sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O Padre Vitorino, Estêvão de religioso beneditino e deixou caducar o passaporte

O Padre Vitorino, Estêvão de religioso beneditino

Atualizado há 2 segundos

261 MUNDO I PÚBLICO. QUA 4 FEV 2015


Catarina Gomes o texto) e Manuel Roberto (fotos), em Luena 
Nas ruínas de uma povoação colonial abandonada vive um missionário português que chegou no início de uma guerra e ficou durante a que se lhe seguiu. Numa delas, foi raptado. É uma personagem famosa na região aqui não caiu nenhuma bomba”. O padre Estêvão refere-se ao local preciso em que os seus pés calçados com meias beje e sandálias abertas de tiras estão assentes no chão. De resto, vai rememorando e apontando os locais das quedas dos variados objectos explosivos que designa genericamente como “bombas”, com sotaque ainda minhoto: “Aí caiu uma, outra ali, caiu uma ali à frente, outra ali, outra na ponte, outras acolá”. E já lhe faltam direcções para onde apontar, o mundo à sua volta foi bombardeado. As paredes do palacete colonial em ruínas onde vive sozinho guardam em si marcas de muitas guerras. Como o padre Estêvão. Não há quem não o conheça em Luena, que ainda se chamava Luso quando para ali foi (Leste de Angola), é uma personagem famosa na região. É o português que por ali ficou, sempre. E que agora é deles.

 
 
 

Estêvão é o nome religioso que escolheu para si quando se tomou beneditino, explica que quer dizer “coroado”. São poucos os que ali saberão que o seu nome de baptismo é Vitorino, que, por sua vez, quer dizer “o pequeno vencedor”, e que o seu apelido é Simões. O padre Estêvão, •como todos o conhecem, habita um sítio fantasma, que parece fora do espaço e fora do tempo. Para se chegar até ele é preciso ir num veículo todo- o-terreno, sair da cidade de Luena, e depois percorrer durante meia hora (se tudo correr bem) um caminho de terra batida cheio de crateras e pe­quenas elevações de terra.



O sacerdote de 81 anos está, em teoria, contactável, conta que é pro­prietário de nada menos do que dois telemóveis, “um é um Somsung, Simsaung, Samsung”, diz, brincando com a sua inaptidão para as línguas estrangeiras. De pouco lhe servem, o de marca sul-coreana e o outro da Movicel, no sítio onde vive não há rede. Também não há luz eléctrica. Para acender o gerador que tem encostado a um canto seria preciso repará-lo e comprar gasolina, para acender os candeeiros em casa seria preciso petróleo e, para isso, “tinha de ir buscá-los ao aeroporto”, explica-nos, parecendo dizer que tem tudo o que precisa mesmo ali.
É lusco-fusco, na casa onde vive acende uma vela que lhe ilumina parte do rosto e deixa entrever o tecto desmoronado de um dos salões de ar senhorial. Noutra divisão, há uma enorme mesa de madeira corrida que um dia terá acolhido convidados importantes - é onde come sozinho e onde tem o fogão. No escritório, tem uma secretária, uma máquina de costura e estantes de livros cujos títulos não se conseguem ler apenas com a luz da vela que transporta na mão.
É o único habitante deste casario que guarda a história dos primórdios da presença colonial portuguesa nesta região remota do interior de Ango­la, foi ali a primeira capital da província do Moxico. As primeiras expedições à região remonta ao final do século XIX, a edificação desta primei­ra povoação foi levada a cabo pelo chefe da primeira expedição, o tenen­te-coronel Trigo Teixeira, em 1895.
O sítio onde vive o missionário foi a residência do primeiro governador português na região, D. António de Almeida, na década de 1920, que depressa se desencantou do local, conta o sacerdote. Deixou para trás a povoação e cedeu-a aos missionários. “Fugiu, foi atrás do comboio”. Foi criada uma nova capital da província ali a uns 20 quilômetros, onde ficou até hoje e se chama Luena, como o nome do rio que a banha. Os portu­gueses baptizaram mais tarde a cida­de de Luso. Ao sítio remoto onde o padre Estêvão habita, e onde os pou­cos paroquianos habitam em cubatas tradicionais ali em volta, chamam-lhe hoje Moxico Velho.
O palacete resistiu como pôde ao sabor das guerras, primeiro a colo­nial ou do Ultramar, como lhe pre­firam chamar, depois a guerra civil angolana. “Há marcas de estilhaços na parede”. As lembranças dos con­flitos parecem amalgamadas na me­mória do padre, que vive em Angola há 53 anos, e quando nos começa a contar como, “durante a guerra”, foi raptado pelo MPLA, dos seus 25 dias de cativeiro, já não sabe precisar em que ano aconteceram, nem se per­cebe em qual das guerras. Sabe que andou no mato entre um dia 25 de Outubro e um 18 de Novembro.
Um livro sobre as “conquistas” *dos comandos portugueses (Siroco - Os Comandos Portugueses no Leste de Angola), da autoria do tenente-co­ronel Antônio Pires Nunes, ajuda-nos a preencher os lapsos de memória do sacerdote. Foi raptado em 1968, em plena guerra colonial. Neste livro, editado pela Associação de Coman­dos (2014), o episódio é tratado como um revés na chamada operação Des- baste: “Na véspera do seu lançamen­to, chegou ao comando da Zona Mili­tar do Leste a notícia de que o padre Estêvão da diocese do Luso acabava de ser raptado pelo MPLA quando teria ido à sanzala do Lumege dar a extrema-unção a um moribundo. Sucederam-se pressões eclesiásticas movidas pelo bispo do Luso para que se movimentassem as forças arma­das para libertar o padre”.



