terça-feira, 30 de setembro de 2014

Frei Bento Domingues: a escrita e Jesus, Portugal e o mundo, a missa e o livro da vida


Frei Bento Domingues: a escrita e Jesus, Portugal e o mundo, a missa e o livro da vida


 
“Não gosto de escrever. Se pudesse, era todo o tempo a ler. Gosto também de discutir o que leio com outros e gosto do debate”, diz frei Bento Domingues, numa entrevista a Manuel Vilas Boas, na TSF, onde passa em revista algumas das ideias das duas antologias de crónicas do Público, editadas nos últimos meses: Um Mundo Que Falta Fazer A Insurreição de Jesus.

 

Na Antena 1, na véspera da sessão de dia 19 na Gulbenkian, Duarte Belo entrevistou também o teólogo dominicano. Sobre o título do último volume de antologia, diz frei Bento: “A insurreição de Jesus não é a organização de um movimento bélico (...) o que ele queria era mudar a mente das pessoas, o evangelho é isso. O que ele pregava era a alegria, porque mudamos de vida, mudamos de orientação de v ida, mudamos para ver o mundo a partir dos excluídos; nesse aspecto, estou muito agradecido a Deus  por nos ter facultado a possibilidade de um papa como o Papa Francisco...” (a entrevista pode ser escutada aqui na íntegra)

 

Também antes do encontro na Gulbenkian, Bento Domingues foi entrevistado por Luís Caetano no programa A Ronda da Noite, da Antena 2, durante dois dias. “Eu não queria uma missa para crianças, [outra para] adolescentes ou adultos. A eucaristia é celebração da família dos filhos de Deus (...) fazemos uma festa, que seja o momento em que se transforma a vida subvertemos as desgraças da nossa semana”, dizia ele, dia 17

Na segunda noite, acrescentava: “Devemos evangelizar tanto a nossa sensibilidade, como a nossa imaginação, como a nossa inteligência, os nossos afectos, as nossas  relações (...) Jesus morreu com as pessoas todas no seu coração, com os seus próprios inimigos, é isso que temos que viver e morrer: para uma vida nova, para dizer que o mundo não tem de ser de amigos e inimigos...

(o programa pode ser escutado aqui)

 

Na Grande Entrevista da RTPI, dia 24 de Setembro, com Vítor Gonçalves, frei Bento falou muito dos seus hábitos pessoais de leitura e escrita, bem como da situação económica do país, distinguindo entre a pobreza como opção, que “dá uma liberdade enorme”, e a “pobreza imposta” que torna muitas pessoas em “miseráveis” e falando sobre o livro da sua vida – a Summa Theologica, de São Tomás de Aquino: “Ele escreveu aquilo porque achava que havia uma variedade enorme de questões disputadas; e, em vez de declarações, começa sempre por interrogações.”

As entrevistas antes referidas da Sábado e da Visão passaram entretanto a estar disponíveis na internet. Na Sábado, Rita Garcia perguntava a frei Bento: Tem esperança de que este Papa torne Jesus um apetite? “Já fez isso. Não impõe nada, mas compreende as pessoas. A única coisa de que gostamos é de ser amados. Quem acredita em Deus, sabe que está no coração d’Ele e ninguém o arranca de lá. É isso que os cristãos têm de testemunhar.”

(para ler a entrevista na íntegra é necessário ir clicando sucessivamente nas diferentes fotos)

 

Na Visão, Sara Belo Luís perguntava:

- Essa necessidade de ver o mundo a partir dos que mais precisam é cada vez mais atual?

 

- Sempre foi. O poder sempre foi dos ricos, dos poderosos, dos impérios. Vale-nos a cintilação daqueles que, tanto no paganismo como no cristianismo, dizem "mas". Como quando, na descoberta do Mundo Novo, dos chamados países da América Latina, uma pequena comunidade de dominicanos escreveu um texto a denunciar o que estava a acontecer aos índios, em nome da exploração do ouro. Estes é que são os momentos evangélicos. Aqui é que reconhecemos que somos irmãos e filhos de Deus. Organizem a economia como quiserem, organizem as finanças como quiserem, organizem os hospitais como quiserem, mas não o façam segundo o princípio da exclusão.

 

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Frei Bento Domingues: "Que mundo é este que queremos fazer?"

O Frade dominicano conta em entrevista à VISÃO que nunca se cansa de pregar:?"A única coisa que me importa é a insurreição"

