CARTA ENCÍCLICA
LUMEN FIDEI
DO SUMO
PONTÍFICE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS
PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS
CONSAGRADAS
E A TODOS OS
FIÉIS LEIGOS
SOBRE A FÉ
3
1.
A luz da fé é a
expressão com que a tradição da Igreja designou o grande dom trazido por Jesus.
Eis como Ele Se nos apresenta, no Evangelho de João: « Eu vim ao mundo como
luz, para que todo o que crê em Mim não fique nas trevas » (Jo 12, 46).
E São Paulo exprime-se nestes termos: « Porque o Deus que disse: “das trevas
brilhe a luz”, foi quem brilhou nos nossos corações » (2 Cor 4, 6). No
mundo pagão, com fome de luz, tinha-se desenvolvido o culto do deus Sol, Sol
invictus, invocado na sua aurora. Embora o sol renascesse cada dia,
facilmente se percebia que era incapaz de irradiar a sua luz sobre toda a
existência do homem. De facto, o sol não ilumina toda a realidade, sendo os
seus raios incapazes de chegar até às sombras da morte, onde a vista humana se
fecha para a sua luz. Aliás « nunca se viu ninguém — afirma o mártir São
Justino — pronto a morrer pela sua fé no sol ».1 Conscientes
do amplo horizonte que a fé lhes abria, os cristãos chamaram a Cristo o verdadeiro
Sol, « cujos raios dão a vida ».2 A Marta, em lágrimas pela
morte do irmão Lázaro, Jesus diz-lhe: « Eu não te disse que, se acreditares,
verás a glória de Deus? » (Jo 11, 40). Quem acredita, vê;
1 Dialogus cum Tryphone Iudaeo, 121, 2: PG 6, 758.
2 Clemente de
Alexandria, Protrepticus, IX: PG
8, 195.
4
vê com uma luz
que ilumina todo o percurso da estrada, porque nos vem de Cristo ressuscitado,
estrela da manhã que não tem ocaso.
Uma luz ilusória?
1.
E contudo podemos
ouvir a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se
lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz poderia
ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos
tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de
explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz
ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche
convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), na incerteza
de proceder de forma autónoma ». E acrescentava: « Neste ponto, separam-se os caminhos
da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com
a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga ».3 O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a
sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana,
espoliando a vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie
de ilusão de luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã.
3 « Brief an Elisabeth Nietzsche (11 de Junho de
1865) », in: Werke in drei Bänden (Munique 1954), 953-954.5
1.
Por este caminho,
a fé acabou por ser associada com a escuridão. E, a fim de conviver com a luz
da razão, pensou-se na possibilidade de a conservar, de lhe encontrar um
espaço: o espaço para a fé abria-se onde a razão não podia iluminar, onde o
homem já não podia ter certezas. Deste modo, a fé foi entendida como um salto
no vazio, que fazemos por falta de luz e impelidos por um sentimento cego, ou
como uma luz subjectiva, talvez capaz de aquecer o coração e consolar
pessoalmente, mas impossível de ser proposta aos outros como luz objectiva e
comum para iluminar o caminho. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a
luz da razão autónoma não consegue iluminar suficientemente o futuro; este, no
fim de contas, permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do
desconhecido. E, assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma
verdade grande, para se contentar com pequenas luzes que iluminam por breves
instantes, mas são incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo
se torna confuso: é impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada
que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem
direcção.
Uma luz a redescobrir
1.
Por isso, urge
recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se
apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor. De facto, a
luz da fé pos
6
sui um carácter singular, sendo
capaz de iluminar toda a existência do homem. Ora, para que uma luz seja tão
poderosa, não pode dimanar de nós mesmos; tem de vir de uma fonte mais
originária, deve porvir em última análise de Deus. A fé nasce no encontro com
o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede e sobre
o qual podemos apoiar-nos para construir solidamente a vida. Transformados por
este amor, recebemos olhos novos e experimentamos que há nele uma grande
promessa de plenitude e se nos abre a visão do futuro. A fé, que recebemos de
Deus como dom sobrenatural, aparece- -nos como luz para a estrada orientando os
nossos passos no tempo. Por um lado, provém do passado: é a luz duma memória
basilar — a da vida de Jesus –, onde o seu amor se manifestou plenamente
fiável, capaz de vencer a morte. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, dado que
Cristo ressuscitou e nos atrai de além da morte, a fé é luz que vem do futuro,
que descerra diante de nós horizontes grandes e nos leva a ultrapassar o nosso
« eu » isolado abrindo-o à amplitude da comunhão. Deste modo, compreendemos
que a fé não mora na escuridão, mas é uma luz para as nossas trevas. Dante, na Divina
Comédia, depois de ter confessado diante de São Pedro a sua fé, descreve-a
como uma « centelha / que se expande depois em viva chama / e, como estrela no
céu, em mim cintila ».4 É precisamente desta
4 Divina Comédia,
Paraíso, XXIV, 145-147.7
luz da fé que quero falar, desejando que cresça a fim
de iluminar o presente até se tornar estrela que mostra os horizontes do nosso
caminho, num tempo em que o homem vive particularmente carecido de luz.
1.
Antes da sua
paixão, o Senhor assegurava a Pedro: « Eu roguei por ti, para que a tua fé não
desfaleça » (Lc 22, 32). Depois pediu-lhe para « confirmar os irmãos »
na mesma fé. Consciente da tarefa confiada ao Sucessor de Pedro, Bento XVI
quis proclamar este Ano da Fé, um tempo de graça que nos tem ajudado a
sentir a grande alegria de crer, a reavivar a percepção da amplitude de
horizontes que a fé descerra, para a confessar na sua unidade e integridade,
fiéis à memória do Senhor, sustentados pela sua presença e pela acção do
Espírito Santo. A convicção duma fé que faz grande e plena a vida, centrada em
Cristo e na força da sua graça, animava a missão dos primeiros cristãos. Nas
Actas dos Mártires, lemos este diálogo entre o prefeito romano Rústico e o
cristão Hierax: « Onde estão os teus pais? » — perguntava o juiz ao mártir;
este respondeu: « O nosso verdadeiro pai é Cristo, e nossa mãe a fé n’Ele ».5 Para aqueles cristãos, a fé, enquanto encontro com o Deus vivo que Se
manifestou em Cristo, era uma « mãe », porque os fazia vir à luz, gerava neles
a vida divina, uma nova experiência, uma visão lu
5 Acta Sanctorum,
Iunii, I, 21.8
minosa da existência, pela qual estavam prontos a dar
testemunho público até ao fim.
1.
O Ano da Fé teve
início no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II. Esta coincidência
permite-nos ver que o mesmo foi um Concílio sobre a fé,6 por nos
ter convidado a repor, no centro da nossa vida eclesial e pessoal, o primado
de Deus em Cristo. Na verdade, a Igreja nunca dá por descontada a fé, pois sabe
que este dom de Deus deve ser nutrido e revigorado sem cessar para continuar a
orientar o caminho dela. O Concílio Vaticano II fez brilhar a fé no âmbito da
experiência humana, percorrendo assim os caminhos do homem contemporâneo. Desta
forma, se viu como a fé enriquece a existência humana em todas as suas
dimensões.
2.
Estas
considerações sobre a fé — em continuidade com tudo o que o magistério da
Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal7 — pretendem
juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI
6 « Embora o Concílio não trate expressamente da fé, todavia
fala dela em cada página, reconhece o seu carácter vital e sobrenatural,
supõe-na íntegra e forte e constrói sobre ela os seus ensinamentos. Bastaria
lembrar as declarações conciliares (...) para nos darmos conta da importância
essencial que o Concílio, coerente com a tradição doutrinal da Igreja, atribui
à fé, à verdadeira fé, aquela que tem Cristo como fonte e, como canal, o magistério
da Igreja » [Paulo vi, Audiência Geral (8 de Março de 1967): Insegnamenti
V (1967), 705].
7 Cf., por exemplo, Conc. Ecum. Vat. i, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius,
III: DS 3008-3020; Conc. Ecum. Vat. ii, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum,
5; Catecismo da Igreja Católica, 153-165.9
escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a
esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta
encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de
Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto
qualquer nova contribuição. De facto, o Sucessor de Pedro, ontem, hoje e
amanhã, sempre está chamado a « confirmar os irmãos » no tesouro incomensurável
da fé que Deus dá a cada homem como luz para o seu caminho.
Na fé, dom
de Deus e virtude sobrenatural por Ele infundida, reconhecemos que um grande
Amor nos foi oferecido, que uma Palavra estupenda nos foi dirigida: acolhendo
esta Palavra que é Jesus Cristo — Palavra encarnada –, o Espírito Santo
transforma-nos, ilumina o caminho do futuro e faz crescer em nós as asas da
esperança para o percorrermos com alegria. Fé, esperança e caridade constituem,
numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo à plena comunhão
com Deus. Mas, como é este caminho que a fé desvenda diante de nós? Donde
provém a sua luz, tão poderosa que permite iluminar o caminho duma vida bem
sucedida e fecunda, cheia de fruto?10 11
Capítulo I
ACREDITÁMOS NOAMOR(cf. 1 Jo 4, 16)
Abraão, nosso pai na fé
1.
A fé desvenda-nos
o caminho e acompanha os nossos passos na história. Por isso, se quisermos
compreender o que é a fé, temos de explanar o seu percurso, o caminho dos
homens crentes, com os primeiros testemunhos já no Antigo Testamento. Um posto
singular ocupa Abraão, nosso pai na fé. Na sua vida, acontece um facto
impressionante: Deus dirige-lhe a Palavra, revela- -Se como um Deus que fala e
o chama por nome. A fé está ligada à escuta. Abraão não vê Deus, mas ouve a sua
voz. Deste modo, a fé assume um carácter pessoal: o Senhor não é o Deus de um
lugar, nem mesmo o Deus vinculado a um tempo sagrado específico, mas o Deus de
uma pessoa, concretamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, capaz de entrar em contacto
com o homem e estabelecer com ele uma aliança. A fé é a resposta a uma Palavra
que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama por nome.
2.
Esta Palavra
comunica a Abraão uma chamada e uma promessa. Contém, antes de tudo,
12
uma
chamada a sair da própria terra, convite a abrir-se a uma vida nova, início de
um êxodo que o encaminha para um futuro inesperado. A perspectiva, que a fé vai
proporcionar a Abraão, estará sempre ligada com este passo em frente que ele
deve realizar: a fé « vê » na medida em que caminha, em que entra no espaço
aberto pela Palavra de Deus. Mas tal Palavra contém ainda uma promessa: a tua
descendência será numerosa, serás pai de um grande povo (cf. Gn 13, 16;
15, 5; 22, 17). É verdade que a fé de Abraão, enquanto resposta a uma Palavra
que a precede, será sempre um acto de memória; contudo esta memória não o fixa
no passado, porque, sendo memória de uma promessa, se torna capaz de abrir ao
futuro, de iluminar os passos ao longo do caminho. Assim se vê como a fé, enquanto
memória do futuro, está intimamente ligada com a esperança.
10. A Abraão pede-se para se confiar a esta Palavra. A fé
compreende que a palavra — uma realidade aparentemente efémera e passageira —,
quando é pronunciada pelo Deus fiel, torna-se no que de mais seguro e
inabalável possa haver, possibilitando a continuidade do nosso caminho no
tempo. A fé acolhe esta Palavra como rocha segura, sobre a qual se pode
construir com alicerces firmes. Por isso, na Bíblia hebraica, a fé é indicada
pela palavra ‘emûnah, que deriva do verbo ‘amàn, cuja raiz
significa « sustentar ». O termo ‘emûnah tanto pode significar a
fidelidade de Deus como a fé do homem. O homem fiel re
13
cebe
a sua força do confiar-se nas mãos do Deus fiel. Jogando com dois significados
da palavra — presentes tanto no termo grego pistós como no
correspondente latino fidelis –, São Cirilo de Jerusalém exaltará a
dignidade do cristão, que recebe o mesmo nome de Deus: ambos são chamados «
fiéis ».8 E Santo Agostinho explica-o assim: « O homem fiel é
aquele que crê no Deus que promete; o Deus fiel é aquele que concede o que
prometeu ao homem ».9
11. Há ainda um aspecto da história de Abraão que é
importante para se compreender a sua fé. A Palavra de Deus, embora traga
consigo novidade e surpresa, não é de forma alguma alheia à experiência do
Patriarca. Na voz que se lhe dirige, Abraão reconhece um apelo profundo, desde
sempre inscrito no mais íntimo do seu ser. Deus associa a sua promessa com
aquele « ponto » onde desde sempre a existência do homem se mostra promissora,
ou seja, a paternidade, a geração duma nova vida: « Sara, tua mulher, dar-te-á
um filho, a quem hás-de chamar Isaac » (Gn 17, 19). O mesmo Deus que
pede a Abraão para se confiar totalmente a Ele, revela-Se como a fonte donde
provém toda a vida. Desta forma, a fé une-se com a Paternidade de Deus, da qual
brota a criação: o Deus que chama Abraão é o Deus criador, aquele que « chama à
existência o que não existe » (Rm 4, 17), aquele que, « antes da funda
8 Cf. Catechesis, V, 1: PG 33,
505A.