Escreve-se que o MPLA terá tido receio de que, nas idas do religioso à tal povoação, ele trouxesse de volta conhecimentos do terreno às autori­dades portuguesas. O padre Estêvão diz que foi preso porque eles o ouvi­ram usar o termo “turras”.
Em jeito de balanço, escreve-se que a operação Desbaste foi um su­cesso: “Causou ao MPLA 47 mortos, 3 feridos e 74 capturados. Foi des­truída uma apreciável quantidade de acampamentos” e “o padre Estêvão foi recuperado” depois de um ataque das forças armadas ao acampamento onde estava aprisionado. No livro, a história termina quase em estilo de western: “Ao raiar da aurora, o padre Estêvão, envergando a batina e a estola habitual, escapou ao tiroteio e foi resgatado”.
O relato de padre Estêvão é bas­tante menos dramático. Passados 47 anos, realça-lhe os elementos cómi­cos, graceja, Bíblia a todo o tempo debaixo do braço, quando diz que a sua memória lhe “cristianizou” o rapto, tomando-o talvez mais suave do que foi: “Eles, coitadinhos, não me fizeram mal. Cama não tinha, fome não passei, tinha sempre duas moças que me faziam comida”, nun­ca mais se esqueceu dos seus nomes de guerra, entre os guerrilheiros não havia nomes civis, “eram a Azarada e a Decidida. Tinham sempre um mata-bicho para mim. Elas até me lavavam os pés. Só que, de andar des­calço, fiquei com os pés inchados”. Quando aquilo acabou, teve de ficar três dias no hospital com os pés alça­dos, para desincharem do tamanho anormal que foram adquirindo nessa sua marcha forçada de 25 dias, conta bem-disposto. Também não fala mal dos “da outra parte”: “Os da UN1TA eram umas jóias, a certa altura até acharam que eu era da UNITA”.
É Raimundo da Silva, notário em Luena e cantor popular Rai Lex nas horas vagas, “mérito cultural” reconhecido pelo MPLA com a oferta da viatura Hyace 4x4 que nos conduz até ao padre Estêvão, quem nos quer muito vir mostrar o sacerdote e o local onde ele mora. É como se as ruínas desse tempo colonial português e o próprio sacerdote fossem monumentos “a não perder” para visitantes vindos de Portugal. Raimundo da Silva, de 54 anos, foi aluno na missão católica do Moxico Velho. Como criança, lembra-se de ter de içar a bandeira portuguesa, de le­var palmatória quando não sabia a tabuada ou coisas da História de Portugal, ali ouviu falar dos mosteiros da Batalha e dos Jerónimos, num tal Afonso Henriques, numa tal rainha Dona Filipa de Lencastre, de um tal Egas Moniz, na serra da Estrela. Na altura, nada se aprendia sobre a História de Angola. Foi também ali que teve de aprender que havia quatro estações, Primavera, Verão, Outono, Inverno, embora ele e os outros meninos angolanos só vivessem duas, “o tempo chuvoso e o tempo do cacimbo”. Um dia gostava de ir a Portugal, na Primavera, ouviu falar bem dessa estação.
Acabou “o tempo colonial”. Mas o padre Estêvão ficou. É quase como um troféu, como se ele agora fosse angolano. Raimundo da Silva diz que o padre é demasiado modesto, que pouco falou do que por ali passou, “de ter sido o escudo das populações” durante a guerra civil que durou até 2002, que a batina, mesmo em guerra, ainda valia alguma coisa. Chegou a dizer: “Se querem matar alguém, têm de me matar a mim primeiro". Não por acaso o edifício mais bem cuidado deste povoado é a igreja, estilo Estado Novo, impecavelmente pintada.
Raimundo da Silva termina a visita turística ao padre oferecendo-se carinhosamente para lhe deixar ao menos mudar as lâmpadas, ligar o gerador, e o padre vai dizendo que não é preciso, brinca com Raimundo e o seu nome, “Raimundo, pensa que é o rei do mundo".