Sara Belo Luís (Entrevista publicada na VISÃO 1124, de 18 de setembro)
16:34 Sexta feira, 26 de Setembro de 2014 |
Se a qualidade de uma entrevista se medisse pelas perguntas do jornalista, esta seria uma entrevista falhada. Da meia dúzia de questões que a VISÃO levava preparadas, duas, três no máximo, foram concretizadas. Frei Bento Domingues, frade dominicano, heterodoxo, espírito livre, 80 anos completados em agosto último, fala sobre tudo e interpela-se a si próprio. No momento em que a Temas e Debates publica mais um volume das suas crónicas dominicais no jornal Público (A Insurreição de Jesus, 512 págs., €19,90), a obra de frei Bento Domingues também é debatida na Fundação Gulbenkian (ver Homenagem na Gulbenkian). E ele, apesar de não ser vaidoso, vai lá estar. Não é de clausuras.
Sabe quem são os seus leitores?
Tenho uma ideia porque, de vez em quando, vou tendo alguns ecos. Há uma franja de gente que se diz católica não praticante, que se sente afastada, pessoas que sempre viram o fenómeno religioso de uma forma crítica, pessoas que, antes do 25 de Abril, trabalharam comigo na resistência ao antigo regime e, depois, também, pessoas que não têm nada a ver com a Igreja e que são até bastante anticlericais.
Os anticlericais são os desagradáveis...
Não, não são nada desagradáveis. E têm muitas razões para serem anticlericais.
Acha que os seus textos alguma vez contribuíram para a conversão de alguém?
A conversão é, na minha maneira de ver, o fruto da graça de Deus e do facto de as pessoas se deixarem abalar por essa graça.
E alguma vez ajudou alguém a reaproximar-se da fé?
Muita gente me diz isso. Mas essa questão prende-se com a história do século XX português. Durante a I República, houve disputas entre franciscanos e jesuítas, por causa da liberdade de voto no Partido Nacionalista, e instituiu-se, pela primeira vez em Portugal, uma espécie de laicidade lúcida que divide a prática social e política da sua expressão religiosa.
Que o Estado Novo tratou de contrariar.
Isso é muito importante para entender as dificuldades do catolicismo hoje. Os católicos, os próprios monárquicos católicos e os bispos achavam que Salazar era produto da providência divina. E mesmo que não estivessem totalmente de acordo, aderiram ao regime que deu espaço de liberdade à Igreja. Entretanto, todas as vozes católicas dissonantes (como a do padre Joaquim Alves Ferreira, que publicou o livro A Largueza do Reino de Deus, que, no fundo, era sobre a estreiteza da mentalidade católica oficial, ou a do padre Abel Varzim, responsável pela divulgação do pensamento católico no mundo operário) foram sendo afastadas. Nas eleições de 1958, perante o apoio de alguns católicos a Humberto Delgado e a célebre carta de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, o episcopado preferiu continuar com Salazar.
E o que é que, em seu entender, isso ajuda a explicar?
Por um lado, há uma confusão entre o apoio a Salazar e o ser católico. Por outro lado, quando veio o 25 de Abril e os católicos, que tinham resistido ao regime, começaram a entrar na política, comete-se um erro: os católicos têm a dimensão da intervenção e a dimensão espiritual e teológica. Não defendo o partido confessional, sou absolutamente contra, militei, durante muitos anos, contra isso. Mas não faz sentido que os católicos que entraram na política não tenham tido uma instância que alimentasse a sua fé. A política comeu tudo. Além disso, também houve problemas internos, na Igreja, que têm, por exemplo, a ver com o facto de o Papa Paulo VI, na encíclica Humanae Vitae, ter feito referência aos métodos contracetivos.
Isso afastou as pessoas?
Para muitos jovens, para muitos casais, foi um verdadeiro balde de água fria. A partir daí, muitos católicos passaram a viver constrangidos, em duplo registo, outros afastaram-se. É como este problema de agora - aos divorciados que voltaram a casar-se é-lhes negado o acesso à eucaristia de uma forma, julgo, muito bárbara...
Não podem comungar...
A simbólica da missa é a simbólica da refeição. E, no fundo, estamos a dizer-lhes: vêm à refeição, mas não comem. O que acontece é que, depois, faz-se o catolicismo em autogestão ou à la carte, há um assunto com o qual estou de acordo, alinho, mas há outro assunto com o qual estou em desacordo, não alinho. Neste momento, assistimos a um alívio hesitante, pois as atitudes do atual Papa dão-nos outra respiração. O seu texto A Alegria do Evangelho grita esperança.
O mundo estava a precisar de um Papa popular?
Não é só de um Papa popular, é de alguém que veja o mundo a partir dos excluídos e, sobretudo, que não tenha uma atitude de exclusão. Além disso, o Papa Francisco também não está zangado com o mundo, respira alegria, tem vontade de unir as pessoas. ?E, mesmo assim, ainda é capaz de falar, como ainda agora falou, sobre a necessidade de fazer frente a esta onda de violência em nome de Deus, essas jihads todas.
Essa necessidade de ver o mundo a partir dos que mais precisam é cada vez mais atual?
Sempre foi. O poder sempre foi dos ricos, dos poderosos, dos impérios. Vale-nos a cintilação daqueles que, tanto no paganismo como no cristianismo, dizem "mas". Como quando, na descoberta do Mundo Novo, dos chamados países da América Latina, uma pequena comunidade de dominicanos escreveu um texto a denunciar o que estava a acontecer aos índios, em nome da exploração do ouro. Estes é que são os momentos evangélicos. Aqui é que reconhecemos que somos irmãos e filhos de Deus. Organizem a economia como quiserem, organizem as finanças como quiserem, organizem os hospitais como quiserem, mas não o façam segundo o princípio da exclusão.
Em alguns momentos da história, a Igreja Católica também excluiu...
Claro que sim. Dou um exemplo muito simples: entra-se numa igreja, numa missa de domingo e alguém fala para aquelas pessoas que não podem abrir a boca. O Papa Francisco já disse aos outros bispos e aos padres para não aborrecerem as pessoas, que mesmo na ordem moral há uma hierarquia de verdades, há umas coisas mais importantes que outras... E há uma certa forma de fazer que leva a que, depois, as pessoas digam "isto não resolve nada". As pessoas vão à eucaristia para receberem iluminação para a semana, para se fortalecerem, para se encontrarem umas com as outras, para ?participarem nesta coisa de ir mudando a nossa vida... Apesar de ser minhoto, eu gosto muito da filosofia alentejana...
Gosta de "ir sendo", como costuma dizer.
É isso, até porque esta coisa de realizar a nossa vida é um processo complicado. ?O "normalzinho" é um bocado cinzento e, depois, há o sofrimento e todo esse mundo de violência com o qual é muito difícil lidarmos. Gosto muito de uma devoção que existe perto de Lamego, a Nossa Senhora do Alívio, pois penso que estamos no mundo para aliviar a dor dos outros. Além disso, também compete à Igreja ajudar as pessoas a regozijarem-se com a alegria, a reconhecerem aquilo em que se sentem felizes. E não andar a culpabilizá-las por razões de ordem sexual, por trapalhadas...
A não ser moralista?
Isso. E é a partir desta dupla atitude que a Igreja deve evangelizar. Formar os políticos, os financeiros e os investigadores de maneira a que estes se perguntem: estou a trabalhar na banca, mas, então, para que é que serve a banca? Estou a trabalhar numa empresa, quem é que serve esta empresa? As pessoas não só não se interrogam como são deterministas. Ora, a mensagem do Evangelho é antifatal, não temos que nos resignar com o mundo em que vivemos. E que mundo é este que queremos fazer? Nas minhas crónicas, a única coisa que me importa é esta insurreição: este mundo está mal construído e podia ser de outra maneira.
Nunca se cansa de pregar?
Não. Primeiro, nunca prego sozinho. E na celebração, ao domingo, é a miudagem que ocupa o altar.
E quando sente indiferença na audiência, não lhe apetece, digamos, ir pregar para outra freguesia?
Descobri o sentido da minha vida numa pregação de um padre brasileiro, amigo de meu tio. Eu vivia na religião do terror e, de repente, por causa dele, encontrei alegria na relação com Deus. Quando ele me perguntou o que é que eu queria ser quando fosse grande, a única resposta que veio de dentro foi: "Quero ser como você." Era um miúdo e, até hoje, acho que essa foi a coisa mais verdadeira que disse em toda a minha vida.

