Igreja de portas abertas, mesmo para
“marcianos”
Este é o
clamor do Papa Francisco lançado hoje, dia 12 de maio, a partir da homilia na
celebração eucarística em Santa Marta como comentário à 1.ª leitura da Liturgia
da Palavra.
Apesar de
Jesus ter enviado os discípulos por todo o mundo e ordenado que fizessem
discípulos de todas as nações, ensinando todas as gentes a observar tudo quanto
lhes tinha mandado (cf Mc 16,15; Mt 28,19-20; Lc 24,47), não havia maneira de
eles compreenderem que a Salvação era para todos e não somente para os judeus.
O livro dos
Atos refere que os apóstolos e os irmãos, que viviam na Judeia, ao saberem que
“também os pagãos haviam acolhido a Palavra de Deus”, censuraram Pedro: “Tu
entraste na casa de pagãos e comeste com eles!” (cf At, 11,1-3). E Pedro teve
de lhes contar o episódio da visão que tivera em Jope: Vira uma espécie de grande toalha sustentada pelas quatro pontas, que
descia do céu e chegava até junto dele. Dentro havia quadrúpedes da terra,
animais selvagens, répteis e aves do céu. Uma voz ordenava: “Levanta-te, Pedro,
mata e come”. Ao que ele retorquiu que não podia ser, pois, jamais entrara
coisa profana e impura na sua boca. A voz repreendeu-o: “Não chames impuro o
que Deus purificou”. Sendo assim, levado pelo Espírito Santo, acedeu a
acompanhar os três homens que lhe haviam sido enviados de Cesareia. E, após
terem entrado na casa que lhes fora indicada, Pedro falou; e, ao ver que o
Espírito Santo desceu sobre os presentes como sobre os apóstolos no
Pentecostes, recordou-se do que o Senhor dissera: “João batizou com água, mas
vós sereis batizados no Espírito Santo”. E concluiu que Deus concedera a eles o
mesmo dom que àqueles que acreditavam em Jesus.
Ora, quem
seria Pedro para se opor à ação de Deus? Ao ouvirem a narração do facto, os
fiéis de origem judaica acalmaram-se e glorificaram a Deus: “Também aos pagãos
Deus concedeu a conversão que leva para a vida!” (cf At 11,6-18).
Este espírito
de capelinha ou de tentativa de circunscrever a vontade salvífica divina a um
grupo ou casta era recorrente, naturalmente ou por medo. Recorde-se o caso da
conversão de Paulo.
Ananias, quando se
sentiu enviado por Deus ao encontro de Paulo, respondeu: “Senhor, a muitos ouvi,
acerca deste homem, quantos males tem feito aos teus santos em Jerusalém” (At
9,13). Foi necessária a tranquilização vinda do Alto: “Vai, porque este é para
mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis e
dos filhos de Israel. E eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome” (At
9,15-16). E foi decisiva a intervenção de Barnabé, porque, “quando Saulo (Paulo)
chegou a Jerusalém, procurava ajuntar-se aos discípulos, mas todos o temiam,
não crendo que ele fosse discípulo” (At 9,26).
E continuou a
dialética entre a tentativa de exclusão e a observação da vontade do Espírito
Santo a guiar a Igreja. Quando (At 14,1-2) “entraram juntos na sinagoga dos
judeus e falaram de tal modo que creu uma grande multidão, não só de judeus mas
de gregos, os judeus incrédulos incitaram e irritaram, contra os
irmãos, os ânimos dos gentios”. Mas não resta dúvida de que é o Espírito Santo
quem guia os passos apostólicos. Veja-se o que se relata em Atos (16,6-10):
Passando pela Frígia e pela província
da Galácia, foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia. E, quando chegaram à
Mísia, intentavam ir para Bitínia, mas o Espírito não lho permitiu. E, tendo passado
pela Mísia, desceram a Tróade. E Paulo teve de noite uma visão em que se lhe apresentou
um homem da Macedónia e lhe rogou: “Passa à Macedónia, e ajuda-nos”. Logo
depois desta visão, procurámos partir para a Macedónia, concluindo que o Senhor
nos chamava para lhes anunciarmos o Evangelho.
Também agora, como
Pedro, em face de umas estruturas eclesiais, por vezes, mais fiscalizadoras que
promotoras, mais legalistas que evangélicas, o Papa se pergunta e nos faz
perguntar a nós próprios: “Quem somos nós para fechar as portas ao Espírito
Santo”? O Espírito, que guia a Igreja, sopra onde quer e como Lhe apraz. Todos
o sabemos, mas persiste a tentação, da parte de quem se considera com fé
indefetível, de Lhe bloquear o caminho e pretender encaminhá-lo numa
determinada direção. É uma tentação experimentada nos alvores do cristianismo e
que aflora muitas vezes ao longo da História da Igreja com seu efeito perverso.
É a narrativa do filho mais velho, o irmão do pródigo, a retorquir ao pai:
Há tantos anos que te sirvo sem nunca
transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para eu fazer uma festa
com os meus amigos. Mas, quando chegou esse teu filho, que te consumiu a
fortuna com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo! (Lc 15,29-30).
Francisco, agarrando
o significado da função do “ostiário” (o ministro das portas e dos sinos) que
existia como uma das ordens ditas menores e cujo papel se mantém hoje
necessariamente, embora sem constituir um ministério específico que postule uma
instituição ritual, sublinha a vertente da abertura. O ostiário não estava para
fechar portas, mas para as abrir. E quem somos nós para fechar portas? –
interroga-se o papa, confessando que é uma ótima palavra para os bispos, os
sacerdotes e também para os cristãos. É de acrescentar que nunca se toca o sino
para mandar as pessoas embora, mas para entrar, prestar uma informação útil,
assinalar celebrativamente algo de importante e significativo.