9 Enarratio in Psalmum, 32, II, s. I, 9: PL 36, 284.14
ção do mundo, (...) nos predestinou para sermos
adoptados como seus filhos » (Ef 1, 4-5). No caso de Abraão, a fé em
Deus ilumina as raízes mais profundas do seu ser: permite-lhe reconhecer a
fonte de bondade que está na origem de todas as coisas, e confirmar que a sua
vida não deriva do nada nem do acaso, mas de uma chamada e um amor pessoais. O
Deus misterioso que o chamou não é um Deus estranho, mas a origem de tudo e
que tudo sustenta. A grande prova da fé de Abraão, o sacrifício do filho Isaac,
manifestará até que ponto este amor originador é capaz de garantir a vida
mesmo para além da morte. A Palavra que foi capaz de suscitar um filho no seu
corpo « já sem vida (…), como sem vida estava o seio » de Sara estéril (Rm 4,
19), também será capaz de garantir a promessa de um futuro para além de
qualquer ameaça ou perigo (cf. Heb 11, 19; Rm 4, 21).
A fé de Israel
1.
A história do
povo de Israel, no livro do Êxodo, continua na esteira da fé de Abraão. De
novo, a fé nasce de um dom originador: Israel abre-se à acção de Deus, que quer
libertá-lo da sua miséria. A fé é chamada a um longo caminho, para poder adorar
o Senhor no Sinai e herdar uma terra prometida. O amor divino possui os traços
de um pai que conduz seu filho pelo caminho (cf. Dt 1, 31). A confissão
de fé de Israel desenrola- -se como uma narração dos benefícios de Deus, da sua
acção para libertar e conduzir o povo (cf.
15
Dt
26, 5-11); narração esta, que o povo
transmite de geração em geração. A luz de Deus brilha para Israel, através da
comemoração dos factos realizados pelo Senhor, recordados e confessados no
culto, transmitidos pelos pais aos filhos. Deste modo aprendemos que a luz
trazida pela fé está ligada com a narração concreta da vida, com a grata
lembrança dos benefícios de Deus e com o progressivo cumprimento das suas
promessas. A arquitectura gótica exprimiu-o muito bem: nas grandes catedrais, a
luz chega do céu através dos vitrais onde está representada a história sagrada.
A luz de Deus vem-nos através da narração da sua revelação e, assim, é capaz de
iluminar o nosso caminho no tempo, recordando os benefícios divinos e
mostrando como se cumprem as suas promessas.
13. A história de Israel mostra-nos ainda a tentação da
incredulidade, em que o povo caiu várias vezes. Aparece aqui o contrário da fé:
a idolatria. Enquanto Moisés fala com Deus no Sinai, o povo não suporta o
mistério do rosto divino escondido, não suporta o tempo de espera. Por sua
natureza, a fé pede para se renunciar à posse imediata que a visão parece
oferecer; é um convite para se abrir à fonte da luz, respeitando o mistério
próprio de um Rosto que pretende revelar-se de forma pessoal e no momento
oportuno. Martin Buber citava esta definição da idolatria, dada pelo rabino de
Kock: há idolatria, « quando um rosto se dirige reverente a um rosto que não é
16
rosto ».10 Em vez
da fé em Deus, prefere-se adorar o ídolo, cujo rosto se pode fixar e cuja
origem é conhecida, porque foi feito por nós. Diante do ídolo, não se corre o
risco de uma possível chamada que nos faça sair das próprias seguranças,
porque os ídolos « têm boca, mas não falam » (Sal 115, 5). Compreende-se
assim que o ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no centro da
realidade, na adoração da obra das próprias mãos. Perdida a orientação
fundamental que dá unidade à sua existência, o homem dispersa-se na
multiplicidade dos seus desejos; negando-se a esperar o tempo da promessa,
desintegra-se nos mil instantes da sua história. Por isso, a idolatria é sempre
politeísmo, movimento sem meta de um senhor para outro. A idolatria não oferece
um caminho, mas uma multiplicidade de veredas que não conduzem a uma meta
certa, antes se configuram como um labirinto. Quem não quer confiar-se a
Deus, deve ouvir as vozes dos muitos ídolos que lhe gritam: « Confia-te a mim!
» A fé, enquanto ligada à conversão, é o contrário da idolatria: é separação
dos ídolos para voltar ao Deus vivo, através de um encontro pessoal. Acreditar
significa confiar-se a um amor misericordioso que sempre acolhe e perdoa, que
sustenta e guia a existência, que se mostra poderoso na sua capacidade de
endireitar os desvios da nossa história. A fé consiste na disponibilidade a deixar-se
inces
10 Martin Buber, Die Erzählungen der Chassidim (Zurique 1949),
793.17
santemente transformar pela chamada de Deus.
Paradoxalmente, neste voltar-se continuamente para o Senhor, o homem encontra
uma estrada segura que o liberta do movimento dispersivo a que o sujeitam os
ídolos.
1.
Na fé de Israel,
sobressai também a figura de Moisés, o mediador. O povo não pode ver o rosto
de Deus; é Moisés que fala com Jahvé na montanha e comunica a todos a vontade
do Senhor. Com esta presença do mediador, Israel aprendeu a caminhar unido. O
acto de fé do indivíduo insere-se numa comunidade, no « nós » comum do povo,
que, na fé, é como um só homem: « o meu filho primogénito », assim Deus designará
todo o Israel (cf. Ex 4, 22). Aqui a mediação não se torna um obstáculo,
mas uma abertura: no encontro com os outros, o olhar abre-se para uma verdade
maior que nós mesmos. Jean Jacques Rousseau lamentava-se por não poder ver
Deus pessoalmente: « Quantos homens entre mim e Deus! » 11 « Será
assim tão simples e natural que Deus tenha ido ter com Moisés para falar a
Jean Jacques Rousseau? »12 A partir de uma concepção individualista e limitada do
conhecimento é impossível compreender o sentido da mediação: esta capacidade
de participar na visão do outro, saber compartilhado que é o conhecimento
próprio do amor. A fé é um dom gratuito de Deus, que exige a humildade e a
coragem de
11 Émile (Paris 1966), 387.
12 Lettrè à Christophe de Beaumont (Lausanne 1993),
110.18
fiar-se e entregar-se para ver o caminho luminoso do
encontro entre Deus e os homens, a história da salvação.
A plenitude da fé cristã
1.
« Abraão (...)
exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz » (Jo 8, 56). De
acordo com estas palavras de Jesus, a fé de Abraão estava orientada para Ele,
de certo modo era visão antecipada do seu mistério. Assim o entende Santo
Agostinho, quando afirma que os Patriarcas se salvaram pela fé; não fé em
Cristo já chegado, mas fé em Cristo que havia de vir, fé proclive para o evento
futuro de Jesus.13 A fé cristã está centrada em Cristo; é confissão de
que Jesus é o Senhor e que Deus O ressuscitou de entre os mortos (cf. Rm 10,
9). Todas as linhas do Antigo Testamento se concentram em Cristo: Ele torna-
-Se o « sim » definitivo a todas as promessas, fundamento último do nosso «
Amen » a Deus (cf. 2 Cor 1, 20). A história de Jesus é a manifestação
plena da fiabilidade de Deus. Se Israel recordava os grandes actos de amor de
Deus, que formavam o centro da sua confissão e abriam o horizonte da sua fé,
agora a vida de Jesus aparece como o lugar da intervenção definitiva de Deus, a
suprema manifestação do seu amor por nós. A palavra que Deus nos dirige em
Jesus já não é uma entre muitas outras, mas a sua Palavra eterna (cf. Heb 1,
13 Cf. In evangelium Johannis tractatus,
45, 9: PL 35, 1722- 1723.19
1-2). Não há nenhuma garantia maior que Deus possa dar
para nos certificar do seu amor, como nos lembra São Paulo (cf. Rm 8,
31-39). Portanto, a fé cristã é fé no Amor pleno, no seu poder eficaz, na sua
capacidade de transformar o mundo e iluminar o tempo. « Nós conhecemos o amor
que Deus nos tem, pois cremos nele » (1 Jo 4, 16). A fé identifica, no
amor de Deus manifestado em Jesus, o fundamento sobre o qual assenta a realidade
e o seu destino último.
1.
A maior prova da
fiabilidade do amor de Cristo encontra-se na sua morte pelo homem. Se dar a
vida pelos amigos é a maior prova de amor (cf. Jo 15, 13), Jesus
ofereceu a sua vida por todos, mesmo por aqueles que eram inimigos, para
transformar o coração. É por isso que os evangelistas situam, na hora da Cruz,
o momento culminante do olhar de fé: naquela hora resplandece o amor divino em
toda a sua sublimidade e amplitude. São João colocará aqui o seu testemunho
solene, quando, juntamente com a Mãe de Jesus, contemplou Aquele que
trespassaram (cf. Jo 19, 37): « Aquele que viu estas coisas é que dá
testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele bem sabe que diz a
verdade, para vós crerdes também » (Jo 19, 35). Na sua obra O
Idiota, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski faz o protagonista — o príncipe
Myskin — dizer, à vista do quadro de Cristo morto no sepulcro, pintado por Hans
Holbein o Jovem: « Aquele quadro poderia
20
mesmo
fazer perder a fé a alguém »;14
de facto, o quadro representa, de
forma muito crua, os efeitos destruidores da morte no corpo de Cristo. E
todavia é precisamente na contemplação da morte de Jesus que a fé se reforça e
recebe uma luz fulgurante, é quando ela se revela como fé no seu amor
inabalável por nós, que é capaz de penetrar na morte para nos salvar. Neste
amor que não se subtraiu à morte para manifestar quanto me ama, é possível
crer; a sua totalidade vence toda e qualquer suspeita e permite confiar-nos
plenamente a Cristo.
17. Ora, a morte de Cristo desvenda a total fiabilidade
do amor de Deus à luz da sua ressurreição. Enquanto ressuscitado, Cristo é
testemunha fiável, digna de fé (cf. Ap 1, 5; Heb 2, 17), apoio
firme para a nossa fé. « Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé », afirma
São Paulo (1 Cor 15, 17). Se o amor do Pai não tivesse feito Jesus
ressurgir dos mortos, se não tivesse podido restituir a vida ao seu corpo, não
seria um amor plenamente fiável, capaz de iluminar também as trevas da morte.
Quando São Paulo fala da sua nova vida em Cristo, refere que a vive « na fé do
Filho de Deus que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim » (Gl 2, 20).
Esta « fé do Filho de Deus » é certamente a fé do Apóstolo dos gentios em
Jesus, mas supõe também a fiabilidade de Jesus, que se funda, sem dúvida, no
seu amor até à morte, mas
14 Parte II, IV.21
também no facto de Ele ser Filho de Deus. Precisamente
porque é o Filho, porque está radicado de modo absoluto no Pai, Jesus pôde
vencer a morte e fazer resplandecer em plenitude a vida. A nossa cultura perdeu
a noção desta presença concreta de Deus, da sua acção no mundo; pensamos que
Deus Se encontra só no além, noutro nível de realidade, separado das nossas
relações concretas. Mas, se fosse assim, isto é, se Deus fosse incapaz de agir no
mundo, o seu amor não seria verdadeiramente poderoso, verdadeiramente real e,
por conseguinte, não seria sequer verdadeiro amor, capaz de cumprir a
felicidade que promete. E, então, seria completamente indiferente crer ou não
crer n’Ele. Ao contrário, os cristãos confessam o amor concreto e poderoso de
Deus, que actua verdadeiramente na história e determina o seu destino final; um
amor que se fez passível de encontro, que se revelou em plenitude na paixão,
morte e ressurreição de Cristo.
1.
A plenitude a que
Jesus leva a fé possui outro aspecto decisivo: na fé, Cristo não é apenas
Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do amor de Deus, mas é também
Aquele a quem nos unimos para poder acreditar. A fé não só olha para Jesus, mas
olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus olhos: é uma
participação no seu modo de ver. Em muitos âmbitos da vida, fiamo-nos de
outras pessoas que conhecem as coisas melhor do que nós: temos confiança no
arquitecto que constrói a nossa
22
casa, no farmacêutico que nos
fornece o remédio para a cura, no advogado que nos defende no tribunal.
Precisamos também de alguém que seja fiável e perito nas coisas de Deus: Jesus,
seu Filho, apresenta-Se como Aquele que nos explica Deus (cf. Jo 1, 18).
A vida de Cristo, a sua maneira de conhecer o Pai, de viver totalmente em relação
com Ele abre um espaço novo à experiência humana, e nós podemos entrar nele.
São João exprimiu a importância que a relação pessoal com Jesus tem para a
nossa fé, através de vários usos do verbo crer. Juntamente com o « crer
que » é verdade o que Jesus nos diz (cf. Jo 14, 10; 20, 31), João usa
mais duas expressões: « crer a (sinónimo de dar crédito a) » Jesus e « crer em
» Jesus. « Cremos a » Jesus, quando aceitamos a sua palavra, o seu testemunho,
porque Ele é verdadeiro (cf. Jo 6, 30). « Cremos em » Jesus, quando O
acolhemos pessoalmente na nossa vida e nos confiamos a Ele, aderindo a Ele no
amor e seguindo-O ao longo do caminho (cf. Jo 2, 11; 6, 47; 12, 44).
Para nos
permitir conhecê-Lo, acolhê-Lo e segui-Lo, o Filho de Deus assumiu a nossa
carne; e, assim, a sua visão do Pai deu-se também de forma humana, através de
um caminho e um percurso no tempo. A fé cristã é fé na encarnação do Verbo e
na sua ressurreição na carne; é fé num Deus que Se fez tão próximo que entrou
na nossa história. A fé no Filho de Deus feito homem em Jesus de Nazaré não
nos separa da realidade; antes permite-nos individuar o seu significado mais
profundo, descobrir quanto Deus ama este 23
mundo
e o orienta sem cessar para Si; e isto leva o cristão a comprometer-se, a viver
de modo ainda mais intenso o seu caminho sobre a terra.
A salvação pela fé
1.