 


Refletir o sagrado e descobrir o profano

No Jornal de Letras, Leonor Xavier publica um texto sobre Bento Domingues, com o título Refletir o sagrado e descobrir o profano: 

 

Frei Bento Domingues, O.P. é frade dominicano na ordem dos pregadores. Nascido em Terras do Bouro, no mais remoto Portugal, desde criança foi pastor e às ovelhas leu trechos em latim de um livro que teve, emprestado. “E elas gostavam”, costuma contar. Na serra ouvia o eco da sua voz e seguia os ritmos da natureza, pela intuição dos cinco sentidos que até hoje, tem abertos e alerta. Muito cedo descobriu a sua vocação, e na certeza da revelação e da fé se formou e ordenou dominicano, fazendo da proclamação do Evangelho, na liberdade de expressão e na caritas/amor absoluto a obra da sua vida. Agora que festejamos os seus 80 anos  em homenagem e lançamento de dois volumes de antologia das mais de mil crónicas publicadas no Público, é também celebrada a sua tão singular figura. Homem do campo e hoje andarilho na cidade, Frei Bento tem a malícia do dia a dia, a inteligência na adaptação às circunstância, o humor, o sentido crítico, a compaixão, a tolerância. Ele conhece os caminhos e os atalhos, usa os transportes públicos, evolui com facilidade pelos mais variados ambientes, de olhar sempre vivo e atento. Falando, escrevendo, investigando, debatendo, comunicando, Frei Bento Domingues não se esgota nunca. Disponível para os sacramentos do nascimento, do crescimento e da morte, celebrando a Eucaristia, pregando sobre as parábolas ou os profetas, em conversa casual de amigos ou circunstâncias gerais, ele discute as questões da atualidade, convive com crentes e não crentes e acredita na liberdade da democracia e no direito à opinião. É teólogo estudioso do Antigo e do Novo Testamento, de textos apócrifos, conhecedor das várias religiões e das doutrinas dos doutores da Igreja, das vivências dos grandes místicos. É leitor de pensadores e filósofos, de autores universais e contemporâneos, de poesia. Acompanhar os textos de Frei Bento Domingues é refletir sobre o sagrado e descobrir o profano. É entender que Jesus Cristo é centro absoluto da presença de Deus no seu testemunho, na sua obra, na sua vida. É descobrir a sua devoção a Nossa Senhora. Na missa de domingo de Cristo Rei, em 2010, anotei um fragmento da homilia de Frei Bento, quando citou Teillard de Chardin: “A criação está sempre a acontecer, toda a história está sempre a ser.”- para acrescentar que “Na nossa ação de construção do mundo há um clandestino, que é Jesus.” Penso que assim tudo se explica.

 




O goleador de Deus


ENTREVISTA

O goleador de Deus

LÍDIA JORGE e DANIEL ROCHA

 Desafiámos a escritora Lídia Jorge para uma entrevista com alguém que conheceu nos seus tempos de estudante universitária e a quem tem seguido, sobretudo pela escrita: o dominicano Frei Bento Domingues. Falou-se da essência do ser, do Bem e do Mal, da PIDE e de literatura, do riso e da alegria. O resultado daria para cinco entrevistas.

 


 

Fazer esta entrevista foi uma experiência única. Nunca fiz uma na minha vida, e provavelmente não voltarei a fazer outra. Porque aceitei o convite do PÚBLICO? Porque a proposta envolvia o Frei Bento Domingues, pessoa de quem fui próxima quando era estudante da Faculdade de Letras de Lisboa e ele frequentava a residência Domus Nostra, onde eu vivia. Depois, a ligação que fui mantendo com ele foi de papel. Através de livros e artigos. Ultimamente, através das crónicas agora reunidas nos dois volumes que motivaram a homenagem que lhe foi prestada na Gulbenkian. Estive lá entre os seus amigos. Pensei, então, que reencontrar-me com este homem, para uma fala demorada, seria uma forma de celebrar o correr do tempo. E assim foi.

 

Quando, no domingo passado, surgiu ao alto das escadas do Convento dos Dominicanos, em Lisboa, de braços abertos pelo atraso, foi como se não houvesse tempo. É o mesmo rapaz que na altura tinha andado por Salamanca e Roma, tinha sido perseguido e preso pela PIDE, era uma das cabeças mais arejadas da Igreja portuguesa, então submersa em beatério, e queria mudar o mundo. O mesmo rapaz que veio das montanhas com o mistério do eco na cabeça, lia Sartre e São Tomás de Aquino.

 

Sentámo-nos nos bancos da sua igreja, que elogiou como uma obra de talento. Mostrou os buraquinhos daquelas paredes altas que servem para abrir o som à música. Disse que a Arte ajuda a deslocarmo-nos no meio do enigma, a encontramos carreiros no escuro, como as formigas. Ele também falou das desgraças que assolam o mundo contemporâneo. Mas, como a sua fala daria para fazer cinco entrevistas, eu escolhi do que disse o que se aproxima dos fundamentos do ser. Como na discussão que tivemos quando nos anos 60 nos encontrámos pela primeira vez e o tema era o Bem e o Mal.