Francisco insiste em
que Deus deixou a liderança da Igreja “nas mãos do Espírito Santo”. Ele é –
continua o pontífice – “é aquele que, como disse Jesus, nos vai ensinar tudo” e
“nos ajudará a recordar o que Jesus nos ensinou”:
O Espírito Santo é a presença viva de Deus na Igreja. É ele que conduz
a Igreja, que faz caminhar a Igreja. Sempre mais, para além dos limites, mais
em frente. O Espírito Santo com os seus dons guia a Igreja. Não se pode
compreender a Igreja de Jesus sem este Paráclito, que o Senhor nos envia para
isso. E faz estas opções impensáveis […] É mesmo o Espírito Santo que atualiza
a Igreja: na verdade, ele a atualiza e a faz caminhar para frente.
O Papa
Francisco exortou os católicos a construírem uma Igreja de portas abertas e a serem
dóceis às surpresas do Espírito Santo, usando os “marcianos” como imagem do
imprevisível.
“Se amanhã chegasse uma
expedição de marcianos, por exemplo, e um deles viesse ter connosco – sim,
marcianos, verdade, com o nariz comprido e as orelhas grandes, como são
pintados pelas crianças – e dissesse: ‘Eu quero o Batismo’. O que é que
aconteceria?
O discurso
homilético papal, como se viu, evoca o momento de tensão provocado pela
conversão dos primeiros cristãos vindos do mundo considerado pagão, uma prova
de que o Espírito Santo faz a Igreja ir “para lá dos limites, em frente”.
“Quem somos nós
para fechar as portas?” – questionou Francisco, quando tanta gente do mundo
eclesiástico pensa que as portas são para fechar e aferrolhar, mesmo que as
pessoas fiquem à chuva, ao frio ou ao calor do Sol, à seca. Para tanto invocam
invariavelmente o medo, a segurança, a prudência. Todos conhecemos a célebre parábola
dos talentos, em que um dos contemplados pela entrega de talentos para pôr a
render se comportou assim:
Chegou, por
fim, o que havia recebido um só talento, dizendo: Senhor, soube que és um homem severo,
ceifas onde não semeaste e recolhes onde não joeiraste; e, atemorizado, fui
esconder o teu talento na terra; aqui tens o que é teu (Mt 25,24-25).
Será que hoje o homem de Igreja movido pelo medo não merece também a
resposta do Senhor?
Servo mau e preguiçoso, sabias que
ceifo onde não semeei e que recolho onde não joeirei? Devias ter entregado o
meu dinheiro aos banqueiros e, vindo eu, teria recebido o que é meu com juros.
Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem os dez talentos; porque a todo o
que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem,
ser-lhe-á tirado. Ao servo inútil, porém, lançai-o nas trevas exteriores; ali
haverá o choro e o ranger de dentes (Mt 25, 26-30).
“Quando o Senhor nos faz ver o caminho, quem
somos nós para dizer: ‘Não, Senhor, não é prudente, não façamos assim’?” –
afiança o Papa, que convidou todos a rezarem, pedindo ao Senhor a graça da
docilidade ao Espírito Santo, a exemplo de São João XXIII.
Penso também
que é oportuno e mesmo necessário rever o entendimento que se tem dos
versículos de Mateus (Mt 18,17.18), que remetem para a consideração do irmão
como “publicano”, quando ele não ouve a Igreja no quadro da correção fraterna e
para o poder de desligar no Céu o que se desliga na Terra, bem como o versículo
de João, o da hipótese de retenção dos pecados (Jo 20,23).
Poderá efetivamente
o perdão dos pecados ser recusado, como uso de poder ou como castigo de estilo
de vida? Não deverá, antes, o “mediador” humano (porque o verdadeiro mediador é
único, o Senhor Jesus Cristo) agendar convictamente a não desistência de
recuperar o pecador que se mostre impenitente? Em vez de juiz sobre o pecado ou
intermediário do negócio de que reterá o seu quinhão, deverá preferencialmente
fazer-se promotor de arrependimento, mesmo que tenha havido reincidência
(“Perdoar não até sete vezes, mas cada um perdoar a cada um setenta vezes sete”
– vd Mt 18,21.22). O próprio Cristo no caminho do Calvário terá caído por três
vezes. É fraqueza humana e a dinâmica do Evangelho do Reino que o postulam: Se
o irmão te ofender, reprende-o a sós; se não te ouvir, repreende-o diante de
testemunhas; se não vos ouvir, comunica-o à Igreja; e se ela também não for
ouvida, considera-o como um pagão ou um publicano (cf Mt 18,15-17). Aqui está o
busílis. Considerar o irmão como
publicano (pecador público) ou estrangeiro não pode significar desprezo ou
mandá-lo para o inferno, mas colocá-lo como tema prioritário na agenda da
recuperação. É este o furor dos santos!
O administrador dos
mistérios divinos, mais do que guardá-los ciosamente, deve, sim, zelosamente
disponibilizá-los, abrindo-lhes as vias de acesso, de par em par, a quem se
aproxime (e procurar que muitos mais se aproximem), com a única prudência de
não esbanjar, não desperdiçar.
“Os pobres comerão e
ficarão saciados. Louvarão o Senhor os que O procuram” (Sl 22,27). Mas o
despenseiro humano dos bens divinos, para servir os pobres, tem de ser pobre em
espírito, caso contrário, não serve em condições, perdido no afã pelo dinheiro,
pelo prestígio, pela carreira. E lá vai ele, movido pela falsa prudência, a
correr fechar portas, quando a sua função é abrir portas, escancará-las para
que a graça de Deus passe com liberdade e abundância!
2014.05.12
Louro de Carvalho
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