sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Conselhos Paroquiais da Pastoral

Conselhos Paroquiais da Pastoral


Esta estrutura sempre existiu nesta Paróquia desde 1967 com o nome de Senado.



Em 1978, D. Júlio Tavares Rebimbas aprovou os estatutos, modificados logo a seguir com D. Armindo Lopes Coelho. O segundo Bispo da Diocese também desejava e pediu que cada Paróquia da Diocese tivesse o seu Conselho Paroquial de Pastoral e o Conselho Económico regularizado.

Ora, pela experiência, verifico que o Conselho Paroquial de Pastoral se trata de um órgão alargado da Paróquia onde se encontram representados padres e leigos, representando ainda os movimentos e grupos activos e dinamizadores da Comunidade, incluindo os administrativos como o Conselho Económico.

Ali, nas reuniões, se discutem e se põem a claro problemas pastorais para que haja mais coesão na Paróquia, respeitando sempre os carismas de cada um, conhecendo as suas actividades, dias, horas e mês dos seus trabalhos para evitar colisão e darem as mãos porque todos trabalham no mesmo sentido. Distribuem-se tarefas e o Pároco toma conhecimento e intervém, quando necessário, para que todos reflictam sobre os seus trabalhos, os trabalhos dos outros e os trabalhos de um todo que é a Comunidade que está acima de tudo e de todos. Cada um e todos devem ter como centro da sua dinâmica a Igreja da Paróquia aberta às outras propostas vindas dos exteriores da Comunidade paroquial e diocesana, nacionais ou da Igreja Universal. Todos unidos ao pároco e o pároco unido aos leigos, em comunhão leal profunda, é que poderemos dar Vida à Alma da Paróquia, melhor, à célula da Igreja à qual pertencemos e que é parte integrante da Igreja de Jesus Cristo.

Quando há alguma divisão ou porque este fez igreja só com este padre e não com aquele, isso quer dizer que não fez igreja com ninguém. Aquele que só fez Igreja com este Bispo e não com aquele, não faz, na verdade, igreja nenhuma.

A Igreja não pode estar ligada a uma pessoa que não seja Jesus Cristo que é a sua cabeça.

Não é cristão, nem sabe o que é a religião por mais que diga que sabe muito da religião.

Ora de Religião ninguém sabe tudo porque a fé é um mistério e, se não fosse, também não seria religião. A religião vive-se em comunhão e nunca fora da comunhão.

Para uma Paróquia ser uma Comunidade de irmãos abertos aos outros em comunhão e vivência com Alma não poderá prescindir do C.P.P. e de todos os meios que na Comunidade realize onde pode ser manifesta a coesão, o testemunho da Vida que vem do Alto, de Cristo… que dá Alma, Espírito à Comunidade, à Igreja viva.

O Conselho paroquial de Pastoral não é só um órgão consultivo, mas serve para sugerir, unir, avaliar a pastoral da Comunidade e até aprovar as contas da gestão do património e dos bens materiais para serem, em cada ano apresentadas, ao Ordinário Diocesano.


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Da Globalização da Indiferença a uma É tica do Cuidado

Reflexão da CNJP para a Quaresma

de 2015

Da Globalização da Indiferença

a uma Ética do Cuidado


1. “Globalização da Indiferença”, é a formulação usada na Mensagem



do Papa Francisco enviada a todos nós, católicos, para a Quaresma

de 20151. Nessa mensagem o Papa interpela-nos: “Fortalecei os vossos

corações!”2. Como podemos fortalecer os nosso corações face à indiferença?



O termo católico vem do grego “katholikos”, que quer dizer

para todos ou universal. Um católico será então aquele ou aquela que



professa o catolicismo, isto é, que procura ter uma perspetiva universal,

orientando-se para todos os seus irmãos. Na Reflexão para a Quaresma



de 2015 a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), consciente

do seu papel interpelador da comunidade dos cristãos e da sociedade

em geral no que toca às questões de justiça e paz, propõe-se contrapor

à globalização da indiferença uma Ética do Cuidado.