A partir desta
participação no modo de ver de Jesus, o apóstolo Paulo deixou-nos, nos seus
escritos, uma descrição da existência crente. Aquele que acredita, ao aceitar
o dom da fé, é transformado numa nova criatura, recebe um novo ser, um ser
filial, torna-se filho no Filho: « Abbá, Pai » é a palavra mais
característica da experiência de Jesus, que se torna centro da experiência
cristã (cf. Rm 8, 15). A vida na fé, enquanto existência filial, é
reconhecer o dom originário e radical que está na base da existência do homem,
podendo resumir-se nesta frase de São Paulo aos Coríntios: « Que tens tu que
não tenhas recebido? » (1 Cor 4, 7). É precisamente aqui que se situa o
cerne da polémica do Apóstolo com os fariseus: a discussão sobre a salvação
pela fé ou pelas obras da lei. Aquilo que São Paulo rejeita é a atitude de quem
se quer justificar a si mesmo diante de Deus através das próprias obras; esta
pessoa, mesmo quando obedece aos mandamentos, mesmo quando realiza obras boas,
coloca- -se a si própria no centro e não reconhece que a origem do bem é Deus.
Quem actua assim, quem quer ser fonte da sua própria justiça, depressa a vê
exaurir-se e descobre que não pode sequer aguentar-se na fidelidade à lei;
fecha-se, isolando- -se do Senhor e dos outros, e, por isso, a sua vida
24
torna-se
vã, as suas obras estéreis, como árvore longe da água. Assim se exprime Santo
Agostinho com a sua linguagem concisa e eficaz: « Não te afastes d’Aquele que
te fez, nem mesmo para te encontrares a ti ».15 Quando
o homem pensa que, afastando-se de Deus, encontrar-se-á a si mesmo, a sua
existência fracassa (cf. Lc 15, 11- -24). O início da salvação é a
abertura a algo que nos antecede, a um dom originário que sustenta a vida e a
guarda na existência. Só abrindo-nos a esta origem e reconhecendo-a é que
podemos ser transformados, deixando que a salvação actue em nós e torne a vida
fecunda, cheia de frutos bons. A salvação pela fé consiste em reconhecer o
primado do dom de Deus, como resume São Paulo: « Porque é pela graça que estais
salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós, é dom de Deus » (Ef 2,
8).
20. A nova lógica da fé centra-se em Cristo. A fé em
Cristo salva-nos, porque é n’Ele que a vida se abre radicalmente a um Amor que
nos precede e transforma a partir de dentro, que age em nós e connosco. Vê-se
isto claramente na exegese que o Apóstolo dos gentios faz de um texto do
Deuteronómio; uma exegese que se insere na dinâmica mais profunda do Antigo
Testamento. Moisés diz ao povo que o mandamento de Deus não está demasiado alto
nem demasiado longe do homem; não se deve dizer: « Quem subirá por
15 De continentia,
4, 11: PL 40, 356 (« ab eo qui fecit te noli deficere nec ad te »).25
nós até ao céu e no-la irá buscar? » ou « Quem
atravessará o mar e no-la irá buscar? » (cf. Dt 30, 11-14). Esta
proximidade da palavra de Deus é concretizada por São Paulo na presença de Jesus
no cristão. « Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu? Seria para fazer
com que Cristo descesse. Nem digas: Quem descerá ao abismo? Seria para fazer
com que Cristo subisse de entre os mortos » (Rm 10, 6-7). Cristo desceu
à terra e ressuscitou dos mortos: com a sua encarnação e ressurreição, o Filho
de Deus abraçou o percurso inteiro do homem e habita nos nossos corações por
meio do Espírito Santo. A fé sabe que Deus Se tornou muito próximo de nós, que
Cristo nos foi oferecido como grande dom que nos transforma interiormente, que
habita em nós, e assim nos dá a luz que ilumina a origem e o fim da vida, o
arco inteiro do percurso humano.
1.
Podemos assim
compreender a novidade, a que a fé nos conduz. O crente é transformado pelo
Amor, ao qual se abriu na fé; e, na sua abertura a este Amor que lhe é
oferecido, a sua existência dilata-se para além dele próprio. São Paulo pode
afirmar: « Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim » (Gl 2,
20), e exortar: « Que Cristo, pela fé, habite nos vossos corações » (Ef 3,
17). Na fé, o « eu » do crente dilata-se para ser habitado por um Outro, para
viver num Outro, e assim a sua vida amplia-se no Amor. É aqui que se situa a
acção própria do Espírito Santo: o cristão pode ter os olhos de Jesus, os seus
26
sentimentos, a sua
predisposição filial, porque é feito participante do seu Amor, que é o
Espírito; é neste Amor que se recebe, de algum modo, a visão própria de Jesus.
Fora desta conformação no Amor, fora da presença do Espírito que o infunde nos
nossos corações (cf. Rm 5, 5), é impossível confessar Jesus como Senhor
(cf. 1 Cor 12, 3).
A forma eclesial da fé
1.
Deste modo, a
vida do fiel torna-se existência eclesial. Quando São Paulo fala aos cristãos
de Roma do único corpo que todos os crentes formam em Cristo, exorta-os a não
se vangloriarem, mas a avaliarem-se « de acordo com a medida de fé que Deus
distribuiu a cada um » (Rm 12, 3). O crente aprende a ver-se a si mesmo
a partir da fé que professa. A figura de Cristo é o espelho em que descobre
realizada a sua própria imagem. E dado que Cristo abraça em Si mesmo todos os
crentes que formam o seu corpo, o cristão compreende-se a si mesmo neste
corpo, em relação primordial com Cristo e os irmãos na fé. A imagem do corpo
não pretende reduzir o crente a simples parte de um todo anónimo, a mero
elemento de uma grande engrenagem; antes, sublinha a união vital de Cristo com
os crentes e de todos os crentes entre si (cf. Rm 12, 4-5). Os cristãos
sejam « todos um só » (cf. Gl 3, 28), sem perder a sua individualidade,
e, no serviço aos outros, cada um ganha profundamente o próprio ser.
Compreende-se assim por que motivo, fora deste corpo, desta unidade da Igreja
em Cristo
27
— desta Igreja que, segundo as
palavras de Romano Guardini, « é a portadora histórica do olhar global de
Cristo sobre o mundo »,16 —, a fé perca a sua « medida », já não encontre o seu
equilíbrio, nem o espaço necessário para se manter de pé. A fé tem uma forma
necessariamente eclesial, é professada partindo do corpo de Cristo, como
comunhão concreta dos crentes. A partir deste lugar eclesial, ela abre o
indivíduo cristão a todos os homens. Uma vez escutada, a palavra de Cristo,
pelo seu próprio dinamismo, transforma-se em resposta no cristão, tornando-se
ela mesma palavra pronunciada, confissão de fé. São Paulo afirma: « Realmente
com o coração se crê (…) e com a boca se faz a profissão de fé » (Rm 10,
10). A fé não é um facto privado, uma concepção individualista, uma opinião
subjectiva, mas nasce de uma escuta e destina-se a ser pronunciada e a
tornar-se anúncio. Com efeito, « como hão-de acreditar n’Aquele de quem não
ouviram falar? E como hão-de ouvir falar, sem alguém que O anuncie? (Rm 10,
14). Concluindo, a fé torna-se operativa no cristão a partir do dom recebido, a
partir do Amor que o atrai para Cristo (cf. Gl 5, 6) e torna
participante do caminho da Igreja, peregrina na história rumo à perfeição.
Para quem foi assim transformado, abre-se um novo modo de ver, a fé torna-se
luz para os seus olhos.
16 « Vom Wesen katholischer Weltanschauung (1923) »,
in: Unterscheidung des Christlichen. Gesammelte Studien 1923-1963 (Mainz
1963), 24.29
Capítulo II
SENÃOACREDITARDES, NÃO COMPREENDEREIS (cf. Is 7,
9)
Fé e verdade
1.
Se não
acreditardes, não compreendereis (cf. Is 7, 9): foi assim que a versão
grega da Bíblia hebraica — a tradução dos Setenta, feita em Alexandria do
Egipto — traduziu as palavras do profeta Isaías ao rei Acaz, fazendo aparecer
como central, na fé, a questão do conhecimento da verdade. Entretanto, no
texto hebraico, há uma leitura diferente; aqui o profeta diz ao rei: « Se não o
acreditardes, não subsistireis ». Existe aqui um jogo de palavras com duas
formas do verbo ‘amàn: « acreditardes » (ta’aminu) e « subsistireis
» (te’amenu). Apavorado com a força dos seus inimigos, o rei busca a
segurança que lhe pode vir de uma aliança com o grande império da Assíria; mas
o profeta convida-o a confiar apenas na verdadeira rocha que não vacila: o Deus
de Israel. Uma vez que Deus é fiável, é razoável ter fé n’Ele, construir a
própria segurança sobre a sua Palavra. Este é o Deus que Isaías chamará mais
adiante, por duas vezes, o Deus-Amen, o « Deus fiel » (cf. Is 65, 16),
fundamento inabalável de fidelidade à aliança. Poder-se-ia pensar que a versão
grega da Bíblia, traduzindo « subsistir » por « compreender », tivesse
realizado uma mudança profunda do texto, passando da noção bíblica de
30
entrega
a Deus à noção grega de compreensão. E no entanto esta tradução, que aceitava
certamente o diálogo com a cultura helenista, não é alheia à dinâmica profunda
do texto hebraico; a firmeza que Isaías promete ao rei passa, realmente, pela
compreensão do agir de Deus e da unidade que Ele dá à vida do homem e à história
do povo. O profeta exorta a compreender os caminhos do Senhor, encontrando na
fidelidade de Deus o plano de sabedoria que governa os séculos. Esta síntese
entre o « compreender » e o « subsistir » é expressa por Santo Agostinho, nas
suas Confissões, quando fala da verdade em que se pode confiar para
conseguirmos ficar de pé: « Estarei firme e consolidar-me-ei em Ti, (…) na tua
verdade ».17 Vendo o contexto, sabemos que este Padre da Igreja
quer mostrar que esta verdade fidedigna de Deus é, como resulta da Bíblia, a
sua presença fiel ao longo da história, a sua capacidade de manter unidos os
tempos, recolhendo a dispersão dos dias do homem.18
24. Lido a esta luz, o texto de Isaías faz-nos concluir: o
homem precisa de conhecimento, precisa de verdade, porque sem ela não se mantém
de pé, não caminha. Sem verdade, a fé não salva, não torna seguros os nossos
passos. Seria uma linda fábula, a projecção dos nossos desejos de felicidade,
algo que nos satisfaz só na medida em que nos quisermos iludir; ou então
reduzir-
17 Confessiones,
XI, 30, 40: PL 32, 825.
18 Cf. ibid.: o. c., 825-826.31
-se-ia a um sentimento bom que consola e afaga, mas
permanece sujeito às nossas mudanças de ânimo, à variação dos tempos, incapaz
de sustentar um caminho constante na vida. Se a fé fosse isso, então o rei Acaz
teria razão para não jogar a sua vida e a segurança do seu reino sobre uma
emoção. Mas não é! Precisamente pela sua ligação intrínseca com a verdade, a fé
é capaz de oferecer uma luz nova, superior aos cálculos do rei, porque vê mais
longe, compreende o agir de Deus, que é fiel à sua aliança e às suas promessas.
1.
Lembrar esta
ligação da fé com a verdade é hoje mais necessário do que nunca, precisamente
por causa da crise de verdade em que vivemos. Na cultura contemporânea,
tende-se frequentemente a aceitar como verdade apenas a da tecnologia: é
verdadeiro aquilo que o homem consegue construir e medir com a sua ciência; é
verdadeiro porque funciona, e assim torna a vida mais cómoda e aprazível. Esta
verdade parece ser, hoje, a única certa, a única partilhável com os outros, a
única sobre a qual se pode conjuntamente discutir e comprometer-se; depois
haveria as verdades do indivíduo, como ser autêntico face àquilo que cada um
sente no seu íntimo, válidas apenas para o sujeito mas que não podem ser propostas
aos outros com a pretensão de servir o bem comum. A verdade grande, aquela que
explica o conjunto da vida pessoal e social, é vista com suspeita. Porventura
não foi esta — perguntam-se — a verdade pretendida pelos grandes totalitarismos
32
do século passado, uma verdade
que impunha a própria concepção global para esmagar a história concreta do
indivíduo? No fim, resta apenas um relativismo, no qual a questão sobre a
verdade de tudo — que, no fundo, é também a questão de Deus — já não interessa.
Nesta perspectiva, é lógico que se pretenda eliminar a ligação da religião com
a verdade, porque esta associação estaria na raiz do fanatismo, que quer
emudecer quem não partilha da crença própria. A este respeito, pode- -se falar
de uma grande obnubilação da memória no nosso mundo contemporâneo; de facto, a
busca da verdade é uma questão de memória, de memória profunda, porque visa
algo que nos precede e, desta forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso
« eu » pequeno e limitado; é uma questão relativa à origem de tudo, a cuja luz
se pode ver a meta e também o sentido da estrada comum.
Conhecimento da verdade e amor
1.
Nesta situação,
poderá a fé cristã prestar um serviço ao bem comum relativamente à maneira correcta
de entender a verdade? Para termos uma resposta, é necessário reflectir sobre o
tipo de conhecimento próprio da fé. Pode ajudar-nos esta frase de Paulo: «
Acredita-se com o coração » (Rm 10, 10). Este, na Bíblia, é o centro do
homem, onde se entrecruzam todas as suas dimensões: o corpo e o espírito, a
interioridade da pessoa e a sua abertura ao mundo e aos outros, a inteligência,
a vontade, a afectividade. O coração pode
33
manter
unidas estas dimensões, porque é o lugar onde nos abrimos à verdade e ao amor,
deixando que nos toquem e transformem profundamente. A fé transforma a pessoa
inteira, precisamente na medida em que ela se abre ao amor; é neste
entrelaçamento da fé com o amor que se compreende a forma de conhecimento
própria da fé, a sua força de convicção, a sua capacidade de iluminar os nossos
passos. A fé conhece na medida em que está ligada ao amor, já que o próprio
amor traz uma luz. A compreensão da fé é aquela que nasce quando recebemos o
grande amor de Deus, que nos transforma interiormente e nos dá olhos novos para
ver a realidade.
