terça-feira, 27 de maio de 2014

O perigo do “ateísmo leve”


O perigo do “ateísmo leve”

Será mesmo que a experiência religiosa é só uma forma de psicose?





Aleteia

Acaba de aparecer nas páginas do The New York Times um intercâmbio de ideias muito instrutivo entre Gary Gutting, professor de filosofia da Universidade de Notre Dame, e Philip Kitcher, professor de filosofia da Universidade de Columbia.

Kitcher se descreve como um defensor do "ateísmo leve", o que viria a significar um ateísmo mais suave que a versão polêmica defendida por Richard Dawkins e Christopher Hitchens. Ao contrário desses colegas, Kitcher admite que a religião pode ter um papel eticamente útil numa sociedade predominantemente laica. Eu não vou entrar no mérito desta característica do pensamento de Kitcher, porque já explorei a redução kantiana da religião à ética em outros textos, mas gostaria de chamar a atenção para um particular aspecto desta entrevista, que mostra, com notável clareza, um dos mal-entendidos fundamentais sobre a religião, bastante comum entre os ateus.

Kitcher declarou que considera toda a doutrina religiosa não crível. Instado a dar uma explicação dessa postura algo exagerada, ele aponta a pluralidade extraordinária de doutrinas religiosas: cristãos, judeus, hindus, muçulmanos, animistas, etc., todos com visões radicalmente diferentes sobre a realidade, o divino, o propósito humano na vida. E, uma vez que todas as religiões se alicerçam fundamentalmente no mesmo terreno, o de uma revelação apresentada a ancestrais nossos já muito distantes, não há nenhum meio racional de ponderar essas diferenças. O único motivo real de eu ser cristão, diria ele, é o fato de ter nascido de pais cristãos que me passaram as histórias-chave do cristianismo. Se você é judeu, muçulmano ou hindu e tem histórias-chave diferentes das minhas, não há maneira razoável de eu o convencer nem de você me convencer. É o seu mito contra o meu. Esta é, obviamente, uma variante da visão iluminista: a religião positiva seria irracional e, portanto, inevitavelmente violenta, dependendo somente da força bruta a possibilidade de substituir uma religião por outra.

O problema fundamental é que Kitcher ignora por completo o papel decisivamente importante que a tradição religiosa desempenha no desenvolvimento e na ratificação da doutrina. É verdade que a religião se baseia, no geral, em eventos fundamentais, mas essas experiências não são simplesmente repassadas
​​em silêncio de geração em geração. Pelo contrário, elas são peneiradas e testadas, num processo complexo de recepção e assimilação. Elas são comparadas com outras experiências semelhantes; são analisadas ​​de forma racional; são colocadas em discussão e contrastadas com o que sabemos do mundo por outras fontes; são submetidas a investigação filosófica; suas camadas de significação são descobertas através de conversas que vêm se desenrolando ao longo de centenas e até milhares de anos; suas implicações comportamentais e éticas são esmiuçadas e avaliadas constantemente.

Vamos usar um exemplo da Bíblia para ilustrar como esse processo acontece. O livro do Gênesis nos diz que o patriarca Jacó, certa noite, teve um sonho em que anjos subiam e desciam por uma grande escada, enraizada na terra e estendida até o céu. Ao acordar, ele declarou que o local onde havia dormido era santo e o consagrou com um altar. A tradição recebeu essa história e retirou dela implicações que propõem questões metafísicas e espirituais profundas: o ser finito e o Ser Infinito está intimamente ligados um ao outro; cada lugar é potencialmente um local de encontro com o poder que sustenta o cosmos; há uma hierarquia na realidade criada e na sua relação com Deus; adorar a Deus é alentador para os seres humanos, e assim por diante.


Estas conclusões derivam do processo de “peneiração” a que me referi e fornecem a base para algo que Kitcher e seus colegas acham inadmissível: a possibilidade da argumentação concreta sobre a religiosidade. Não é mera questão de contrapor histórias antigas umas às outras; é questão de analisar, triar e comparar esse legado com a experiência. E quando isto ocorre entre interlocutores de diferentes tradições religiosas, desde que sejam pessoas de inteligência e boa vontade, podem-se conseguir grandes progressos. Os parceiros dessa conversa podem descobrir um número notável de verdades em comum, pontos de contato entre doutrinas que pareciam em desacordo total, além de ensinamentos que são, de fato, mutuamente excludentes. Mesmo no que diz respeito aos pontos de discórdia, porém, ainda podem ser propostos, por ambos os lados, muitos argumentos autênticos.

O que me incomoda na proposta de Kitcher é que ele relega todas as religiões ao âmbito do simplesmente irracional. É interessante notar que, várias vezes, no decorrer da entrevista, ele compara a experiência religiosa com as experiências de pessoas que sofrem de psicose. Isto indica o perigo real de uma visão desse tipo: uma sociedade dominada por um ateísmo “leve” como o de Kitcher pode tolerar as pessoas religiosas durante certo tempo, mas irá, em algum momento, marginalizá-las ou até propor interná-las por insanidade. Se você acha esta última sugestão paranoica, repasse a política da União Soviética em relação àqueles que não concordavam com a ideologia imposta.

Em meados do século XIX, John Henry Newman lutou tenazmente para defender a racionalidade das reivindicações religiosas. A entrevista de Kitcher, bem como os volumosos escritos dos seus aliados intelectuais, me faz pensar que a mesma batalha precisa ser lutada também hoje.

 

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