2. Vivemos num mundo de enormes desequilíbrios sociais. De ano a



ano, as fortunas de alguns aumentam face a maiorias que não têm o essencial

para viver. As nossas sociedades produzem exclusões numa espiral

sem fim. A “crise” dos mercados mundiais tem atravessado todas as classes

sociais abalando inclusivamente a “classe média”, com consequências

a nível de desemprego, pobreza infantil, vulnerabilização da vida familiar,

exclusão, etc. No contexto português temos vindo a assistir com alguma

indiferença ao avolumar destes desequilíbrios. Cerca de dois milhões de

portugueses estão em situação de pobreza ou na iminência dela. Continuamos

a ser pressionados pelas imposições do norte da Europa. Nunca

como agora precisamos de coesão social. No entanto cada um (ou cada

comunidade), de um modo individualista, trata de si próprio e ignora o

que se passa à sua volta, esquecendo que as soluções ou são globais... ou

não há soluções.

• Fortaleçamos os nossos corações, afirma o Papa Francisco, ao

mesmo tempo que os alargamos num movimento de dentro para

fora, em ondas de solidariedade. Tornemo-nos Homens e Mulheres

presentes no mundo e não “presentes ao mundo” de uma



forma distanciada e autoprotetora. Nesta Quaresma, tempo de

despojamento e de conversão interior, meditemos sobre o pecado

da indiferença e pensemos nas ações que cada um ou cada uma



pode escolher fazer ou não fazer.

1 Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2015

2 Epístola de Tiago 5, 8

3. Reconhecemos a necessidade de mudanças nas instituições que



nos governam a nível nacional e internacional no sentido de se orientarem

para uma proteção dos mais frágeis e vulneráveis ou mesmo excluídos,

das minorias e dos grupos marginalizados, tomando os seres

humanos e sua circunstância como centro das nossas preocupações e

empenhamentos. Em contraponto, o mundo misterioso dos mecanismos

do “mercado”, das empresas e contas bancárias off-shore, da especulação



e das transações financeiras fictícias, representa os interesses

irresponsáveis de uma minoria. Aceitamos acriticamente o “deus do

mercado” ou aceitamos o desafio do Papa de que o sistema económico

precisa de ser repensado profundamente?

• Quem é este “deus do mercado” aqui e agora, no nosso paí? Que

significa para nós, cristãos, adorar um Deus Único, o Deus de

Jesus Cristo, o “pobre dos pobres” e “Homem de todas as dores”?

• Somos desafiados a pôr em prática as sucessivas interpelações do

Papa Francisco, que nos convida a ser «um corpo que conhece

e cuida dos seus membros mais frágeis, pobres e pequeninos».

Quando o Papa Francisco nos fala “do Lázaro sentado à sua porta

fechada”, como nos sentimos interpelados a cuidar dos “Lázaros

de hoje” e, ao jeito de Jesus Cristo, estendemos a mão e curamos

as feridas no corpo e na alma dos nossos irmãos?

4. «Também como indivíduos temos a tentação da indiferença. Estamos



saturados de notícias e imagens impressionantes que nos relatam

o sofrimento humano, sentindo ao mesmo tempo toda a nossa incapacidade

de intervir. Que fazer para não nos deixarmos absorver por esta

espiral de terror e impotência?», afirma o Papa Francisco. Confrontamo-

-nos com as notícias do terror em que vivem tantos países e populações.

Ao sermos inundados diariamente por essas notícias, corremos o risco

de nos tornamos indiferentes ao sofrimento dos outros – incluindo tantos

grupos cristãos perseguidos –, acomodando-nos na nossa confortável

cegueira. Afirmamos dentro de nós próprios – «ainda estamos num país

seguro...» – esquecendo que a fome, a ausência de condições de saúde e

habitação, o atropelo aos direitos humanos mais básicos, afetam irmãos

nossos. O terrorismo que invadiu a Europa também nos bate à porta e

está a tornar-se nosso vizinho.

• Será que não experimentamos também outros tipos de terrorismo

num avolumar da “espiral de violênciana sociedade portuguesa?



• Inspirados pelo Cristo dos Evangelhos ou por Paulo nas suas

viagens e cartas para todos – judeus e gentios –, como podemos



abraçar solidariamente o mundo com as nossas ações individuais

e coletivas? Como poderemos, como nos exorta Francisco, «unir-

-nos à Igreja do Céu em oração»?