Vitorino Simões nasceu a 2 de Fevereiro de 1934, no lugar de Anha, Viana do Castelo, foi ordenado padre em 1959, seguindo a vocação e o exemplo dos “primos padres”. Diz que foi mandado de bom grado para Angola em 1962 vindo do mosteiro de Singeverga, no concelho de Santo Tirso, onde chegou a responsável dos noviços, um cargo que deixou para vir para cá. O abade Dom Gabriel de Sousa fez- lhe a pergunta muito a medo, ficou surpreendido quando ele aceitou a missão. “Ninguém queria vir meter- se ‘no meio dos pretos’, que era assim que se dizia na altura".
Viajou no navio Vera Cruz, veio com os militares portugueses que vinham para a guerra. “Era como uma família dentro do barco, gostei muito das viagens”. Aquele sítio é a sua casa. Quando foi raptado, a família ainda alimentou a ilusão de que ia voltar para Portugal, que tal­vez o susto o convencesse. Estavam enganados. Há pouco tempo, soube que o irmão gémeo lhe morreu em Portugal, a notícia chegou-lhe um ano depois. Tem algures ali guar­dado naquele palacete colonial em ruínas o seu passaporte português, mas deixou-o caducar.
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Vitorino Simões nasceu a 2 de Fevereiro de 1934. Chegou a Angola em 1962, vindo do mosteiro de Singeverga, em Santo Tirso. No Moxico Velho, onde vive num palacete sem luz, é o "padre Estêvão"

 

P. S.- Este sacerdote vai a caminho dos 50 anos de missionário na diocese de Luena, antigo Moxico Velho. Recorda-me de numa das visitas de férias para tratar da saúde, vivia aqui na Paróquia e celebrou diariamante aqui durante de vários anos.
Na última ele afirmou numa homilia que a minha terra não era esta, nem Vila Nova de Anha onde nasceu, mas Luena onde estavam os pobres e os famintos de tudo.
Daí o agrado de termos lido no Público esta reportagem que transcrevermos como a foto que o jornal publicou. Tem gerador, mas não tem gasolina e a vela serve para ler e escrever pela noite.



 

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