27. É conhecido o modo como o filósofo Ludwig
Wittgenstein explicou a ligação entre a fé e a certeza. Segundo ele, acreditar
seria comparável à experiência do enamoramento, concebida como algo de subjectivo,
impossível de propor como verdade válida para todos.19 De
facto, aos olhos do homem moderno, parece que a questão do amor não teria nada
a ver com a verdade; o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à
verdade, mas ao mundo inconstante dos sentimentos.
Mas, será
esta verdadeiramente uma descrição adequada do amor? Na realidade, o amor não
se pode reduzir a um sentimento que vai e vem. É verdade que o amor tem a ver
com a nossa
19 Cf. G. H. von Wright (coord.), Vermischte
Bemerkungen / Culture and Value (Oxford 1991), 32-33 e 61-64.34
afectividade, mas para a abrir à pessoa amada, e assim
iniciar um caminho que faz sair da reclusão no próprio eu e dirigir-se para a
outra pessoa, a fim de construir uma relação duradoura; o amor visa a união com
a pessoa amada. E aqui se manifesta em que sentido o amor tem necessidade da
verdade: apenas na medida em que o amor estiver fundado na verdade é que pode
perdurar no tempo, superar o instante efémero e permanecer firme para sustentar
um caminho comum. Se o amor não tivesse relação com a verdade, estaria sujeito
à alteração dos sentimentos e não superaria a prova do tempo. Diversamente, o
amor verdadeiro unifica todos os elementos da nossa personalidade e torna-se
uma luz nova que aponta para uma vida grande e plena. Sem a verdade, o amor
não pode oferecer um vínculo sólido, não consegue arrancar o « eu » para fora
do seu isolamento, nem libertá-lo do instante fugidio para edificar a vida e
produzir fruto.
Se o amor
tem necessidade da verdade, também a verdade precisa do amor; amor e verdade
não se podem separar. Sem o amor, a verdade torna-se fria, impessoal, gravosa
para a vida concreta da pessoa. A verdade que buscamos, a verdade que dá
significado aos nossos passos, ilumina-nos quando somos tocados pelo amor.
Quem ama, compreende que o amor é experiência da verdade, compreende que é
precisamente ele que abre os nossos olhos para verem a realidade inteira, de
maneira nova, em união com a pessoa amada. Neste sentido, escreveu São Gregório
35
Magno
que o próprio amor é um conhecimento,20 traz consigo uma lógica nova.
Trata-se de um modo relacional de olhar o mundo, que se torna conhecimento
partilhado, visão na visão do outro e visão comum sobre todas as coisas. Na
Idade Média, Guilherme de Saint Thierry adopta esta tradição, ao comentar um
versículo do Cântico dos Cânticos no qual o amado diz à amada: « Como são
lindos os teus olhos de pomba! » (Ct 1, 15).21 Estes dois olhos — explica Saint
Thierry — são a razão crente e o amor, que se tornam um único olhar para chegar
à contemplação de Deus, quando a inteligência se faz « entendimento de um
amor iluminado ».22
1.
Esta descoberta
do amor como fonte de conhecimento, que pertence à experiência primordial de
cada homem, encontra uma expressão categorizada na concepção bíblica da fé.
Israel, saboreando o amor com que Deus o escolheu e gerou como povo, chega a
compreender a unidade do desígnio divino, desde a origem à sua realização. O
conhecimento da fé, pelo facto de nascer do amor de Deus que estabelece a Aliança,
é conhecimento que ilumina um caminho na história. É por isso também que, na
Bíblia, verdade e fidelidade caminham juntas: o Deus verda
20 Cf. Homiliae in Evangelia, II, 27, 4: PL 76,
1207 (« amor ipse notitia est »).
21 Cf. Expositio super Cantica Canticorum, XVIII,
88: CCL, Continuatio Mediaevalis, 87, 67.
22 Ibid., XIX,
90: o. c., 87, 69.36
deiro é o Deus fiel, Aquele que mantém as suas promessas
e permite, com o decorrer do tempo, compreender o seu desígnio. Através da experiência
dos profetas, no sofrimento do exílio e na esperança de um regresso definitivo
à Cidade Santa, Israel intuiu que esta verdade de Deus se estendia mais além da
própria história, abraçando a história inteira do mundo a começar da criação. O
conhecimento da fé ilumina não só o caminho particular de um povo, mas também o
percurso inteiro do mundo criado, desde a origem até à sua consumação.
A fé como escuta e visão
1.
Justamente porque
o conhecimento da fé está ligado à aliança de um Deus fiel, que estabelece uma
relação de amor com o homem e lhe dirige a Palavra, é apresentado pela Bíblia
como escuta, aparece associado com o ouvido. São Paulo usará uma fórmula que
se tornou clássica: « fides ex auditu — a fé vem da escuta » (Rm 10,
17). O conhecimento associado à palavra é sempre conhecimento pessoal, que
reconhece a voz, se lhe abre livremente e a segue obedientemente. Por isso, São
Paulo falou da « obediência da fé » (cf. Rm 1, 5; 16, 26).23 Além disso, a fé é conhecimen
23 « A Deus que revela é devida a “obediência da fé” (Rm
16, 26; cf. Rm 1, 5; 2 Cor 10, 5-6); pela fé, o homem
entrega-se total e livremente a Deus, oferecendo a Deus revelador o obséquio
pleno da inteligência e da vontade e prestando voluntário assentimento à sua
revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e
concomitante ajuda da graça divina e os 37
to ligado ao transcorrer do tempo que a palavra
necessita para ser explicitada: é conhecimento que só se aprende num percurso
de seguimento. A escuta ajuda a identificar bem o nexo entre conhecimento e
amor.
A propósito
do conhecimento da verdade, pretendeu-se por vezes contrapor a escuta à visão,
a qual seria peculiar da cultura grega. Se a luz, por um lado, oferece a
contemplação da totalidade a que o homem sempre aspirou, por outro, parece não
deixar espaço à liberdade, pois desce do céu e chega directamente à vista, sem
lhe pedir que responda. Além disso, parece convidar a uma contemplação
estática, separada do tempo concreto em que o homem goza e sofre. Segundo esta
concepção, haveria oposição entre a abordagem bíblica do conhecimento e a
grega, a qual, na sua busca duma compreensão completa da realidade, teria associado
o conhecimento com a visão.
Mas tal
suposta oposição não é corroborada de forma alguma pelos dados bíblicos: o
Antigo Testamento combinou os dois tipos de conhecimento, unindo a escuta da
Palavra de Deus com o desejo de ver o seu rosto. Isto tornou possível entabular
diálogo com a cultura helenista, um
interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e
converte a Deus o coração, abre os olhos do entendimento, e dá a todos a
suavidade em aceitar e crer a verdade. Para que a compreensão da revelação
seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé
mediante os seus dons » (Conc. Ecum. Vat. ii, Const. dogm. sobre a divina Revelação
Dei Verbum, 5).38
O
ouvido atesta não só a chamada pessoal e a obediência, mas também que a verdade
se revela no tempo; a vista, por sua vez, oferece a visão plena de todo o
percurso, permitindo situar-nos no grande projecto de Deus; sem tal visão,
disdiálogo que pertence ao coração da Escritura. poríamos apenas de fragmentos
isolados de um todo desconhecido.
1.
A conexão entre o
ver e o ouvir, como órgãos do conhecimento da fé, aparece com a máxima
clareza no Evangelho de João, onde acreditar é simultaneamente ouvir e ver. A
escuta da fé verifica-se segundo a forma de conhecimento própria do amor: é uma
escuta pessoal, que distingue e reconhece a voz do Bom Pastor (cf. Jo 10,
3-5); uma escuta que requer o seguimento, como acontece com os primeiros
discípulos que, « ouvindo [João Baptista] falar desta maneira, seguiram Jesus
» (Jo 1, 37). Por outro lado, a fé está ligada também com a visão: umas
vezes, a visão dos sinais de Jesus precede a fé, como sucede com os judeus que,
depois da ressurreição de Lázaro, « ao verem o que Jesus fez, creram n’Ele » (Jo
11, 45); outras vezes, é a fé que leva a uma visão mais profunda: « Se
acreditares, verás a glória de Deus » (Jo 11, 40). Por fim, acreditar e
ver cruzam-se: « Quem crê em Mim (...) crê n’Aquele que Me enviou; e quem Me vê
a Mim, vê Aquele que me enviou » (Jo 12, 44-45). O ver, graças à sua
união com o ouvir, torna-se seguimento de Cristo; e a fé aparece como um
caminho do olhar em
39
que os olhos se habituam a ver
em profundidade. E assim, na manhã de Páscoa, de João — que, ainda na escuridão
perante o túmulo vazio, « viu e começou a crer » (Jo 20, 8) — passa-se a
Maria Madalena — que já vê Jesus (cf. Jo 20, 14) e quer retê-Lo, mas é
convidada a contemplá-Lo no seu caminho para o Pai — até à plena confissão da
própria Madalena diante dos discípulos: « Vi o Senhor! » (Jo 20, 18).
Como se
chega a esta síntese entre o ouvir e o ver? A partir da pessoa concreta de
Jesus, que Se vê e escuta. Ele é a Palavra que Se fez carne e cuja glória
contemplámos (cf. Jo 1, 14). A luz da fé é a luz de um Rosto, no qual se
vê o Pai. De facto, no quarto Evangelho, a verdade que a fé apreende é a
manifestação do Pai no Filho, na sua carne e nas suas obras terrenas; verdade
essa, que se pode definir como a « vida luminosa » de Jesus.24 Isto significa que o
conhecimento da fé não nos convida a olhar uma verdade puramente interior; a
verdade que a fé nos descerra é uma verdade centrada no encontro com Cristo, na
contemplação da sua vida, na percepção da sua presença. Neste sentido e a
propósito da visão corpórea do Ressuscitado, São Tomás de Aquino fala de oculata
fides (uma fé que vê) dos Apóstolos:25 viram Jesus ressuscitado com os seus
olhos
24 Cf. Heinrich Schlier, « Meditationen über den Johanneischen Begriff der
Wahrheit », in: Besinnung auf das Neue Testament. Exegetische Aufsätze und
Vorträge 2 (Friburgo, Basel, Viena 1959), 272.
25 Cf. Summa theologiae, III, q. 55, a. 2, ad 1.40
e acreditaram, isto é, puderam penetrar na profundidade
daquilo que viam para confessar o Filho de Deus, sentado à direita do Pai.
1.
Só assim, através
da encarnação, através da partilha da nossa humanidade, podia chegar à
plenitude o conhecimento próprio do amor. De facto, a luz do amor nasce quando
somos tocados no coração, recebendo assim, em nós, a presença interior do
amado, que nos permite reconhecer o seu mistério. Compreendemos agora por que
motivo, para João, a fé seja, juntamente com o escutar e o ver, um tocar, como
nos diz na sua Primeira Carta: « O que ouvimos, o que vimos (…) e as nossas
mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida… » (1 Jo 1, 1). Por meio da
sua encarnação, com a sua vinda entre nós, Jesus tocou-nos e, através dos
sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma, transformando o nosso coração,
permitiu-nos — e permite-nos — reconhecê-Lo e confessá-Lo como Filho de Deus.
Pela fé, podemos tocá-Lo e receber a força da sua graça. Santo Agostinho,
comentando a passagem da hemorroíssa que toca Jesus para ser curada (cf. Lc 8,
45-46), afirma: « Tocar com o coração, isto é crer ».26 A
multidão comprime-se ao redor de Jesus, mas não O alcança com aquele toque
pessoal da fé que reconhece o seu mistério, o seu ser Filho que manifesta o
Pai. Só quando
26 Sermo 229/L,
2: PLS 2, 576 (« Tangere autem corde, hoc est credere »). 41
somos configurados com Jesus é que recebemos o olhar
adequado para O ver.
O diálogo entre fé e razão
1.
A fé cristã,
enquanto anuncia a verdade do amor total de Deus e abre para a força deste
amor, chega ao centro mais profundo da experiência de cada homem, que vem à
luz graças ao amor e é chamado ao amor para permanecer na luz. Movidos pelo
desejo de iluminar a realidade inteira a partir do amor de Deus manifestado em
Jesus e procurando amar com este mesmo amor, os primeiros cristãos encontraram
no mundo grego, na sua fome de verdade, um parceiro idóneo para o diálogo. O
encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo
constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e
favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no
decurso dos séculos até aos nossos dias. O Beato João Paulo II, na sua carta
encíclica Fides et ratio, mostrou como fé e razão se reforçam
mutuamente.27 Depois de ter encontrado a luz plena do amor de Jesus,
descobrimos que havia, em todo o nosso amor, um lampejo daquela luz e
compreendemos qual era a sua meta derradeira; e, simultaneamente, o facto de o
nosso amor trazer em si uma luz ajuda-nos a ver o caminho do amor rumo à
plenitude da
27 Cf. n.º 73: AAS (1999), 61-62.42
doação total do Filho de Deus por nós. Neste movimento
circular, a luz da fé ilumina todas as nossas relações humanas, que podem ser
vividas em união com o amor e a ternura de Cristo.
1.