5. Face à insegurança e ameaças de que estamos rodeados, às injustiças



permanentes, ao atropelo dos direitos das minorias, incluindo

as minorias imigrantes, o Papa Francisco reflete: «o sofrimento do

próximo constitui um apelo à conversão, porque a necessidade do irmão

recorda-me a fragilidade da minha vida, a minha dependência

de Deus e dos irmãos.» Cada vez mais raras vezes vamos para a rua

manifestar-nos, denunciando as gritantes injustiças que se instalaram

de modo subtil nas sociedades e países onde vivemos, a não ser que os

nossos interesses imediatos sejam afetados.

• Nesta Europa envelhecida e virada para si mesma, consentimos

que se levantem muralhas entre “nós” e “os outros”? Vamos à raiz

e às causas que provocam o terrorismo? Queremos acolher e fazer

“hospitalidade” e encontro com os imigrantes, em vez de querer

“integrá-los”, muitas vezes à força3? Como nos podemos tornar



mais acolhedores e hospitaleiros: apenas com os turistas que trazem

divisas? Em que medida nos sentimos solidários e responsáveis

pelo que se passa no Mediterrâneo e na ilha de Lampedusa?

Será que não temos Lampedusas no nosso país?

6. Francisco convida a que tornemos as nossas comunidades “ilhas



de misericórdia no meio do mar da indiferença”, (...) «atravessando o limiar

que as põem em relação com a sociedade circundante», não se fechando

em si mesmas. Queremos que a Igreja seja uma Igreja “do limiar”.

Queremos que as nossas famílias sejam “comunidades do limiar”.

• Quem é a “minha famíia”? O que consideramos uma famíia

alargada? Como acolhemos e ajudamos na Igreja e nas nossas

famílias e comunidades, afirmando-os, aqueles que vivem nas

periferias, sejam elas económicas, sociais, culturais, geográficas,

étnicas, religiosas, de orientação sexual ou outras? Visitamos

3 Ver Comunicado da CNJP de 3 de fevereiro de 2015.



os presos e os doentes sem família? Vamos à procura dos sem-

-abrigo? Apoiamos e acolhemos em nossas casas as famílias no

limiar da pobreza? Como ajudamos os que se encontram no flagelo

do desemprego? Que apoio damos às crianças e jovens que

se defrontam com o insucesso escolar? Como nos solidarizamos

com as vítimas de violência doméstica, dos abusos sexuais e da

pedofilia? Como escutamos a solidão de tantos? Como cuidamos

ou ajudamos a morrer os mais velhos? Libertamo-nos deles

para os colocar em verdadeiros “depósitos” que não são senão

antecâmaras de tristeza, solidão e morte? Tornamo-nos indiferentes

àqueles que nos deram a vida, a educação e nos transmitiram

valores e cultura/s? Para cada uma destas perguntas a

resposta é do foro individual, mas também coletiva, ao nível da

mudança das estruturas injustas em que vivemos e que queremos

transformar.

7. Alerta o Papa Francisco: «Quando estamos bem e comodamente



instalados, esquecemo-nos certamente dos outros (...), não nos interessam

os seus problemas nem as tribulações e injustiças que sofrem:

assim o nosso coração cai na indiferença? O desemprego atinge dramaticamente

a sociedade portuguesa criando exclusão a todos os níveis. A

pobreza infantil não cessa de aumentar. O trabalho já não faz parte da

identidade do ser-se homem ou mulher. Tornou-se apenas importante

“ter um emprego” que garanta a “minha” sobrevivência e a dos “meus”;

sem emprego caímos no “estigma” que leva muitos à exclusão e à auto-

-exclusão. Os índices de desemprego mantêm-se elevados, com especial

incidência nas mulheres e nos jovens.

A capacidade de resiliência

humana é infinita mas... até quando?

• Desejamos encontrar formas de estender a mão aos nossos irmãos



desempregados. Queremos garantir a multiplicação dos

pães e dos peixes4 para fazer face à fome no corpo e na alma que



atravessa a sociedade portuguesa... e o mundo. Mas estamos

dispostos a encontrar modos de vida mais frugais e simples, vivendo

com menos para que “outros” tenham um pouco mais?