 

No passado dia 19 de Setembro, o Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian encheu-se de gente até aos átrios para discutir as suas crónicas e prestar-lhe uma homenagem. A discussão, essa, o senhor aceitou e até tirou notas. Mas em relação à homenagem, o Frei Bento foi recusando. Um seu amigo trouxe-lhe da Madeira um lindo ramo de flores. Quando lhas puseram sobre os joelhos, não descansou enquanto não se viu livre delas. O seu ar de consternação quando era aplaudido por tantos amigos e leitores tornava-se visível. O senhor lida mal com o reconhecimento?

 

Pois reconhecimento de quê? Neste caso, o que interessa é que existem mais estes dois livros que a editora Círculo de Leitores fez o favor de publicar. Mas a sua história vem de longe. Tem que ver com a irmã Julieta, que eu conheço há muito tempo, e com o António Marujo, que me convidou para escrever para o PÚBLICO e foi acompanhando a publicação das crónicas. Eles é que se propuseram organizar estes livros. Eu era incapaz de reler uma crónica minha, quanto mais duas mil. Uma trabalheira. A haver alguma homenagem, deveria ser para eles.

 

Mas então o senhor não tem amor-próprio?

 

O que é isso, amor-próprio?

 

Gostar de fazer boa figura, ter honra no que se faz.

 

Se é isso, sim. Se me pedem um texto, uma leitura, uma apresentação, eu não gosto de fazer má figura, dou tudo por tudo para fazer bem feito. Gosto de corresponder ao que me pedem. Mas, de resto, eu sou apenas um servo inútil dos Evangelhos do Senhor.

 

Compreendo. O Frei Bento parece-se com um futebolista que só pensa nos golos. Faz tudo para meter a bola na baliza e, quando consegue e as bancadas se levantam para aplaudir, em vez de dar a volta ao estádio e oferecer aos adeptos a camisa suada, o senhor abala a correr para o balneário e começa a preparar as pernas para a próxima jogada. Aceita?

 

Sim, aceito. É isso mesmo.

 

Já viu que até poderíamos construir uma parábola com esta história? E dar-lhe um título, como por exemplo, “Parábola do Goleador de Deus”? Aceita?

 

Ora ainda bem que usas parábolas. Hoje foi o dia de se ler na Igreja a Parábola dos Trabalhadores da Vinha. Aquela que diz que os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos. O pessoal da Intersindical, se ouvisse, deveria ficar muito furioso. Aquilo não parece justo. Os que chegaram ao fim do dia ao trabalho receberam tanto quanto aqueles que foram contratados pela manhã, e ainda por cima receberam em primeiro lugar. Uma injustiça. Só que estamos a falar de um outro plano. Aquilo quer dizer que não somos negociantes com Deus e que Ele gosta de nós. E essa é a essência do cristianismo.

 

Regressando à sua relutância pelas homenagens, a que chama “missas de corpo presente”. Isso quer dizer que o senhor lida mal com o reconhecimento público dos seus leitores. Já parece que lida melhor com a indiferença e a perseguição.

 

A questão é um pouco diferente. Durante a ditadura, eu nunca quis provocar alguém só por provocar. Eu só achava que era preciso acordar as pessoas. Por isso só houve perseguição quando me impediram de fazer o que eu achava que estava certo fazer. Mas não me posso queixar. Tive sempre muita sorte. Quando me mandaram para Roma, porque achavam que isto aqui estava a ficar demasiado perigoso para mim, deu-se o caso de estar a decorrer o Concílio Vaticano II. E aqui o que tinha acontecido é que os jovens da Juventude do Cristo Rei tinham organizado no Porto uma exposição que interpelava as consciências, O Mundo Interroga o Concílio, e a extrema-direita achou que eu era o inspirador. Chamaram àquilo um pavilhão soviético. Agora dá-me vontade de rir. Pois a PIDE veio, enganou-se e prendeu aqueles que estavam lá para impedir que a exposição abrisse. Mas o mundo estava a mover-se. Em 63, surgiu a encíclica Pax in Terris. João XXIII estava a fazer coisas boas.

 

Era o tempo dos padres operários. Liam-se livros como Os Santos vão para o Inferno, do Gilbert Cesbron, e outros. Entre nós, também havia mudanças.

 

Sim, havia. Quando entrei nos Dominicanos em 53, decorria a grande condenação em França dos padres operários. Três provinciais dominicanos foram demitidos. Era uma experiência muito forte. Um embate muito grande. O padres operários vinham dar um testemunho que muitos não entendiam.

 

E já corriam os ventos da Teologia da Libertação.

 

Isso foi mais tarde. Os bispos peruanos e brasileiros levaram companheiros ao Concílio para que depois, de regresso, fizessem trabalho nas dioceses. Entre outros, distinguiam-se as vozes do padre Gutierrez e de Leonardo Boff. A ideia era trabalhar a partir de comunidades de base, em vez das paróquias e dos grandes grupos. Ora eles pensaram tratar dos problemas da fé e da transformação social a partir dos pequenos grupos.

 

Entretanto, passou muito tempo. Em face da sociedade em geral, tudo isso deu algum resultado? O mundo tornou-se melhor do que era?

 

Acho que melhorou. Repara que depois de duas guerras mundiais a ideia do progresso linear entrou em colapso. Nos finais de 1945, as pessoas estavam arrasadas, pensavam que o regresso à violência seria uma fatalidade, seria cíclica, e as sociedades humanas nunca teriam cura. Mas depois veio o Presidente norte-americano John Kennedy com a ideia de que o mundo poderia ser diferente e o Papa João XXIII que deu esperança às pessoas. Espalhou a ideia de que a Igreja poderia ser diferente, a sociedade diferente e o mundo diferente. Era o renascimento da esperança. Porque há momentos de eclosão e de retracção. Eu creio que daí em diante se deram grandes passos. Mas é preciso tratar dos pequenos passos e isso é que é difícil. Entretanto, muitos desertaram para o outro lado, para posições opostas, mas ficaram sementes por toda a parte.