Na vida de Santo
Agostinho, encontramos um exemplo significativo deste caminho: a busca da
razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da
fé, do qual recebeu uma nova compreensão. Por um lado, acolhe a filosofia
grega da luz com a sua insistência na visão: o seu encontro com o neoplatonismo
fez-lhe conhecer o paradigma da luz, que desce do alto para iluminar as coisas,
tornando-se assim um símbolo de Deus. Desta maneira, Santo Agostinho
compreendeu a transcendência divina e descobriu que todas as coisas possuem em
si uma transparência, isto é, que podiam reflectir a bondade de Deus, o Bem;
assim se libertou do maniqueísmo, em que antes vivia, que o inclinava a pensar
que o bem e o mal lutassem continuamente entre si, confundindo-se e
misturando-se, sem contornos claros. O facto de ter compreendido que Deus é
luz deu à sua existência uma nova orientação, a capacidade de reconhecer o mal
de que era culpado e voltar-se para o bem.
Mas, por
outro lado, na experiência concreta de Agostinho, que ele próprio narra nas
suas Confissões, o momento decisivo no seu caminho de fé não foi uma
visão de Deus para além deste mundo, mas a escuta, quando no jardim ouviu uma
voz que lhe dizia: « Toma e lê »; ele pegou 43
no
tomo com as Cartas de São Paulo, detendo- -se no capítulo décimo terceiro da
Carta aos Romanos.28 Temos aqui o
Deus pessoal da Bíblia, capaz de falar ao homem, descer para viver com ele e
acompanhar o seu caminho na história, manifestando-Se no tempo da escuta e da
resposta.
Mas, este
encontro com o Deus da Palavra não levou Santo Agostinho a rejeitar a luz e a
visão, mas integrou ambas as perspectivas, guiado sempre pela revelação do
amor de Deus em Jesus. Deste modo, elaborou uma filosofia da luz que reúne em
si a reciprocidade própria da palavra e abre um espaço à liberdade própria do
olhar para a luz: tal como à palavra corresponde uma resposta livre, assim
também a luz encontra como resposta uma imagem que a reflecte. Deste modo,
associando escuta e visão, Santo Agostinho pôde referir-se à « palavra que
resplandece no interior do homem ».29 A luz torna-se, por assim dizer, a
luz de uma palavra, porque é a luz de um Rosto pessoal, uma luz que, ao
iluminar-nos, nos chama e quer reflectir-se no nosso rosto para resplandecer a
partir do nosso íntimo. Por outro lado, o desejo da visão do todo, e não
apenas dos fragmentos da história, continua presente e cumprir-se-á no fim,
quando o homem — como diz o Santo de Hipona — poderá ver e amar;30 e isto, não por ser capaz de
possuir a luz toda, já
28 Cf. Confessiones, VIII, 12,
29: PL 32, 762.
29 De Trinitate, XV, 11,
20: PL 42, 1071.
30 Cf. De civitate Dei, XXII,
30, 5: PL 41, 804.44
que esta será sempre inexaurível, mas por entrar, todo
inteiro, na luz.
1.
A luz do amor,
própria da fé, pode iluminar as perguntas do nosso tempo acerca da verdade.
Muitas vezes, hoje, a verdade é reduzida a autenticidade subjectiva do
indivíduo, válida apenas para a vida individual. Uma verdade comum mete-nos
medo, porque a identificamos — como dissemos atrás — com a imposição
intransigente dos totalitarismos; mas, se ela é a verdade do amor, se é a
verdade que se mostra no encontro pessoal com o Outro e com os outros, então
fica livre da reclusão no indivíduo e pode fazer parte do bem comum. Sendo a
verdade de um amor, não é verdade que se impõe pela violência, não é verdade
que esmaga o indivíduo; nascendo do amor pode chegar ao coração, ao centro
pessoal de cada homem; daqui resulta claramente que a fé não é intransigente,
mas cresce na convivência que respeita o outro. O crente não é arrogante; pelo
contrário, a verdade torna-o humilde, sabendo que, mais do que possuirmo-la
nós, é ela que nos abraça e possui. Longe de nos endurecer, a segurança da fé
põe-nos a caminho e torna possível o testemunho e o diálogo com todos.
Por outro
lado, enquanto unida à verdade do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo
material, porque o amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz
encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a matéria,
confia na sua ordem, sabe que nela se abre 45
um
caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da
ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à
realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico,
enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e
ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a
maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão
para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência.
A fé e a busca de Deus
1.
A luz da fé em
Jesus ilumina também o caminho de todos aqueles que procuram a Deus e oferece
a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das
diferentes religiões. A Carta aos Hebreus fala-nos do testemunho dos justos
que, antes da Aliança com Abraão, já procuravam a Deus com fé; lá se diz, a
propósito de Henoc, que « tinha agradado a Deus », sendo isso impossível sem a
fé, porque « quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e
recompensa aqueles que O procuram » (Heb 11, 5.6). Deste modo, é
possível compreender que o caminho do homem religioso passa pela confissão de
um Deus que cuida dele e que Se pode encontrar. Que outra recompensa poderia
Deus oferecer àqueles que O buscam, senão deixar-Se encontrar a Si mesmo? Ainda
antes de Henoc, encontramos a figura de Abel, de quem se louva igualmente a fé,
em virtude da
46
qual foram agradáveis a Deus os
seus dons, a oferenda dos primogénitos dos seus rebanhos (cf. Heb 11,
4). O homem religioso procura reconhecer os sinais de Deus nas experiências
diárias da sua vida, no ciclo das estações, na fecundidade da terra e em todo o
movimento do universo. Deus é luminoso, podendo ser encontrado também por
aqueles que O buscam de coração sincero.
Imagem desta
busca são os Magos, guiados pela estrela até Belém (cf. Mt 2, 1-12). A
luz de Deus mostrou-se-lhes como caminho, como estrela que os guia ao longo
duma estrada a descobrir. Deste modo, a estrela fala da paciência de Deus com
os nossos olhos, que devem habituar- -se ao seu fulgor. Encontrando-se a
caminho, o homem religioso deve estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si
mesmo para encontrar o Deus que não cessa de nos surpreender. Este respeito de
Deus pelos olhos do homem mostra-nos que, quando o homem se aproxima d’Ele, a luz
humana não se dissolve na imensidão luminosa de Deus, como se fosse um estrela
absorvida pela aurora, mas torna-se tanto mais brilhante quanto mais perto fica
do fogo gerador, como um espelho que reflecte o resplendor. A confissão de
Jesus, único Salvador, afirma que toda a luz de Deus se concentrou n’Ele, na
sua « vida luminosa », em que se revela a origem e a consumação da história.31 Não há nenhuma experiência hu
31 Cf. Congr. para a
Doutrina da Fé, Decl. Dominus Iesus (6 de Agosto de 2000), 15: AAS 92
(2000), 756.47
mana, nenhum itinerário do homem para Deus que não
possa ser acolhido, iluminado e purificado por esta luz. Quanto mais o cristão
penetrar no círculo aberto pela luz de Cristo, tanto mais será capaz de
compreender e acompanhar o caminho de cada homem para Deus.
Configurando-se
como caminho, a fé tem a ver também com a vida dos homens que, apesar de não
acreditar, desejam-no fazer e não cessam de procurar. Na medida em que se
abrem, de coração sincero, ao amor e se põem a caminho com a luz que conseguem
captar, já vivem — sem o saber — no caminho para a fé: procuram agir como se
Deus existisse, seja porque reconhecem a sua importância para encontrar
directrizes firmes na vida comum, seja porque sentem o desejo de luz no meio
da escuridão, seja ainda porque, notando como é grande e bela a vida, intuem
que a presença de Deus ainda a tornaria maior. Santo Ireneu de Lião refere que
Abraão, antes de ouvir a voz de Deus, já O procurava « com o desejo ardente do
seu coração » e « percorria todo o mundo, perguntando-se onde pudesse estar
Deus », até que « Deus teve piedade daquele que, sozinho, O procurava no
silêncio ».32 Quem se põe
a caminho para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está sustentado pela
sua ajuda, porque é próprio da dinâmica da luz divina iluminar os nossos olhos,
quando caminhamos para a plenitude do amor.
32 Demonstratio apostolicae
praedicationis, 24: SC 406, 117.48
Fé e
teologia
1.
Como luz que é, a
fé convida-nos a penetrar nela, a explorar sempre mais o horizonte que
ilumina, para conhecer melhor o que amamos. Deste desejo nasce a teologia
cristã; assim, é claro que a teologia é impossível sem a fé e pertence ao
próprio movimento da fé, que procura a compreensão mais profunda da
auto-revelação de Deus, culminada no Mistério de Cristo. A primeira
consequência é que, na teologia, não se verifica apenas um esforço da razão
para perscrutar e conhecer, como nas ciências experimentais. Deus não pode ser
reduzido a objecto; Ele é Sujeito que Se dá a conhecer e manifesta na relação
pessoa a pessoa. A fé recta orienta a razão para se abrir à luz que vem de
Deus, a fim de que ela, guiada pelo amor à verdade, possa conhecer Deus de
forma mais profunda. Os grandes doutores e teólogos medievais declararam que a
teologia, enquanto ciência da fé, é uma participação no conhecimento que Deus
tem de Si mesmo. Por isso, a teologia não é apenas palavra sobre Deus, mas,
antes de tudo, acolhimento e busca de uma compreensão mais profunda da palavra
que Deus nos dirige: palavra que Deus pronuncia sobre Si mesmo, porque é um
diálogo eterno de comunhão, no âmbito do qual é admitido o homem.33 Assim, é própria da teologia a humil
33 Cf. Boaventura, Breviloquium, Prol.: Opera Omnia, V
(Quaracchi 1891), 201; In I librum sententiarum, Proem., q. 1, resp.: Opera
Omnia, I (Quaracchi 1891), 7; Tomásde
Aquino, 49
dade, que se deixa « tocar » por Deus, reconhece os
seus limites face ao Mistério e se encoraja a explorar, com a disciplina
própria da razão, as riquezas insondáveis deste Mistério.
Além disso,
a teologia partilha a forma eclesial da fé; a sua luz é a luz do sujeito
crente que é a Igreja. Isto implica, por um lado, que a teologia esteja ao
serviço da fé dos cristãos, vise humildemente preservar e aprofundar o crer de
todos, sobretudo dos mais simples; e por outro, dado que vive da fé, a teologia
não considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como algo
de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como um dos
seus momentos internos constitutivos, enquanto o magistério assegura o contacto
com a fonte originária, oferecendo assim a certeza de beber na Palavra de
Cristo em toda a sua integridade.
Summa theologiae, I, q. 1.51
Capítulo III
TRANSMITO-VOS AQUILOQUERECEBI(cf. 1
Cor 15, 3)
A Igreja, mãe da nossa fé
1.
Quem se abriu ao
amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode guardar este dom
para si mesmo. Uma vez que é escuta e visão, a fé transmite-se também como
palavra e como luz; dirigindo-se aos Coríntios, o apóstolo Paulo utiliza
precisamente estas duas imagens. Por um lado, diz: « Animados do mesmo espírito
de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós
acreditamos e por isso falamos » (2 Cor 4, 13); a palavra recebida
faz-se resposta, confissão, e assim ecoa para os outros, convidando-os a crer.
Por outro, São Paulo refere-se também à luz: « E nós todos que, com o rosto
descoberto, reflectimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria
imagem » (2 Cor 3, 18); é uma luz que se reflecte de rosto em rosto,
como sucedeu com Moisés cujo rosto reflectia a glória de Deus depois de ter
falado com Ele: « [Deus] brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento
da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo » (2 Cor 4, 6). A
luz de Jesus brilha no rosto dos cristãos como num espelho, e assim se difunde
chegando até nós, para que também nós possamos participar desta visão e
reflectir para outros a sua luz, da mesma
52
forma
que a luz do círio, na liturgia de Páscoa, acende muitas outras velas. A fé
transmite-se por assim dizer sob a forma de contacto, de pessoa a pessoa, como
uma chama se acende noutra chama. Os cristãos, na sua pobreza, lançam uma
semente tão fecunda que se torna uma grande árvore, capaz de encher o mundo de
frutos.
38. A transmissão da fé, que brilha para as pessoas de
todos os lugares, passa também através do eixo do tempo, de geração em geração.
Dado que a fé nasce de um encontro que acontece na história e ilumina o nosso
caminho no tempo, a mesma deve ser transmitida ao longo dos séculos. É através
de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o rosto de Jesus. Como
é possível isto? Como se pode estar seguro de beber no « verdadeiro Jesus »
através dos séculos? Se o homem fosse um indivíduo isolado, se quiséssemos
partir apenas do « eu » individual, que pretende encontrar em si mesmo a
firmeza do seu conhecimento, tal certeza seria impossível; não posso, por mim mesmo,
ver aquilo que aconteceu numa época tão distante de mim. Mas, esta não é a
única maneira de o homem conhecer; a pessoa vive sempre em relação: provém de
outros, pertence a outros, a sua vida torna-se maior no encontro com os
outros; o próprio conhecimento e consciência de nós mesmos são de tipo
relacional e estão ligados a outros que nos precederam, a começar pelos nossos
pais que nos deram a vida e o nome. A própria linguagem, as
53
palavras
com que interpretamos a nossa vida e a realidade inteira chegam-nos através dos
outros, conservadas na memória viva de outros; o conhecimento de nós mesmos só
é possível quando participamos duma memória mais ampla. O mesmo acontece com a
fé, que leva à plenitude o modo humano de entender: o passado da fé, aquele
acto de amor de Jesus que gerou no mundo uma vida nova, chega até nós na
memória de outros, das testemunhas, guardado vivo naquele sujeito único de
memória que é a Igreja; esta é uma Mãe que nos ensina a falar a linguagem da
fé. São João insistiu sobre este aspecto no seu Evangelho, unindo conjuntamente
fé e memória e associando as duas à acção do Espírito Santo que, como diz
Jesus, « há-de recordar-vos tudo » (Jo 14, 26). O Amor, que é o Espírito
e que habita na Igreja, mantém unidos entre si todos os tempos e faz-nos
contemporâneos de Jesus, tornando-Se assim o guia do nosso caminho na fé.