Esses “outros” incluem os que habitam nos antípodas, os cha-

4 João 6, 1-15



mados países do hemisfério sul. Ou escolhemos instalar-nos na

indiferença? Enquanto cristãos, pactuamos com o subemprego, a

exploração pelo trabalho, a “globalização” do trabalho escravo e

o assédio sexual, o “stalking” no trabalho, a discriminação no emprego



das mulheres-mães ou daquelas e daqueles que querem ter

filhos? Que ética de justiça queremos? Justiça diferente para uns

e para outros? Para os que podem pagar e para os que não podem

pagar? Como podemos ser agentes indignados da falta de Justiça,

inspirados pelos ensinamentos de Jesus Cristo quando expulsa os

vendilhões do templo5?

8. O direito à saúde é um direito indelével do ser humano. Deus



criou-nos “seres encarnados”. Diz Francisco: «Na encarnação, na vida

terrena, (...) abre-se definitivamente a porta entre Deus e [os seres humanos],

entre o Céu e a Terra.» Desejamos uma ética da/na saúde que

não discrimine ninguém. A indiferença à dor e sofrimento na carne e

no espírito do outro não será uma negação da parábola do Bom Samaritano?



6

• Queremos ser “autores” e “sujeitos” da nossa prória saúe de



um modo solidário, isto é, pensando nos outros, nos que não têm

sequer um médico ou um hospital para se tratarem. Tornamos

presente o facto de não haver condições mínimas de saúde e sobrevivência

básica noutros pontos do planeta. Mas conformamo-

-nos com uma saúde segregada. Queremos uma saúde para os

que podem pagar e outra saúde para os que não podem pagar?

Somos indiferentes à solidão, abandono, maus-tratos, negligência,

quando se trata de alguns outros?



• Temos direito ao lazer. Mas este será apenas luxo de uns quantos

ou um direito de todos? Podemos usar os tempos de lazer de um

modo solidário, na consciência do privilégio que é ter tempos de

lazer. Podemos saborear a vida apesar das suas restrições: beleza,

arte, cultura, desporto... tudo é dom de Deus. Qual o papel do voluntariado

nas nossas vidas quotidianas? Da gratuidade? Do dom

e daquilo que nos é dado?

5 Marcos 11, 15-19

6 Lucas 10, 25-37

9. Somos desafiados a educar as novas gerações para uma consciência

mundial e planetária. Francisco afirma na sua mensagem: «o mundo



tende a fechar-se em si mesmo», assinalando que «o povo de Deus tem

necessidade de renovação para não cair na indiferença nem se fechar em

si mesmo».

• Queremos educar as novas gerações para esta “consciêcia planetária”.



Ensinar-lhes a descentrarem-se, a recusarem perspetivas

etnocêntricas. Queremos levá-las a tornarem-se corresponsáveis

por um “mundo aberto” e interdependente. Queremos educar

todos numa escola inclusiva, que não segregue, permitindo, simultaneamente,



que cada um atinja a excelência de que for capaz.

Mas, então, o que é “liberdade de escolha”? Quem pode ter

liberdade de escolha? Como fazemos contracorrente à exclusão

escolar?

Concluindo....


«A Deus não lhe é indiferente o mundo», afirma Francisco. Esse Deus

que «ama este mundo até ao ponto de entregar o seu Filho pela salvação

de todo o homem». Desejamos alimentar a nossa fome de Deus tornando-

nos mais profundamente humanos na universalidade do nosso catolicismo.

Desejamos beber dessa “Fonte de Água Viva” que é Cristo Jesus.

Contra a globalização da indiferença será então necessária uma

nova Ética. A CNJP propõe uma Ética do Cuidado, enquanto movimento



do nosso coração para fora que, simultaneamente, fortalece por dentro

o coração de cada um e de cada uma de nós: uma ética do cuidado com

tudo e com todos, contrapondo-se à globalização da indiferença.

«O cuidado, afirma Maria de Lurdes Pintasilgo7, trata das atitudes



e das ações que testemunham que os humanos, as suas

comunidades e nações, não estão isolados mas são interdependentes,

conscientes da existência do outro e prontos a comprometerem-

se com os outros (...). A ética do “cuidar” ultrapassa a

7 Maria de Lurdes Pintasilgo, 19w98, Relatório da Comissão Independente População

e Qualidade de Vida (Nações Unidas), pp. 343-344.



um nível muito mais elevado a meta macroeconómica de uma

melhoria de qualidade de vida “algures” no futuro distante. (...)