 

Às vezes não parece.

 

Não sou um determinista. Se fosse uma pessoa das ciências duras, talvez pudesse sê-lo, mas não, eu sou um homem das ciências moles, das mais moles que há, e gosto disso. As ciências moles é que entendem os homens

 

Parece, parece. Nunca penso que nada é sem remédio. Numa certa entrevista, Saramago disse que este mundo não tem conserto. Pelo contrário, tem conserto, só que os remédios não são em bloco, são muitos, vários, pequenos, lentos, fazem-se dia a dia. Não sou um determinista. Se fosse uma pessoa das ciências duras, talvez pudesse sê-lo, mas não, eu sou um homem das ciências moles, das mais moles que há, e gosto disso. As ciências moles é que entendem os homens. Não me rendo. O determinismo é uma rendição.

 

Voltemos para trás. Há muitos anos, na residência universitária Domus Nostra, algumas das estudantes eram consideradas rebeldes. A directora tratava-nos como um bando de hereges. Um dia, arranjou-nos uma camioneta, meteu-nos lá dentro e disse que íamos ao encontro de alguém que nos iria pôr na ordem. Fomos até uma praia onde havia um casarão e esperámos pelo disciplinador. Nisto, surgiu-nos sobre um pequeno estrado, um tipo que disse — “Antes eu chamava-me Basílio e agora sou Bento e tenho trintaianos.” Nós desatámos a rir. Ríamos sem parar. O Basílio/Bento começou a rir também. Não parávamos com aquilo. Ríamo-nos porque, afinal, o disciplinador parecia-nos uma anedota, não metia respeito nenhum. Ele tinha trintaianos, nós 18. Até que Basílio/Bento disse, com os olhos lacrimejantes de tanto riso — “Ai, ai! Vamos lá a isto!” Então o senhor começou a falar, levou-nos até à praia, era Inverno. Tem alguma ideia disto?

 

Tenho ideia da praia. Também me lembro da directora, a Senhora Dona Eliete e da Domus Nostra onde fui depois, muitas vezes.

 

Mas o que mais nos impressionou não foi a doutrina, para que não estávamos viradas, e sim o facto de saber tanto. Saía-lhe pela boca uma biblioteca. Onde tinha aprendido? Nessa altura, já tinha lido os Ensaios de Montaigne? Shakespeare? Kant, Marx? Dom Quixote? O que se tinha passado consigo?

 

Foi assim. Eu tinha entrado para Fátima em 53, como noviço dominicano, e depois seguiu-se o instituto Sedes Sapientiae. Ali os professores eram todos estrangeiros. Acho que os responsáveis queriam restaurar a província portuguesa. Havia franceses, canadianos, belgas. Entre eles, havia um professor de Filosofia, aí de uns 50 anos, chamado Paul Denis, recambiado do Congo Belga, e que nos disse: “Eu não gosto nada de descobrir o rio a partir da nascente, mas sim a partir da foz, o lugar ele onde desagua, Vamos começar a partir da Filosofia Moderna e depois vamos recuando.” Então começámos pelo existencialismo, Sartre, Gabriel Marcel, Camus e caminhámos para Kierkegaard, Hegel, Marx. Para trás, até Aristóteles. E como a biblioteca era muito escassa, ele encomendou à sua própria família, que vivia na Bélgica, os livros dos autores que estudávamos. Uma riqueza. Tudo isso andava a boiar na minha cabeça. Era a História vista a partir da foz. E depois, viria a descobrir a Heterodoxia do Eduardo Lourenço.

 

No entanto, o autor que está sempre a mencionar é São Tomás de Aquino. Não é um teólogo da argumentação especulativa, um escolástico puro? Porque tanta gente lhe chama o pai da modernidade? Quando passei por lá, pareceu-me insuportável.

 

É moderno sim, porque ele não ensina como são as coisas, mas como se discutem as coisas. É preciso ver que não há só os textos de São Tomás, a Suma Teológica e todos aqueles comentários, há também as escolas de interpretação de São Tomás. E tinha havido, havia pouco tempo, precisamente, uma revolução na interpretação da sua obra. Esse espírito vivia-se muito em Salamanca onde também acabei por estar. Lá mesmo havia um espírito de discussão intensa. Porque havia a escola dos escolásticos, e a escola afectiva, e uma outra, a escola democrática. Habituámo-nos ao confronto de ideais. Não havia raciocínios fechados. Depois, em Roma, havia um professor espanhol que dava aulas sobre a vontade de Deus. Nós troçávamos imenso. Íamos para o pátio e perguntávamos muito alto — “Padre! Que tiempo hará mañana, segundo la voluntad de Diós?” Sempre gostei de discutir. Já através da literatura entra-se num outro mundo, e encanta-me.

 

Porque o encanta a literatura? Não parece encantar tanta gente assim.

 

Porque através dela se entra numa zona de nós que é reconhecida e ao mesmo tempo posta em causa. A literatura é um modo de pôr em causa. O Eduardo Lourenço diz que o comentário do poema só pode ser o poema. Ele, quando comenta, não explica. Ele faz um outro poema ao lado do poema. Só assim se entende a literatura, a pintura, ou a música, vivendo por dentro, pondo o nosso mundo em questão. A arte serve para isso.

 

Mas nós lá, naquela praia, também falámos de outros assuntos. Lisboa estava então rodeada por miseráveis bairros de lata. Conhecíamo-los porque os visitávamos. Pusemos-lhe a questão. Tanto sofrimento, tanta gente condenada. Onde está Deus? Silencioso e imóvel? Só no conto do Suave Milagre do Eça o rabi abria a porta ao desgraçado e dizia: “Aqui me tendes!”

 

Não, não está imóvel nem em silêncio. É uma questão de conversarmos com Deus. Falarmos com ele.

 

Leio as suas crónicas e até agora o senhor não me convenceu de que há um sentido para os contrastes consentidos neste mundo.

