OLHAR E ESCUTAR O
DIFERENTE
POR SISTELO (Arcos de Valdevez) COM SÃO MOTINHA
José Rodrigues Lima
Fomos seguindo a estrada que ladeia o rio Vez que corre apressado desde a nascente no Alto da Seida, Lamas do Vez. O território aparece-nos mesmo na curva da estrada. Lançámos os olhares para o Alto da Estrica e para os socalcos onde se cultiva o milho, cereal para a cozedura da broa apetitosa. É a zona mais assocalcada do Alto Minho.
Ingressámos na zona do Parque
Nacional Peneda-Gerês.
Veio-nos à mente o pequeno texto
do escritor Guerra Junqueiro: “O Minho é bom demais. A vida desliza suavemente,
cristalinamente, como regato bucólico. Nada que fira, que morda, que contrarie.
O sol ri, a verdura canta, o
vinho é alegre, o celeiro cheio…
É bom demais, decididamente.”
Recordámos as narrativas de Tomáz
de Figueiredo, José Augusto Vieira, Orlando Ribeiro, Eugénio Castro Caldas e
outros escritores, bem como o livro “Alto-Minho” do saudoso Carlos Alberto
Ferreira de Almeida
Localizámos no centro da aldeia
de Sistelo, de casario concentrado, a denominada «Casa do Castelo», revivalista
e romântica, autêntico “solar do brasileiro”. Trata-se de uma volumosa construção
levantada pelo Visconde de Sistelo, filho da terra embalada pelas águas do rio Vez,
que emigrou para o Brasil, onde fez fortuna e se afirmou como figura
prestigiada na sociedade do Rio de Janeiro.
Era o brasileiro da fala doce…
Sonora, cativante e amiga!
As benfeitorias do brasileiro
benemérito e do seu irmão Visconde do rio Vez estão bem sinalizadas em
testemunhos variados na igreja paroquial, na escola, no cemitério, nos
fontenários e vias rurais da aldeia do concelho de Arcos de Valdevez.
Entrámos na alma do lugar
percorrendo caminhos íntimos, «aqueles onde sentimos o mítico e conhecemos a
história».
Há tempos tivemos conhecimento da
existência do culto ao “santo popular denominado São Motinha”.
A revelação foi-nos feita por
Manuel Dias, sacerdote da Igreja Católica, que pastoreou a localidade durante
breves anos, e afirma que a “devoção” remonta ao início do séc. XX.
A «história» ou a «estória» é
linda de se ouvir.
Motinha era um pobre que
mendigava pelos caminhos da aldeia de Sistelo. Mal vestido e mal comido, e com
o alforje ao ombro. Por vezes calçava uns tamancos de amieiro. A barba crescida
no rosto ajudava ao seu calvário, ou «mistério de vida humilhante e
sacrificada».
Nas roupas mostrava pauperismo e
até falta de higiene, pois dormia aqui e acolá, nos cortelhos ou palheiros, e
na zona mais alta aproveitava as cardenhas. A sua miséria era merecedora de
compaixão e ternura dos habitantes que na Portela de Alvito têm feira quinzenal
e anual a 12 de Setembro, onde o gado bovino, ovino, caprino e cavalar é
transacionado em escala considerável.
Os garranos são apresentados como
exemplares regionais, de características únicas, com presença milenar e
elementos integrantes da paisagem humanizada do Minho.
As mulheres de Sistelo ou Padrão
ofereciam ao Motinha uma malga de caldo de farinha com feijões e couves e adubado
com carne de porco. Por vezes saboreava um pouco de toucinho, uma febra, uma chouriça,
ou um pedaço de orelha do «cerdo» da última matança. Um bom pedaço de pão
acompanhava o presigo. As batatinhas eram sempre desejadas.
E ouvia:
«P’ra onde bás, Motinha?».
Respondia: «Bou por i!».
Ia com ele e com Deus…
Sim, com Deus sempre… E com a sua
pobreza ou miséria.
Ia caminhando meditativo e
derreadinho. «Como triste é ser pobre!… Mas sou respeitado em todas as porta. Deus
é meu pai, pronto!… Bou com Deus!» Da sua boca nunca saiu uma palavra mais
atrevida, de maldição ou de azedume…
Por certo ouviu dos seus
conterrâneos: “Quando o loureiro der baga e a cortiça for ao fundo, é que se
hão-de acabar as más línguas deste mundo”.
Ao receber uma dádiva dizia
sempre: «Seja p’las almas de quem lá tem. Deus o cubra de muitas bênçãos e
aumente o que tem… “Padre nosso.”
Era pobre mas rico de sentimentos.
Fazia lembrar as Bem-aventuranças: «Bem-aventurados os puros de coração».
MENDIGAR É UM TRISTE
OFÍCIO
Aquando dos nossos olhares
antropológicos em Sistelo recordámos a figura do «Velho Garrinchas» descrita
por Miguel Torga (1978).
“Mendigar é um triste ofício”.