Uma ética do cuidado reside mais numa prática e menos num

conjunto de princípios prédefinidos. (...) Implica um ‘hábito

geral da mente’ centrado no cuidar (...).»

O Papa convida-nos a passar do paradigma do excesso ao paradigma

da partilha e da solidariedade universal: aprendamos o “hábito geral” de

uma mente centrada no cuidar. Procuremos re-significar, aqui e agora, o

sentido da comunhão dos santos, «a comunhão de todas as coisas santas»,



como afirma o Papa Francisco, deixando que «o amor vença a indiferença

». Nesta Quaresma queremos abraçar a proposta do Papa de «tornar

todas as coisas santas», como antídoto à globalização da indiferença, ao

pecado da indiferença desejando que essa participação nas coisas santas



– «aquilo que cada um possui, não o reserva só para si, mas tudo é para

todos» –, se torne uma verdadeira prática do “cuidado”.

Aceitemos o convite de Francisco ao silêncio, à meditação, à escuta, à

oração. Peçamos a Deus um olhar atento e “não habituado”. Balbuciemos

as Bem-Aventuranças na certeza das nossas limitações mas, simultaneamente,

com a fé de que, com a ajuda de Deus, saberemos «fortalecer os

nossos corações».

Fiquemos com uma nova bem-aventurança, que integra as que conhecemos:

Bem-aventurados vós os que têm um coração forte, solidário e

atento, que experimentam o cuidado em dimensões cada vez mais abrangentes,

interligadas e complexas, porque fareis vosso o Reino de Deus!

Caminhemos nesta Quaresma de 2015 ao encontro da Páscoa da Redenção!

18 de fevereiro de 2015

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Solidão e ética do cuidado


Solidão e ética do cuidado


por ANSELMO BORGESDiário de Notícias 21.02.2015

Italo Calvino escreveu, em As Cidades Invisíveis: "A cidade de Leónia refaz-se a si própria cada dia que passa: todas as manhãs a população acorda no meio de lençóis frescos, lava-se com sabonetes acabados de tirar da embalagem, veste roupas novinhas em folha, extrai do mais aperfeiçoado frigorífico frascos e latas ainda intactos, ouvindo as últimas canções no último modelo do aparelho de rádio. Nos passeios, embrulhados em rígidos sacos de plástico, os restos da Leónia de ontem esperam o carro do lixo. Não só tubos de pasta dentífrica bem apertados, lâmpadas fundidas, jornais, contentores, restos de embalagens, mas também esquentadores, enciclopédias, pianos, serviços de porcelana: mais do que pelas coisas que dia-a-dia são fabricadas, vendidas, compradas, a opulência de Leónia mede-se pelas coisas que dia-a-dia se deitam fora para dar lugar às novas. De tal modo que há quem se interrogue se a verdadeira paixão de Leónia é realmente como dizem o gozar as coisas novas e diferentes, ou antes o rejeitar, o afastar de si, o limpar-se de uma constante impureza. A verdade é que os varredores são recebidos como anjos, e a sua tarefa de remover os restos da existência de ontem está rodeada de um respeito silencioso, como um ritual que inspira devoção, ou talvez porque uma vez deitadas fora já ninguém quer tornar a pensar nessas coisas."

Quem cita o texto é o filósofo João Maria André, numa conferência tão profunda como terna sobre o tema em epígrafe, e o que aí fica é uma breve síntese. Leónia é uma metáfora para a sociedade que quer o permanentemente novo, atirando o velho para fora. Mas hoje já não são apenas as coisas que se descartam, "descartam-se também as pessoas". Uma boa metáfora para "a sociedade líquida de consumo", num tempo de "turbo consumismo", que resulta numa felicidade paradoxal: "A felicidade está em ser-se permanentemente infeliz, porque o consumo aumenta cada vez mais a insatisfação e a felicidade da insatisfação é uma felicidade paradoxal." E aí está a solidão da "sociedade líquida" (Zygmunt Bauman): "Está só o que consome, porque se consome e tudo consome no consumismo; está só o que se vê excluído do consumo, porque não tem acesso a ele."

