, da nossa compreensão e confiança, da nossa estima, "chame-se
amizade ou chame-se amor".
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