39. É impossível crer sozinhos. A fé não é só uma opção
individual que se realiza na interioridade do crente, não é uma relação
isolada entre o « eu » do fiel e o « Tu » divino, entre o sujeito autónomo e
Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao « nós », verifica-se sempre dentro da
comunhão da Igreja. Assim no-lo recorda a forma dialogada do Credo, que se usa
na liturgia baptismal. O crer exprime-se como resposta a um convite, a uma
palavra que não provém de mim, mas deve ser escutada; por isso, insere-se no
interior de
54
um diálogo, não pode ser uma
mera confissão que nasce do indivíduo: só é possível responder « creio » em
primeira pessoa, porque se pertence a uma comunhão grande, dizendo também «
cremos ». Esta abertura ao « nós » eclesial realiza-se de acordo com a
abertura própria do amor de Deus, que não é apenas relação entre o Pai e o
Filho, entre « eu » e « tu », mas, no Espírito, é também um « nós », uma
comunhão de pessoas. Por isso mesmo, quem crê nunca está sozinho; e, pela mesma
razão, a fé tende a difundir-se, a convidar outros para a sua alegria. Quem
recebe a fé, descobre que os espaços do próprio « eu » se alargam, gerando-se
nele novas relações que enriquecem a vida. Assim o exprimiu vigorosamente
Tertuliano ao dizer do catecúmeno que, tendo sido recebido numa nova família «
depois do banho do novo nascimento », é acolhido na casa da Mãe para erguer as
mãos e rezar, juntamente com os irmãos, o Pai Nosso.34
Os sacramentos e a transmissão da fé
1.
Como sucede em
cada família, a Igreja transmite aos seus filhos o conteúdo da sua memória.
Como se deve fazer esta transmissão de modo que nada se perca, mas antes que
tudo se aprofunde cada vez mais na herança da fé? É através da Tradição
Apostólica, conservada na Igreja com a assistência do Espírito Santo, que
34 Cf. De Baptismo, 20, 5: CCL 1, 295.55
temos contacto vivo com a memória fundadora. E aquilo
que foi transmitido pelos Apóstolos, como afirma o Concílio Ecuménico Vaticano
II, « abrange tudo quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o
aumento da sua fé; e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e
transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita ».35
De facto, a
fé tem necessidade de um âmbito onde se possa testemunhar e comunicar, e que o
mesmo seja adequado e proporcionado ao que se comunica. Para transmitir um
conteúdo meramente doutrinal, uma ideia, talvez bastasse um livro ou a
repetição de uma mensagem oral; mas aquilo que se comunica na Igreja, o que se
transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus
vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua
mente, vontade e afectividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus
e com os outros. Para se transmitir tal plenitude, existe um meio especial que
põe em jogo a pessoa inteira: corpo e espírito, interioridade e relações. Este
meio são os sacramentos celebrados na liturgia da Igreja: neles, comunica-se
uma memória encarnada, ligada aos lugares e épocas da vida, associada com
todos os sentidos; neles, a pessoa é envolvida, como membro de um sujeito vivo,
num tecido de relações comunitárias. Por isso, se é verdade que os sacramentos
são os sacra
35 Const. dogm. sobre a divina
Revelação Dei Verbum, 8.56
mentos da fé,36 há que afirmar também que a fé tem uma estrutura sacramental; o
despertar da fé passa pelo despertar de um novo sentido sacramental na vida do
homem e na existência cristã, mostrando como o visível e o material se abrem
para o mistério do eterno.
1.
A transmissão da
fé verifica-se, em primeiro lugar, através do Baptismo. Poderia parecer que
este sacramento fosse apenas um modo para simbolizar a confissão de fé, um acto
pedagógico para quem precise de imagens e gestos, e do qual seria possível
fundamentalmente prescindir. Mas não é assim, como no-lo recorda uma palavra de
São Paulo: « Pelo Baptismo fomos sepultados com Cristo na morte, para que, tal
como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós
caminhemos numa vida nova » (Rm 6, 4); nele, tornamo-nos nova criatura e
filhos adoptivos de Deus. E mais adiante o Apóstolo diz que o cristão foi
confiado a uma « forma de ensino » (typos didachés), a que obedece de
coração (cf. Rm 6, 17): no Baptismo, o homem recebe também uma doutrina
que deve professar e uma forma concreta de vida que requer o envolvimento de
toda a sua pessoa, encaminhando-a para o bem; é transferido para um novo
âmbito, confiado a um novo ambiente, a uma nova maneira comum de agir, na
Igreja. Deste modo, o Baptismo recorda-nos que a fé não é obra do indiví
36 Cf. Conc. Ecum. Vat. ii, Const. sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum
Concilium, 59.57
duo isolado, não é um acto que o homem possa realizar
contando apenas com as próprias forças, mas tem de ser recebida, entrando na
comunhão eclesial que transmite o dom de Deus: ninguém se baptiza a si mesmo,
tal como ninguém vem sozinho à existência. Fomos baptizados.
1.
Quais são os
elementos baptismais que nos introduzem nesta nova « forma de ensino »? Sobre
o catecúmeno é invocado, em primeiro lugar, o nome da Trindade: Pai, Filho e
Espírito Santo. E deste modo se oferece, logo desde o princípio, uma síntese do
caminho da fé: o Deus que chamou Abraão e quis chamar-Se seu Deus, o Deus que
revelou o seu nome a Moisés, o Deus que, ao entregar-nos o seu Filho, nos
revelou plenamente o mistério do seu Nome, dá à pessoa baptizada uma nova
identidade filial. Desta forma, se evidencia o sentido da imersão na água que
se realiza no Baptismo: a água é, simultaneamente, símbolo de morte, que nos
convida a passar pela conversão do « eu » tendo em vista a sua abertura a um «
Eu » maior, e símbolo de vida, do ventre onde renascemos para seguir Cristo na
sua nova existência. Deste modo, através da imersão na água, o Baptismo
fala-nos da estrutura encarnada da fé. A acção de Cristo toca-nos na nossa realidade
pessoal, transformando-nos radicalmente, tornando-nos filhos adoptivos de Deus,
participantes da natureza divina; e assim modifica todas as nossas relações, a
nossa situação concreta na terra e no universo, abrindo-as à própria vida de
58
comunhão d’Ele. Este dinamismo
de transformação próprio do Baptismo ajuda-nos a perceber a importância do
catecumenato, que hoje — mesmo em sociedades de antigas raízes cristãs, onde um
número crescente de adultos se aproxima do sacramento baptismal — se reveste
de singular relevância para a nova evangelização. É o itinerário de preparação
para o Baptismo, para a transformação da vida inteira em Cristo.
Para
compreender a ligação entre o Baptismo e a fé, pode ajudar-nos a recordação de
um texto do profeta Isaías, que já aparece associado com o Baptismo na literatura
cristã antiga: « Terá o seu refúgio em rochas elevadas, terá (…) água em
abundância » (Is 33, 16).37 Resgatado da morte pela água, o baptizado pode manter-se
de pé sobre « rochas elevadas », porque encontrou a solidez à qual confiar-se;
e, assim, a água de morte transformou-se em água de vida. O texto grego
descrevia-a como água pistòs, água « fiel »: a água do Baptismo é fiel,
podendo confiar-nos a ela porque a sua corrente entra na dinâmica de amor de
Jesus, fonte de segurança para o nosso caminho na vida.
1.
A estrutura do
Baptismo, a sua configuração como renascimento no qual recebemos um nome novo
e uma vida nova, ajuda-nos a compreender o sentido e a importância do Baptismo
das crianças. Uma criança não é capaz de um acto
37 Cf. Epistula Barnabae, 11, 5: SC 172,
162.59
livre que acolha a fé: ainda não a pode confessar
sozinha e, por isso mesmo, é confessada pelos seus pais e pelos padrinhos em
nome dela. A fé é vivida no âmbito da comunidade da Igreja, insere-se num «
nós » comum. Assim, a criança pode ser sustentada por outros, pelos seus pais e
padrinhos, e pode ser acolhida na fé deles que é a fé da Igreja, simbolizada
pela luz que o pai toma do círio na liturgia baptismal. Esta estrutura do
Baptismo põe em evidência a importância da sinergia entre a Igreja e a família
na transmissão da fé. Os pais são chamados — como diz Santo Agostinho — não só
a gerar os filhos para a vida, mas a levá-los a Deus, para que sejam, através
do Baptismo, regenerados como filhos de Deus, recebam o dom da fé.38 Assim, juntamente com a vida, é-lhes dada a orientação
fundamental da existência e a segurança de um bom futuro; orientação esta, que
será ulteriormente corroborada no sacramento da Confirmação com o selo
indelével do Espírito Santo.
1.
A natureza
sacramental da fé encontra a sua máxima expressão na Eucaristia. Esta é alimento
precioso da fé, encontro com Cristo presente de maneira real no seu acto
supremo de amor: o dom de Si mesmo que gera vida. Na Eucaristia, temos o
cruzamento dos dois eixos sobre os quais a fé percorre o seu caminho. Por um
lado,
38 Cf. De nuptiis et concupiscentia, I, 4, 5: PL
44, 413 (« Habent quippe intentionem generandi regenerandos, ut qui ex eis
saeculi filii nascuntur in Dei filios renascantur »).60
o eixo da história: a Eucaristia é acto de memória,
actualização do mistério, em que o passado, como um evento de morte e
ressurreição, mostra a sua capacidade de se abrir ao futuro, de antecipar a
plenitude final; no-lo recorda a liturgia com o seu hodie, o « hoje » dos
mistérios da salvação. Por outro lado, encontra-se aqui também o eixo que
conduz do mundo visível ao invisível: na Eucaristia, aprendemos a ver a
profundidade do real. O pão e o vinho transformam-se no Corpo e Sangue de
Cristo, que Se faz presente no seu caminho pascal para o Pai: este movimento introduz-nos,
corpo e alma, no movimento de toda a criação para a sua plenitude em Deus.
1.
Na celebração dos
sacramentos, a Igreja transmite a sua memória, particularmente com a profissão
de fé. Nesta, não se trata tanto de prestar assentimento a um conjunto de
verdades abstractas, como sobretudo fazer a vida toda entrar na comunhão plena
com o Deus Vivo. Podemos dizer que, no Credo, o fiel é convidado a
entrar no mistério que professa e a deixar-se transformar por aquilo que
confessa. Para compreender o sentido desta afirmação, pensemos em primeiro
lugar no conteúdo do Credo. Este tem uma estrutura trinitária: o Pai e
o Filho unem-Se no Espírito de amor. Deste modo o crente afirma que o centro
do ser, o segredo mais profundo de todas as coisas é a comunhão divina. Além
disso, o Credo contém uma confissão cristológica: repassam- -se os
mistérios da vida de Jesus até à sua morte,
61
ressurreição e ascensão ao Céu,
na esperança da sua vinda final na glória. E, consequentemente, afirma-se que
este Deus-comunhão, permuta de amor entre o Pai e o Filho no Espírito, é capaz
de abraçar a história do homem, de introduzi-lo no seu dinamismo de comunhão,
que tem, no Pai, a sua origem e meta final. Aquele que confessa a fé sente-se
implicado na verdade que confessa; não pode pronunciar, com verdade, as
palavras do Credo, sem ser por isso mesmo transformado, sem mergulhar na
história de amor que o abraça, que dilata o seu ser tornando-o parte de uma
grande comunhão, do sujeito último que pronuncia o Credo: a Igreja.
Todas as verdades, em que cremos, afirmam o mistério da vida nova da fé como
caminho de comunhão com o Deus Vivo.
Fé, oração e Decálogo
1.
Há mais dois
elementos que são essenciais na transmissão fiel da memória da Igreja. O primeiro
é a Oração do Senhor, o Pai Nosso; nela, o cristão aprende a partilhar a
própria experiência espiritual de Cristo e começa a ver com os olhos d’Ele. A
partir d’Aquele que é Luz da Luz, do Filho Unigénito do Pai, também nós conhecemos
a Deus e podemos inflamar outros no desejo de se aproximarem d’Ele.
Igualmente
importante é ainda a ligação entre a fé e o Decálogo. Dissemos já que a fé se
apresenta como um caminho, uma estrada a percorrer, aberta pelo encontro com o
Deus vivo; por isso, à luz da fé, da entrega total ao Deus 62
que
salva, o Decálogo adquire a sua verdade mais profunda, contida nas palavras que
introduzem os Dez Mandamentos: « Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da
terra do Egipto » (Ex 20, 2). O Decálogo não é um conjunto de preceitos
negativos, mas de indicações concretas para sair do deserto do « eu »
auto-referencial, fechado em si mesmo, e entrar em diálogo com Deus,
deixando-se abraçar pela sua misericórdia a fim de a irradiar. Deste modo, a fé
confessa o amor de Deus, origem e sustentáculo de tudo, deixa- -se mover por
este amor para caminhar rumo à plenitude da comunhão com Deus. O Decálogo
aparece como o caminho da gratidão, da resposta de amor, que é possível
porque, na fé, nos abrimos à experiência do amor de Deus que nos transforma. E
este caminho recebe uma luz nova de tudo aquilo que Jesus ensina no Sermão da
Montanha (cf. Mt 5 — 7).