 

Estamos a falar do Bem e do Mal. A oração serve para estarmos atentos ao mistério da vida. Eu fui percebendo isto paulatinamente. Segundo São Tomás de Aquino, as coisas na Natureza, mesmo com alguns desvios, sempre batem certo. No ser humano, normalmente muita coisa bate errada, porque os nossos apetites vão em todas as direcções, não têm unidade para o Bem. Ora se gastássemos o tempo empregue nas coisas que fazem mal nas coisas que fazem bem, tudo seria diferente. Isto é, o Mal e o Bem nunca são da ordem da transcendência e sim da imanência.

 

Mas isso não corresponde apenas a uma estratégia de explicação do absurdo?

 

As pessoas dizem que a fé é algo de sobrenatural porque não sabem como lhes acontece. Mas eu prefiro entrar pela porta da liberdade

 

Exemplifico. Na minha aldeia, havia dois gaseados, sobreviventes da Primeira Guerra Mundial, que iam aquecer-se na lareira da casa da minha avó. Contavam aquelas coisas horríveis. Eu escutava-os e só pensava se não teria havido maneira de evitar aquela tragédia. Exemplifico mais. João Paulo I teve um pontificado de apenas um mês. Mas antes, quando era bispo de Veneza, resolveu escrever cartas a personalidades conhecidas que publicava em certa revista. Um dia resolveu escrever uma carta a Petrarca, lembrando as figuras do sábio e do louco. O sábio dizia que as guerras não poderiam ser eternas porque sempre terminavam por armistícios. O louco perguntava por que razão não faziam o armistício antes.

 

Quer dizer, então, que estamos a remediar a obra imperfeita de Deus.

 

O importante é que Deus nos fez criadores. Estamos em liberdade e podemos escolher o caminho do Bem ou do Mal. Se aprendermos a ter juízo, escolheremos o Bem, o que faz bem a nós mesmos e aos nossos irmãos. Essa é a nossa grandeza e estamos a caminho do mundo que é preciso fazer. Só assim se respeita o ensinamento dos Evangelhos.

 

Nesse domínio, o da transcendência, parece que só se chega lá por fé. Tenho uma amiga que diz que a fé é fascista. Escolhe uns e não outros, e não se vê porquê.

 

Compreendo, mas vê bem. No fundo, todos somos crentes. A fé é um grau de confiança em alguma coisa que nos transcende. Uma crença em alguma coisa que nos excede e que nós acreditamos que nos faz bem. As pessoas dizem que a fé é algo de sobrenatural porque não sabem como lhes acontece. Mas eu prefiro entrar pela porta da liberdade. Os medievais diziam, e São Tomás acolheu, que “livre é aquele que é causa de si mesmo, que é senhor dos seus actos”. De contrário, a humanidade seria feita de servos. Se pensarmos assim, a fé, esse sentido de confiança numa instância que nos excede, que uns dizem ter e outros não, ganha um outro sentido. Lida mais com a liberdade do que com a nossa dependência. Já não existe a escolha deliberada, vinda de algum outro lugar que não é o humano, essa a que chamas fascista.

 

Há coisas que não se entendem. Por exemplo, nas missas, as pessoas clamam, Senhor dizei uma só palavra e a minha alma será salva. Acho triste, pessoas cheias de medo de perderem a sua alma. Se ao menos dissessem, Senhor salva as nossas almas.

 

Sim, mas na consagração pede-se pela redenção de todos. De facto, há pessoas que pedem, por exemplo, para só rezarmos pelo seu familiar, dizem que pedir por todos é uma modernice. Mas não pode ser. Deus é a grande memória da História humana e nela estamos todos inscritos, um a um. Temos de nos convencer de que todos somos amados e não sabemos quem somos. Temos de nos inscrever num colectivo que abarca a humanidade inteira, a que houve e a que há-de vir. Somos muitos? Para Deus, certamente, ainda somos poucos. As pessoas pedem por si mesmas porque talvez tenham medo de não ser únicas. Há uma afectividade que as pessoas gostam de manter. Mas elas são únicas na totalidade de todos. Na carta aos romanos, São Paulo, em vez de usar os termos da liturgia judaica, que evita encarar Deus, inverte as coisas, chamando-lhe, em aramaico, Aba, isto é, paizinho, papá. Uma palavra de ternura.

 

E ainda há uma outra questão. Cristo, mesmo para os que não acreditam na dimensão divina, resulta numa metáfora fundadora de uma grandeza imensa. No entanto, parece que sabia que estaria salvo na eternidade. Imagine uma mulher, ou um homem, que se oferecessem para ser condenados para sempre, conforme a mitologia cristã, em troca de todos serem salvos. Seria um Super-Cristo. Estou a cometer uma heresia?

 

Não, Santa Teresa de Ávila já disse — “Amaria mesmo que fosse para o Inferno. Amo-te porque te amo.” Jesus também não está acabado. Ele também foi crescendo. Não começou como terminou. Ele foi humano. É verdade que inventaram aqueles evangelhos da infância, fazendo com que desde sempre tivesse sido prodigioso, mas não precisava. Ele próprio vai descobrindo a vida enquanto prega. Como a história da mulher cananeia a quem ele nega a cura, dizendo que não se dá pão aos cachorrinhos. E ela disse que os cachorrinhos também comem as migalhas. Jesus então repensa, compreende a dimensão do pedido daquela mulher. É Jesus a apender. Jesus vive com espanto.

 

Curioso, Jesus espanta-se mas nunca ri. O senhor, que é o homem do riso e da alegria, não acha estranho que Jesus nunca ria?

 

Devia rir mais. Mas na verdade Jesus faz mais do que rir, faz humor. E o humor é a matriz de todos os tipos de riso. Eu entendo que os Evangelhos são feitos para alguma coisa mais do que o riso, são feitos para a alegria.