Avivamos na memória o que um
pároco escreveu num registo de óbito referente à profissão do falecido: “POBRE”.
Conforme se lê no “Catecismo do
Labrego” de Valentim Lamas Carvaxal, pobres “são aqueles que não conhecem um
dia de fartura”.
Colocámos em prática o «olhar e
escutar várias vezes»…
Comungámos o ar fresco do
território marcado pelo Rio Vez e fomos envolvidos pelos poemas do poeta
popular José Soldado, de Padrão!
“Eu também já vi você
Na minha casa a pedir;
Também lhe dei a esmola
Com bom modo de rir”
Conhecemos a Branda do Rio Côvo e
do Alhal, e as costumeiras da pastorícia com longas pegadas e suores dos
brandeiros.
Ouvimos o canto da passarada e o
afoutar ao gado.
Registámos na máquina fotográfica
imagens panorâmicas e de pormenores das memórias dos homens e das coisas.
Dizíamos: «Boa tarde!».
Ouvíamos: «Pois boa tarde nos
deia Deus!».
Acompanhados por um companheiro
também interessado em descobrir o Alto Minho profundo e inédito, lá nos
decidimos a perguntar pelo São Motinha.
«- Bem, não sei onde estará!
Estebe na igreja, num altar, mas depois um padre mandou-o tirar de lá e foi pra
uma casa. Era um santo pobre e bondoso! Nunca dizia uma maldade e não fazia mal
a ninguém. Até as crianças o respeitabam. Morreu e foi santo! Não sei onde
está! Talbez…»
Por fim, a casa onde é venerado
surgiu…
A senhora que cuida e guarda o São
Motinha estava no lavadouro público… Vestia de preto.
Dissemos ao que vínhamos: «Seria
possível ver o São Motinha?»
«Esperem um pouco, que eu bou lá
a casa.»
Entrámos numa casa de granito escurecido
pelo tempo. Passámos pela cozinha, olhando o grande pote de três pernas.
Chegámos à grande sala, a denominada “Sala da Páscoa”, em terras minhotas.
No meio do espaço doméstico mais
valorizado, numa mesa com uma toalha de linho estava colocada a
escultura/imagem de madeira de São Motinha, esculpida por um artista local.
Uma linda toalha e uma malga
tradicional com esmolas, contendo notas e moedas… Testemunhos da devoção ao santo
canonizado pelo povo. Vox populi, vox Dei
(Voz do povo, voz de Deus).
O silêncio respeitoso foi
eloquente e ouvimos «estórias lindas» que percorriam latitudes longínquas, com
saudades dos tons, dos sons, das vozes do mundo de Sistelo.
Como escreve o antropólogo Pina
Cabral, «Faz-se o pagamento ao Santo, pede-se a sua ajuda e protecção».
Mas o ritual tem de ser
completado e perfeito.
Numa mesa ao lado e com rendada
toalha, está uma garrafa de vinho branco, outra de vinho do Porto e um pratinho
com bolachas, talvez “Maria”!!!
LITURGIA LOCAL E
INÉDITA
Todos aqueles ou aquelas que
visitam o Santo que nasceu, viveu, mendigou e morreu na sua terra e «não tinha
maldade», pois «era um autêntico profeta de outro modo de vida”, devem terminar
o seu cerimonial numa autêntica liturgia local e inédita, criadora e simbólica,
de reciprocidade e comunitária, num verdadeiro sentido do «facto social total»,
segundo o pensamento de Marcel Mauss.
E ficámos a reflectir, com muito
respeito, pela luz que cada um transporta…
“Seria um poeta clarividente?”
(J. Heers)
A leitura do livro «Formas
Elementares da Religião», de Emille Durkheim, fornece-nos doutrina consistente
sobre as leituras do “facto social total originário”.
E o que se sente na alma e a boca
por vezes confessa, faz parte dos tais caminhos íntimos e das bênçãos que se
desejam para continuar a peregrinação pelas estradas da vida.
De acordo com A. Custódio
Gonçalves “a apreensão das diversas memórias colectivas dos grupos faz-se
sobretudo através da comunicação oral. A memória colectiva interage igualmente
com a memória individual, caracterizada pela capacidade pessoal da evocação de
uma imagem recordação.”
Recordámos do Livro do
Apocalipse: «Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir
a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo» (3:20).
Continuaremos atentos à
religiosidade popular, que no dizer do antropólogo compostelano Marcial Gondar,
«é um bô miradoiro donde ollar unha sociedade».
Conforme o sociólogo António
Joaquim Esteves, “nas terras minhotas a arte da solidariedade conviveu com a
arte da solidariedade ativa.”
No regresso de Sistelo e
transportando emoções sentidas pelas comunidades, lemos de Armando Cunha:
“O Vez passando, tão descuidado…
Como um sonho que não se esvai,
Dá-nos lembranças do que é
passado;
Dá-nos saudades do que lá vai…”
Lembrámos de Pierre Bourdeux: “O
que fala nunca é o discurso, a palavra, mas toda a pessoa social”.
José Rodrigues Lima
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