Toquei assim
os quatro elementos que resumem o tesouro de memória que a Igreja transmite: a
confissão de fé, a celebração dos sacramentos, o caminho do Decálogo, a oração.
À volta deles se estruturou tradicionalmente a catequese da Igreja, como se
pode ver no Catecismo da Igreja Católica, instrumento fundamental para
aquele acto com que a Igreja comunica o conteúdo inteiro da fé, « tudo aquilo
que ela é e tudo quanto acredita ».39
39 Conc. Ecum. Vat. ii, Const.
dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum, 8.63
A unidade e
a integridade da fé
1.
A unidade da
Igreja, no tempo e no espaço, está ligada com a unidade da fé: « Há um só Corpo
e um só Espírito, (...) uma só fé » (Ef 4, 4-5). Hoje poderá parecer
realizável a união dos homens com base num compromisso comum, na amizade, na
partilha da mesma sorte com uma meta comum; mas sentimos muita dificuldade em
conceber uma unidade na mesma verdade; parece-nos que uma união do género se
oporia à liberdade do pensamento e à autonomia do sujeito. Pelo contrário, a
experiência do amor diz-nos que é possível termos uma visão comum precisamente
no amor: neste, aprendemos a ver a realidade com os olhos do outro e isto,
longe de nos empobrecer, enriquece o nosso olhar. O amor verdadeiro, à medida
do amor divino, exige a verdade e, no olhar comum da verdade que é Jesus
Cristo, torna-se firme e profundo. Esta é também a alegria da fé: a unidade de
visão num só corpo e num só espírito. Neste sentido, São Leão Magno podia
afirmar: « Se a fé não é una, não é fé ».40
Qual é o
segredo desta unidade? A fé é una, em primeiro lugar, pela unidade de Deus
conhecido e confessado. Todos os artigos de fé se referem a Ele, são caminhos
para conhecer o seu ser e o seu agir; por isso, possuem uma unidade superior a
tudo quanto possamos construir com o nosso pensamento, possuem a unidade que
nos enriquece, porque se comunica a nós e nos torna um.
40 In nativitate Domini sermo, 4, 6: SC
22, 110.64
Depois,
a fé é una, porque se dirige ao único Senhor, à vida de Jesus, à história
concreta que Ele partilha connosco. Santo Ireneu de Lião deixou isto claro,
contrapondo-o aos hereges gnósticos. Estes sustentavam a existência de dois
tipos de fé: uma fé rude, a fé dos simples, imperfeita, que se mantinha ao
nível da carne de Cristo e da contemplação dos seus mistérios; e outro tipo de
fé mais profunda e perfeita, a fé verdadeira reservada para um círculo restrito
de iniciados, que se elevava com o intelecto para além da carne de Jesus rumo
aos mistérios da divindade desconhecida. Contra esta pretensão, que ainda em
nossos dias continua a ter o seu encanto e os seus seguidores, Santo Ireneu
reafirma que a fé é uma só, porque passa sempre pelo ponto concreto da
encarnação, sem nunca superar a carne e a história de Cristo, dado que Deus Se
quis revelar plenamente nela. É por isso que não há diferença, na fé, entre «
aquele que é capaz de falar dela mais tempo » e « aquele que fala pouco »,
entre aquele que é mais dotado e quem se mostra menos capaz: nem o primeiro
pode ampliar a fé, nem o segundo diminuí-la.41
Por último,
a fé é una, porque é partilhada por toda a Igreja, que é um só corpo e um só
Espírito: na comunhão do único sujeito que é a Igreja, recebemos um olhar
comum. Confessando a mesma fé, apoiamo-nos sobre a mesma rocha, somos
transformados pelo mesmo Espírito
41 Cf. Ireneu, Adversus
haereses, I, 10, 2: SC 264, 160.65
de amor, irradiamos uma única luz e temos um único
olhar para penetrar na realidade.
1.
Dado que a fé é
uma só, deve-se confessar em toda a sua pureza e integridade. Precisamente
porque todos os artigos da fé estão unitariamente ligados, negar um deles —
mesmo dos que possam parecer menos importantes — equivale a danificar o todo.
Cada época pode encontrar pontos da fé mais fáceis ou mais difíceis de
aceitar; por isso, é importante vigiar para que se transmita todo o depósito da
fé (cf. 1 Tm 6, 20) e para que se insista oportunamente sobre todos os
aspectos da confissão de fé. De facto, visto que a unidade da fé é a unidade da
Igreja, tirar algo à fé é fazê-lo à verdade da comunhão. Os Padres descreveram
a fé como um corpo, o corpo da verdade, com diversos membros, analogamente ao
que se passa no corpo de Cristo com o seu prolongamento na Igreja.42 A integridade da fé foi associada também com a imagem da Igreja virgem,
com o seu amor esponsal fiel a Cristo: danificar a fé significa danificar a
comunhão com o Senhor.43 A unidade da fé é, por conseguinte, a de um organismo
vivo, como bem evidenciou o Beato John Henry Newman, quando enumera, entre as
notas características para distinguir a continuidade da doutrina no tempo, o
seu poder de assimilar em si tudo o que encontra, nos
42 Cf. ibid., II, 27, 1: o. c., 294,
264.
43 Cf. Agostinho, De sancta virginitate, 48, 48: PL 40,
424- 425 (« Servatur et in fide inviolata quaedam castitas virginalis, qua
Ecclesia uni viro virgo casta cooptatur »).66
diversos âmbitos em que se torna presente, nas diversas
culturas que encontra,44
tudo purificando e
levando à sua melhor expressão. É assim que a fé se mostra universal, católica,
porque a sua luz cresce para iluminar todo o universo, toda a história.
1.
Como serviço à
unidade da fé e à sua transmissão íntegra, o Senhor deu à Igreja o dom da
sucessão apostólica. Por seu intermédio, fica garantida a continuidade da
memória da Igreja, e é possível beber, com certeza, na fonte pura donde surge a
fé; assim a garantia da ligação com a origem é-nos dada por pessoas vivas, o
que equivale à fé viva que a Igreja transmite. Esta fé viva assenta sobre a
fidelidade das testemunhas que foram escolhidas pelo Senhor para tal tarefa;
por isso, o magistério fala sempre em obediência à Palavra originária, sobre a
qual se baseia a fé, e é fiável porque se entrega à Palavra que escuta, guarda
e expõe.45 No discurso de despedida aos anciãos de Éfeso, em
Mileto, referido por São Lucas nos Actos dos Apóstolos, São Paulo atesta que
cumpriu o encargo, que lhe foi confiado pelo Senhor, de lhes anunciar toda a
vontade de Deus (cf. Act 20, 27); é graças ao magistério da Igreja que
nos pode chegar, íntegra, esta vontade e, com ela, a alegria de a podermos
cumprir plenamente.
44 Cf. An Essay on the Development of Christian
Doctrine (Uniform Edition: Longmans, Green and Company, Londres 1868-1881),
185-189.
45 Cf. Conc. Ecum. Vat. ii, Const. dogm. sobre a divina Revelação Dei Verbum,
10.67
Capítulo IV
DEUS PREPARAPARAELES UMACIDADE(cf. Heb 11, 16)
A fé e o bem comum
1.
Ao apresentar a
história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta aos Hebreus
põe em relevo um aspecto essencial da sua fé; esta não se apresenta apenas como
um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde os homens
possam habitar uns com os outros. O primeiro construtor é Noé, que, na arca,
consegue salvar a sua família (cf. Heb 11, 7). Depois aparece Abraão, de
quem se diz que, pela fé, habitara em tendas, esperando a cidade de alicerces
firmes (cf. Heb 11, 9-10). Vemos assim surgir, relacionada com a fé,
uma nova fiabilidade, uma nova solidez, que só Deus pode dar. Se o homem de fé
assenta sobre o Deus-Amen, o Deus fiel (cf. Is 65, 16), tornando-se
assim firme ele mesmo, podemos acrescentar que a firmeza da fé se refere
também à cidade que Deus está a preparar para o homem. A fé revela quão firmes
podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no meio
deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do crente; a
fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e segue a
dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável.
68
1.
Devido
precisamente à sua ligação com o amor (cf. Gl 5, 6), a luz da fé
coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz. A fé nasce do
encontro com o amor gerador de Deus que mostra o sentido e a bondade da nossa
vida; esta é iluminada na medida em que entra no dinamismo aberto por este
amor, isto é, enquanto se torna caminho e exercício para a plenitude do amor. A
luz da fé é capaz de valorizar a riqueza das relações humanas, a sua capacidade
de perdurarem, serem fiáveis, enriquecerem a vida comum. A fé não afasta do
mundo, nem é alheia ao esforço concreto dos nossos contemporâneos. Sem um amor
fiável, nada poderia manter verdadeiramente unidos os homens: a unidade entre
eles seria concebível apenas enquanto fundada sobre a utilidade, a conjugação
dos interesses, o medo, mas não sobre a beleza de viverem juntos, nem sobre a
alegria que a simples presença do outro pode gerar. A fé faz compreender a
arquitectura das relações humanas, porque identifica o seu fundamento último e
destino definitivo em Deus, no seu amor, e assim ilumina a arte da sua
construção, tornando-se um serviço ao bem comum. Por isso, a fé é um bem para
todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas o âmbito da Igreja nem serve
somente para construir uma cidade eterna no além, mas ajuda também a construir
as nossas sociedades de modo que caminhem para um futuro de esperança. A Carta
aos Hebreus oferece um exemplo disto mesmo, ao nomear entre os homens de fé
Samuel e Da
69
vid, a quem a fé permitiu «
exercerem a justiça » (11, 33). A expressão refere-se aqui à sua justiça no
governar, àquela sabedoria que traz a paz ao povo (cf. 1 Sm 12, 3-5; 2
Sm 8, 15). As mãos da fé levantam-se para o céu, mas fazem-no ao mesmo
tempo que edificam, na caridade, uma cidade construída sobre relações que têm
como alicerce o amor de Deus.
A fé e a família
1.
No caminho de
Abraão para a cidade futura, a Carta aos Hebreus alude à bênção que se
transmite dos pais aos filhos (cf. 11, 20-21). O primeiro âmbito da cidade dos
homens iluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, na união
estável do homem e da mulher no matrimónio. Tal união nasce do seu amor, sinal
e presença do amor de Deus, nasce do reconhecimento e aceitação do bem que é a
diferença sexual, em virtude da qual os cônjuges se podem unir numa só carne
(cf. Gn 2, 24) e são capazes de gerar uma nova vida, manifestação da
bondade do Criador, da sua sabedoria e do seu desígnio de amor. Fundados sobre
este amor, homem e mulher podem prometer-se amor mútuo com um gesto que
compromete a vida inteira e que lembra muitos traços da fé: prometer um amor
que dure para sempre é possível quando se descobre um desígnio maior que os
próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa
amada. Depois, a fé pode ajudar a individuar em toda a sua profundidade e
riqueza a
70
geração
dos filhos, porque faz reconhecer nela o amor criador que nos dá e nos entrega
o mistério de uma nova pessoa; foi assim que Sara, pela sua fé, se tornou mãe,
apoiando-se na fidelidade de Deus à sua promessa (cf. Heb 11, 11).
53. Em família, a fé acompanha todas as idades da vida, a
começar pela infância: as crianças aprendem a confiar no amor de seus pais. Por
isso, é importante que os pais cultivem práticas de fé comuns na família, que
acompanhem o amadurecimento da fé dos filhos. Sobretudo os jovens, que
atravessam uma idade da vida tão complexa, rica e importante para a fé, devem
sentir a proximidade e a atenção da família e da comunidade eclesial no seu
caminho de crescimento da fé. Todos vimos como, nas Jornadas Mundiais da
Juventude, os jovens mostram a alegria da fé, o compromisso de viver uma fé
cada vez mais sólida e generosa. Os jovens têm o desejo de uma vida grande; o
encontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seu amor alarga o
horizonte da existência, dá-lhe uma esperança firme que não desilude. A fé não
é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir uma
grande chamada — a vocação ao amor — e assegura que este amor é fiável, que
vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na
fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade.
71
Uma luz para
a vida em sociedade
1.
Assimilada e
aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações
sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se
depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a
fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas,
pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do
referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir;
por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade. Desde o seu
início, a história de fé foi uma história de fraternidade, embora não
desprovida de conflitos. Deus chama Abraão para sair da sua terra, prometendo
fazer dele uma única e grande nação, um grande povo, sobre o qual repousa a
Bênção divina (cf. Gn 12, 1-3). À medida que a história da salvação
avança, o homem descobre que Deus quer fazer a todos participar como irmãos da
única bênção, que encontra a sua plenitude em Jesus, para que todos se tornem
um só. O amor inexaurível do Pai é-nos comunicado em Jesus, também através da
presença do irmão. A fé ensina-nos a ver que, em cada homem, há uma bênção para
mim, que a luz do rosto de Deus me ilumina através do rosto do irmão.
Quantos
benefícios trouxe o olhar da fé cristã à cidade dos homens para a sua vida em
comum! Graças à fé, compreendemos a dignidade única de cada pessoa, que não
era tão evidente 72
no
mundo antigo. No século II, o pagão Celso censurava os cristãos por algo que
lhe parecia uma ilusão e um engano: pensar que Deus tivesse criado o mundo para
o homem, colocando-o no vértice do universo inteiro. « Porquê pretender que [a
verdura] cresça para os homens, em vez de crescer para os mais selvagens dos
animais sem razão? »46 « Se
olhássemos a terra do alto do céu, que diferença se nos ofereceria entre as
nossas actividades e as das formigas e das abelhas? »47 No centro da fé bíblica, há o amor
de Deus, o seu cuidado concreto por cada pessoa, o seu desejo de salvação que
abraça toda a humanidade e a criação inteira e que atinge o clímax na encarnação,
morte e ressurreição de Jesus Cristo. Quando se obscurece esta realidade, falta
o critério para individuar o que torna preciosa e única a vida do homem; e
este perde o seu lugar no universo, extravia-se na natureza, renunciando à
própria responsabilidade moral, ou então pretende ser árbitro absoluto,
arrogando-se um poder de manipulação sem limites.