 

Volto àqueles dias na praia. Andámos de um lado para o outro, a olhar as ondas que o senhor gostava de contemplar. Mas há dias, na Gulbenkian, disse que apesar de continuar a sentir-se maravilhado diante do mar, por vezes sente raiva por as ondas irem e virem, e o ritmo ser sempre igual. Vê nelas a imagem da sociedade que desenrola, enrola e nunca mais avança. Em face da sua concepção de mundo progressivo, é então uma irritação passageira.

 

Sim, às vezes perco a paciência, porque as coisas nunca mais dão a volta.

 

E a Igreja portuguesa deu a volta? Há quem considere que é muito mais aberta e progressista do que a Igreja de Espanha, por exemplo.

 

Jesus faz mais do que rir, faz humor. E o humor é a matriz de todos os tipos de riso

 

À partida também partilho dessa mesma opinião, ainda que não conheça tudo. Mas a minha ideia é de que a Igreja portuguesa não é uniforme. A nossa religiosidade é apenas mediana, e sobretudo há vários restos por aí. Ao longo dos anos 40, 50, a Acção Católica enrolou-se com o poder, achava que Salazar era uma graça divina. Isso foi muito triste. Ao mesmo tempo, foram aparecendo novos sinais, como foi o caso do bispo do Porto. E começou a haver um catolicismo iniciático, a JEC, a JUC, a JOC e outros grupos informes. E depois, com o declínio da Acção Católica, surgiram os cursos de cristandade que inauguraram uma espécie de catolicismo fervorino. Muito mais afectivo, quase imediatista, sem passar pelo raciocínio. Assim, o catolicismo português é um catolicismo médio, não tem reflexão teológica, só há formação teológica universitária em Lisboa, Porto e Braga, e há os seminários. De forma que existe uma espécie de eclipse do pensamento. Muitos acham que o pensamento atrasa a expressão da fé, que não permite a espontaneidade do coração.

 

Falou em eclipse do pensamento.

 

Sim, mas como não somos de grandes rupturas, temos de encontrar um caminho que aproxime o lado afectivo de um outro nível, o reflexivo. Penso na introdução da dimensão estética das celebrações. Entendo que à dimensão da beleza de Jesus Cristo deve corresponder um testemunho de beleza da nossa parte. Criar uma harmonia entre os textos sagrados, a música, a poesia, o espaço envolvente como espaço de Arte. Essa poderá ser a forma de fazer uma síntese.

 

E o Frei Bento pensa que dentro da Igreja há respeito de umas tendências pelas outras? Não ignora, certamente, que muita gente acha, por exemplo, que o senhor é o chefe de uma seita.

 

Isso faz-me rir, porque eu nunca tive um grupo sequer, quanto mais uma seita. Quanto estive na União Soviética, depois do 25 de Abril, ficaram todos muito aborrecidos porque eu apresentei-me como anarquista colaborante. Mas é isso mesmo o que eu sou. Estamos num mundo democrático e num catolicismo plural, e eu apareço quando precisam de mim, não organizo nada. Deus me livre. Repare que em Portugal fala-se muito dos católicos não praticantes, como sendo o grande número, vai-se ver e dizem que o são só porque não vão à missa. Não acho tal. Há certas missas a que eu não iria. Já me aconteceu ir a uma igreja e sair pela porta fora. Uma vez um bispo disse — “Leio as suas crónicas mas nem sempre estou de acordo com o que escreve.” Eu respondi: “Não se preocupe, porque com o que o senhor diz eu nunca estou.” Tenho medo dos grupos arregimentados. Há logo quem queira obediências. Mas acho que não há animosidade entre as pessoas.

 

E o senhor acha que Fátima foi um bem para Portugal?

 

Acho que foi bom, num contexto de guerra, ter surgido a imagem de uma senhora que diz que é o Coração de Maria. Dá que pensar, é bonito. O cardeal Cerejeira disse que Fátima impôs-se, não foi a Igreja que quis. Também é bonito. É bonita a procissão das velas, é bonita a procissão do adeus. Mas eu já escrevi sobre isso, aquela procissão, com os lenços a acenar, é a imagem de um povo emigrante a despedir-se. Fátima é um cais do adeus, como se houvesse uma despedida de alguém, que afinal não parte. Transformou-se num lugar mágico. Mas cada um tem e vive a Fátima que quer.

 

Para o Papa João Paulo II, parece que foi um lugar de agradecimento por estar vivo. Não é estranho que numa religião cujo fundador foi pendurado de uma cruz até à morte, o seu representante passe um dia inteiro de joelhos agradecido por ter sido salvo de um atentado?

 

Não é só estranho, é mais do que isso. Era um polaco com uma devoção estranha. Uma coisa muito primitiva. E depois a história do segredo, que afinal não havia.

 

Acho que mandou colocar a bala que lhe era dirigida na cabeça da imagem da Nossa Senhora.

 

Se fosse só isso. A religião dele não ia lá muito longe. Idolatria. Vê bem, o que é um ídolo? É uma falsa ciência, consiste em expressar isto por aquilo. As pessoas fixam-se em objectos. Fátima bem que poderia ser um lugar de fé mais livre, mas não. E depois, em cada igreja do país existe uma imagem da Senhora de Fátima. Em todo o lugar, encontramos lá aquelas imagens muito feiinhas. É como se Fátima tivesse comido o catolicismo português. Esses são os aspectos chatos.

 

Quer dizer que o senhor ainda não acredita que o Papa Francisco seja uma realidade. Toda a vida sonhou com ele, e afinal ele existia lá no fim do mundo.

 

Mas o meu primeiro entusiasmo foi com João XXIII. Ele tinha estado em Portugal, tinham-lhe dado um texto sobre o Sagrado Coração de Maria, só que se tinham esquecido de colocar a cedilha no ç, e ele passou o dia a ler coracau de Maria, coracau de Maria. Não tinha nenhuma esperança nele. Quando foi eleito Papa, julguei que isto nunca mais ia arrancar. Afinal, ele viria a ser a mudança. E agora, este Papa, que veio trazer a alegria. Evangelli Gaudium é o texto de um pastor que tem os olhos postos no seu povo. Não é um bonzinho, nem um abstracto, é um Papa que olha para os desfavorecidos, os perdidos neste mundo, com realismo e sem medo de concretizar.