1.
Além disso a fé,
ao revelar-nos o amor de Deus Criador, faz-nos olhar com maior respeito para a
natureza, fazendo-nos reconhecer nela uma gramática escrita por Ele e uma
habitação que nos foi confiada para ser cultivada e guardada; ajuda-nos a
encontrar modelos de progresso, que não se baseiem apenas na utilidade e no lu
46 Orígenes, Contra
Celsum, IV, 75: SC 136, 372.
47 Ibid., 85: o.
c., 136, 394.73
cro mas considerem a criação como dom, de que todos
somos devedores; ensina-nos a individuar formas justas de governo, reconhecendo
que a autoridade vem de Deus para estar ao serviço do bem comum. A fé afirma
também a possibilidade do perdão, que muitas vezes requer tempo, canseira,
paciência e empenho; um perdão possível quando se descobre que o bem é sempre
mais originário e mais forte que o mal, que a palavra com que Deus afirma a
nossa vida é mais profunda do que todas as nossas negações. Aliás, mesmo dum
ponto de vista simplesmente antropológico, a unidade é superior ao conflito;
devemos preocupar-nos também com o conflito, mas vivendo-o de tal modo que nos
leve a resolvê-lo, a superá-lo, como elo duma cadeia, num avanço para a
unidade.
Quando a fé
esmorece, há o risco de esmorecerem também os fundamentos do viver, como
advertia o poeta Thomas Sterls Eliot: « Precisais porventura que se vos diga
que até aqueles modestos sucessos / que vos permitem ser orgulhosos de uma
sociedade educada / dificilmente sobreviveriam à fé, a que devem o seu significado?
»48 Se tiramos a
fé em Deus das nossas cidades, enfraquecer-se-á a confiança entre nós, apenas
o medo nos manterá unidos, e a estabilidade ficará ameaçada. Afirma a Carta aos
Hebreus: « Deus não Se envergonha de ser cha
48 « Choruses from The Rock », in: The
Collected Poems and Plays 1909-1950 (Nova Iorque 1980), 106.74
mado o “seu Deus”, porque preparou para eles uma
cidade » (Heb 11, 16). A expressão « não se envergonha » tem conotado um
reconhecimento público: pretende-se afirmar que Deus, com o seu agir concreto,
confessa publicamente a sua presença entre nós, o seu desejo de tornar firmes
as relações entre os homens. Porventura vamos ser nós a envergonhar-nos de
chamar a Deus « o nosso Deus »? Seremos por acaso nós a recusar- -nos a confessá-Lo
como tal na nossa vida pública, a propor a grandeza da vida comum que Ele
torna possível? A fé ilumina a vida social: possui uma luz criadora para cada
momento novo da história, porque coloca todos os acontecimentos em relação com
a origem e o destino de tudo no Pai que nos ama.
Uma força consoladora no sofrimento
1.
São Paulo,
falando aos cristãos de Corinto das suas tribulações e sofrimentos, coloca a
sua fé em relação com a pregação do Evangelho. De facto, diz que nele se cumpre
esta passagem da Escritura: « Acreditei e por isso falei » (2 Cor 4,
13). O Apóstolo refere-se a uma frase do Salmo 116, onde o salmista exclama: «
Eu tinha confiança, mesmo quando disse: “A minha aflição é muito grande!” »
(v. 10). Falar da fé comporta frequentemente falar também de provas dolorosas,
mas é precisamente nelas que São Paulo vê o anúncio mais convincente do
Evangelho, porque é na fraqueza e no sofrimento que sobressai e se descobre o
poder de Deus que supera a nossa fra
75
queza
e o nosso sofrimento. O próprio Apóstolo se encontra numa situação de morte que
redunda em vida para os cristãos (cf. 2 Cor 4, 7-12). Na hora da prova,
a fé ilumina-nos; e é precisamente no sofrimento e na fraqueza que se torna
claro como « não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor » (2
Cor 4, 5). O capítulo 11 da Carta aos Hebreus termina com a referência a
quantos sofreram pela fé, entre os quais ocupa um lugar particular Moisés que
tomou sobre si a humilhação de Cristo (cf. vv. 26.35-38). O cristão sabe que o
sofrimento não pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido: pode tornar-se
acto de amor, entrega nas mãos de Deus que não nos abandona e, deste modo, ser
uma etapa de crescimento na fé e no amor. Contemplando a união de Cristo com o
Pai, mesmo no momento de maior sofrimento na cruz (cf. Mc 15, 34), o
cristão aprende a participar no olhar próprio de Jesus; até a morte fica
iluminada, podendo ser vivida como a última chamada da fé, o último « Sai da
tua terra » (cf. Gn 12, 1), o último « Vem! » pronunciado pelo Pai, a
quem nos entregamos com a confiança de que Ele nos tornará firmes também na
passagem definitiva.
57. A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do
mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de
fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata
Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximan
76
do-se deles, certamente não
cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não
é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos
na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um
raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma
presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de
sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. Em Cristo, o próprio Deus quis
partilhar connosco esta estrada e oferecer-nos o seu olhar para nela vermos a
luz. Cristo é aquele que, tendo suportado a dor, Se tornou « autor e
consumador da fé » (Heb 12, 2).
O sofrimento
recorda-nos que o serviço da fé ao bem comum é sempre serviço de esperança que
nos faz olhar em frente, sabendo que só a partir de Deus, do futuro que vem de
Jesus ressuscitado, é que a nossa sociedade pode encontrar alicerces sólidos
e duradouros. Neste sentido, a fé está unida à esperança, porque, embora a
nossa morada aqui na terra se vá destruindo, há uma habitação eterna que Deus
já inaugurou em Cristo, no seu corpo (cf. 2 Cor 4, 16 — 5, 5). Assim, o
dinamismo de fé, esperança e caridade (cf. 1 Ts 1, 3; 1 Cor 13,
13) faz-nos abraçar as preocupações de todos os homens, no nosso caminho rumo
àquela cidade, « cujo arquitecto e construtor é o próprio Deus » (Heb 11,
10), porque « a esperança não engana » (Rm 5, 5).
Unida à fé e
à caridade, a esperança projecta-nos para um futuro certo, que se coloca numa
77
perspectiva
diferente relativamente às propostas ilusórias dos ídolos do mundo, mas que dá
novo impulso e nova força à vida de todos os dias. Não deixemos que nos roubem
a esperança, nem permitamos que esta seja anulada por soluções e propostas
imediatas que nos bloqueiam no caminho, que « fragmentam » o tempo transformando-o
em espaço. O tempo é sempre superior ao espaço: o espaço cristaliza os
processos, ao passo que o tempo projecta para o futuro e impele a caminhar na
esperança.79
FELIZ
DAQUELA QUE ACREDITOU (cf. Lc 1, 45)
1.
Na parábola do
semeador, São Lucas refere estas palavras com que o Senhor explica o significado
da « terra boa »: « São aqueles que, tendo ouvido a palavra com um coração bom
e virtuoso, conservam-na e dão fruto com a sua perseverança » (Lc 8,
15). No contexto do Evangelho de Lucas, a menção do coração bom e virtuoso, em
referência à Palavra ouvida e conservada, pode constituir um retrato implícito
da fé da Virgem Maria; o próprio evangelista nos fala da memória de Maria,
dizendo que conservava no coração tudo aquilo que ouvia e via, de modo que a
Palavra produzisse fruto na sua vida. A Mãe do Senhor é ícone perfeito da fé,
como dirá Santa Isabel: « Feliz de ti que acreditaste » (Lc 1, 45).
Em Maria,
Filha de Sião, tem cumprimento a longa história de fé do Antigo Testamento,
com a narração de tantas mulheres fiéis a começar por Sara; mulheres que eram,
juntamente com os Patriarcas, o lugar onde a promessa de Deus se cumpria e a
vida nova desabrochava. Na plenitude dos tempos, a Palavra de Deus dirigiu-se
a Maria, e Ela acolheu-a com todo o seu ser, no seu coração, para que n’Ela
tomasse carne e nascesse como luz para os homens. O mártir São Justino, na obra
Diálogo com Trifão, tem uma expressão significativa ao dizer que Maria,
quando aceitou a mensagem do Anjo, concebeu 80
«
fé e alegria ».49 De facto, na
Mãe de Jesus, a fé mostrou-se cheia de fruto e, quando a nossa vida espiritual
dá fruto, enchemo-nos de alegria, que é o sinal mais claro da grandeza da fé.
Na sua vida, Maria realizou a peregrinação da fé seguindo o seu Filho.50 Assim, em Maria, o caminho de
fé do Antigo Testamento foi assumido no seguimento de Jesus e deixa-se
transformar por Ele, entrando no olhar próprio do Filho de Deus encarnado.
1.
Podemos dizer
que, na Bem-aventurada Virgem Maria, se cumpre aquilo em que insisti anteriormente,
isto é, que o crente se envolve todo na sua confissão de fé. Pelo seu vínculo
com Jesus, Maria está intimamente associada com aquilo que acreditamos. Na
concepção virginal de Maria, temos um sinal claro da filiação divina de
Cristo: a origem eterna de Cristo está no Pai — Ele é o Filho em sentido total
e único — e por isso nasce, no tempo, sem intervenção do homem. Sendo Filho,
Jesus pode trazer ao mundo um novo início e uma nova luz, a plenitude do amor
fiel de Deus que Se entrega aos homens. Por outro lado, a verdadeira maternidade
de Maria garantiu, ao Filho de Deus, uma verdadeira história humana, uma
verdadeira carne na qual morrerá na cruz e ressuscitará dos mortos. Maria
acompanhá-Lo-á até à cruz (cf. Jo 19, 25), donde a sua maternidade se
estenderá a todo o discípulo de seu Filho (cf. Jo
49 Cf. Dialogus cum Tryphone Iudaeo, 100, 5: PG
6, 710.
50 Cf. Conc. Ecum. Vat. ii, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium,
58.81
19, 26-27). Estará presente também no Cenáculo, depois
da ressurreição e ascensão de Jesus, para implorar com os Apóstolos o dom do
Espírito (cf. Act 1, 14). O movimento de amor entre o Pai e o Filho no
Espírito percorreu a nossa história; Cristo atrai-nos a Si para nos poder
salvar (cf. Jo 12, 32). No centro da fé, encontra-se a confissão de
Jesus, Filho de Deus, nascido de mulher, que nos introduz, pelo dom do Espírito
Santo, na filiação adoptiva (cf. Gl 4, 4-6).
1.
A Maria, Mãe da
Igreja e Mãe da nossa fé, nos dirigimos, rezando-Lhe:
Ajudai, ó
Mãe, a nossa fé.
Abri o nosso
ouvido à Palavra, para reconhecermos a voz de Deus e a sua chamada.
Despertai em
nós o desejo de seguir os seus passos, saindo da nossa terra e acolhendo a sua
promessa.
Ajudai-nos a
deixar-nos tocar pelo seu amor, para podermos tocá-Lo com a fé.
Ajudai-nos a
confiar-nos plenamente a Ele, a crer no seu amor, sobretudo nos momentos de
tribulação e cruz, quando a nossa fé é chamada a amadurecer.
Semeai, na
nossa fé, a alegria do Ressuscitado.
Recordai-nos
que quem crê nunca está sozinho.
Ensinai-nos
a ver com os olhos de Jesus, para que Ele seja luz no nosso caminho. E que esta
luz da fé cresça sempre em nós até chegar 82
aquele
dia sem ocaso que é o próprio Cristo, vosso Filho, nosso Senhor.
Dado em Roma, junto de São
Pedro, no dia 29 de Junho, solenidade dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, do
ano 2013, primeiro de Pontificado.83
ÍNDICE
A Luz da Fé [1] 3
Uma luz
ilusória? [2-3] 4
Uma luz a
redescobrir [4-7] 5
I
ACREDITÁMOS
NO AMOR
(cf. 1 Jo
4, 16)
Abraão, nosso pai na fé
[8-11] . . . . . 11
A fé de
Israel [12-14] 14
A plenitude
da fé cristã [15-18] 18
A salvação
pela fé [19-21] 23
A forma
eclesial da fé [22] 26
II
SE NÃO
ACREDITARDES,
NÃO COMPREENDEREIS (cf. Is 7, 9)
Fé e verdade [23-25] 29
Conhecimento
da verdade e amor [26-28] 32
A fé como
escuta e visão [29-31] 36
O diálogo
entre fé e razão [32-34] . . . 41
A fé e a
busca de Deus [35] 45
Fé e
teologia [36] . . . . . . . . . . 48
III
TRANSMITO-VOS AQUILO QUE RECEBI
(cf. 1
Cor 15, 3)
A Igreja, mãe da nossa fé
[37-39] 51
Os sacramentos
e a transmissão da fé [40-45] 54
Fé, oração e
Decálogo [46] . . . . . . 61
A unidade e
a integridade da fé [47-49] 63
IV
DEUS PREPARA PARA ELES UMA CIDADE
(cf. Heb 11,
16)
A fé e o bem comum [50-51] .
. . . . 67
A fé e a
família [52-53] 69
Uma luz para
a vida em sociedade [54-55] 71
Uma força
consoladora no sofrimento [56-57] 74
FELIZ
DAQUELA QUE ACREDITOU (cf. Lc 1, 45) [58-60] 79
TIPOGRAFIA VATICANA
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