 

Conforme a Doutrina Social da Igreja?

 

Não, a Doutrina Social da Igreja diz que o cristão não tem que se meter no concreto, só aponta os princípios. Só que ele experimentou todos aqueles colapsos na Argentina, conheceu a bancarrota, os governos sucessivos, os horrores da ditadura, e agora olha para o mundo e vê que são só números e artimanhas financeiras e sabe do que fala. Esta economia mata. Ele atreve-se a dizer o que os financeiros sabem mas não querem declarar. Atreve-se, tem uma imensa força convocatória.

 

Também o senhor não tem medo de descer ao concreto. Chega mesmo a resumir livros e documentos onde encontra soluções que poderiam ser aplicadas. Os livros de Boaventura de Sousa Santos, por exemplo.

 

Não é para canonizar autores, é para dizer que não há só uma solução. Que examinem as alternativas. Estou como o outro que dizia, “Esto no tiene vuelta de hoja.” Esta folha não tem reverso, é preciso rasgar esta folha. Despertar a inteligência, o coração, a sensibilidade e encontrar uma solução diferente. É por isso que a cultura, que entre nós anda tão asfixiada, faz uma falta imensa. A leitura, a música, o teatro, o cinema, a pintura, acordam-nos para não ficarmos paralisados onde nos encontramos. A Arte ajuda-nos a irmos para onde não sabemos.

 

E não tem medo dos textos profanos? Há certos sectores da Igreja que não apreciam. Acham que vêm complicar demais. Até um poema inocente sobre a fraternidade, como o da israelita Else Lasker-Schüler, Reconciliação, mete medo aos cristãos. No entanto, nele pode ler-se — “Não faz o meu coração fronteira com o teu?/ o Teu sangue não pára de dar cor às minhas faces…” Convocação da fraternidade pura, mas só o formato parece assustar. E o senhor, como faz?

 

Não devemos ter medo das várias formas de falar. A Bíblia é feita de muitos livros e muitas linguagens. Falamos de vários modos, como sabemos, para não ficar mudos. Então era melhor a teologia do silêncio? Não, não era. Uma pessoa anda a salvar-se todos os dias do niilismo, anda a ultrapassar a ideia de que não serve para nada. Eu tenho um respeito imenso por Eduardo Lourenço, leio os seus textos e fico a ferver interiormente, e ao mesmo tempo paralisado por aquelas palavras. Em poesia, mesmo o mais blasfemo ajuda-nos a ver do outro lado. Guimarães Rosa ou Adélia Prado enchem-me de um sentimento inexplicável de grandeza. Como quando leio Assim Falava Zaratustra. A minha perspectiva está sempre a deslocar-se para o outro lado. Eu estou no meio do mistério, a Arte ajuda-me a deslocar-me no meio dele. A descobrir um carreiro, como uma formiga.

 

Vi uma fotografia do seu quarto. Comoveu-me. Tem equivalente, na pintura, ao atelier do Francis Bacon. Um turbilhão. Camadas sobre camadas. Mas, sentado à mesa, vem-lhe à cabeça o essencial. Como acontece?

 

Fazes-me rir. Já foi arrumado duas vezes. Mas aquilo está assim porque só trabalho com os textos dos outros, com o que os outros dizem, os outros escrevem. Não tenho talento para criar a partir de mim, eu tenho de ser fecundado pelos outros. Eu não tenho a paixão da escrita, eu tenho a paixão da leitura. Há tantas coisa que me pedem. Como vou fazer? Eu precisava de novecentas vidas para poder assimilar as ideias daqueles livros todos. O Lobo Antunes, meu amigo, pergunta-me às vezes se acho que ele poderá escrever, depois, lá no outro lado. Mas eu também não sei se ele pode escrever lá.

 

Vejo que o senhor acha que nos vamos encontrar lá, no outro lado. Mas então, para onde é que vamos viver?

 
Olha, também não sei, vamos para onde nos der jeito.    

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A fé do nadador campeão

A fé do nadador campeão


“Sem Deus seria um vazio total”, Massimiliano Rosolino

 
 
Aleteia
 
 
 
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Para o nadador italiano Massimiliano Rosolino, que de 1995 a 2008 foi 14 vezes campeão europeu, além de ganhar outras 60 medalhas em diversas ocasiões, a piscina sempre foi seu habitat natural para estar em harmonia consigo mesmo. Mas o campeão sabe perfeitamente que sozinho o homem pode fazer pouco, quando não é acompanhado por uma força interior que o apoie em cada momento.
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“Sempre acreditei em algum ser superior que nos observa e nos guia em todas as nossas ações. Caso contrário, seria um vazio total”, contou Massimiliano em uma entrevista para A Sua Immagine (dia 13 de setembro). Pai de duas meninas e vencedor do reality da RaiDue “Pechino Express”, ele confessou que tem com o Senhor “um cordão umbilical desde sempre, seja nos momentos felizes ou naqueles mais difíceis. Quando me tornei pai olhei para o céu e agradeci intensamente a Deus”.

“Acredito que deveríamos ligar aa algo de positivo, não sempre a um pedido”, comenta o campeão dos 200 metros medley individual, ouro olímpico em Sydney 2000, e mundial em Fukuoka 2001. “Eu gosto de rezar muito mais pelos outros do que para mim mesmo. Em particular para amigos e parentes que estão mal e têm algum problema”.

Envolvido em vários projetos e atividades em relação aos jovens, como a associação sem fins lucrativos “Mille culture”, que busca aproximar os jovens em dificuldade do esporte, tirando-os das ruas. O atleta encoraja sempre os jovens a “se mexerem, a não esperarem que as coisas cheguem”, e sobretudo “a não se abaterem. Perder me fortaleceu muito. O amargo na boca faz crescer muito mais o doce”. 
sources: Aleteia