Há dois modos na solidão: não é a mesma coisa estar só e sentir-se só. O criador, o religioso, o artista, o político, em última análise, qualquer ser humano que não queira andar sempre distraído e à superfície das coisas, precisa de momentos de solidão, para reflectir e poder estar consigo no mais íntimo e com a transcendência e a fonte donde procede o ser e o criar: é a solidão habitada. A outra solidão é a solidão do abandono, dos restos, da exclusão. E cada vez mais é nesta que se está. Sobretudo os velhos. Nesta sociedade líquida do consumo e da vertigem da velocidade, não há solidez de relações e de afectos - as relações fazem-se e desfazem-se, os afectos "gastam-se e deitam-se fora"- nem memória nem futuro: descartam-se os velhos e não há crianças.

O ser humano enquanto pessoa é constitutivamente ser em relação, de tal modo que ser e ser em relação coincidem. A identidade é sempre atravessada pela alteridade, na interacção com os outros. Assim, ser pessoa enquanto liberdade é ser responsável, capaz de responder: "Ser é responder, responder ao dom que nos coloca no ser."

Então, com a solidão, no processo do envelhecimento, é a vulnerabilidade do ser humano que se manifesta: "um processo de identidade em ruptura"; "a pessoa só, sem pontes para os outros e para o mundo, é um ser assassinado na sua identidade"; "as pessoas sós são pessoas anónimas", na angústia da saudade do passado, na dissolução da memória e na perda do futuro, na incapacidade de ser projecto e, por isso, de esperança.

A pessoa humana não é espírito desencarnado, consciência abstracta. Dizia Laín Entralgo: eu sou um corpo que sente, que pensa, que espera, que ama, que diz eu. Somos presentes pelo corpo. Assim, a solidão é também ruptura com o corpo: a ausência da palavra, a ausência do gesto, da carícia, da ternura. E envelhecer é despedir-se do corpo, a sua perda lenta, no horizonte da morte: "A experiência da morte daqueles que amamos é a experiência de um corpo que, sendo o corpo deles, já não são eles no seu corpo."

Cá está então a ética do cuidado, no sentido profundo e abrangente, holístico, do cuidar, que rompe a solidão "através das portas corporais" e responde à vulnerabilidade do ser humano.

Porque é que nos sentimos sós? "Saber-se e sentir-se só é saber-se e sentir-se desabrigado, sem tecto, sem morada." Por isso, "ajudar a vencer a solidão é oferecer a alguém uma morada, uma hospedagem, o cuidado de um abrigo": o abrigo do nosso olhar, o abrigo do nosso ouvido, da nossa palavra, da nosso mão, dos nossos gestos, da nossa compreensão e confiança, da nossa estima, "chame-se amizade ou chame-se amor".

 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O Padre Vitorino, Estêvão de religioso beneditino e deixou caducar o passaporte

O Padre Vitorino, Estêvão de religioso beneditino

Atualizado há 2 segundos

261 MUNDO I PÚBLICO. QUA 4 FEV 2015


Catarina Gomes o texto) e Manuel Roberto (fotos), em Luena 
Nas ruínas de uma povoação colonial abandonada vive um missionário português que chegou no início de uma guerra e ficou durante a que se lhe seguiu. Numa delas, foi raptado. É uma personagem famosa na região aqui não caiu nenhuma bomba”. O padre Estêvão refere-se ao local preciso em que os seus pés calçados com meias beje e sandálias abertas de tiras estão assentes no chão. De resto, vai rememorando e apontando os locais das quedas dos variados objectos explosivos que designa genericamente como “bombas”, com sotaque ainda minhoto: “Aí caiu uma, outra ali, caiu uma ali à frente, outra ali, outra na ponte, outras acolá”. E já lhe faltam direcções para onde apontar, o mundo à sua volta foi bombardeado. As paredes do palacete colonial em ruínas onde vive sozinho guardam em si marcas de muitas guerras. Como o padre Estêvão. Não há quem não o conheça em Luena, que ainda se chamava Luso quando para ali foi (Leste de Angola), é uma personagem famosa na região. É o português que por ali ficou, sempre. E que agora é deles.

 
 
 

Estêvão é o nome religioso que escolheu para si quando se tomou beneditino, explica que quer dizer “coroado”. São poucos os que ali saberão que o seu nome de baptismo é Vitorino, que, por sua vez, quer dizer “o pequeno vencedor”, e que o seu apelido é Simões. O padre Estêvão, •como todos o conhecem, habita um sítio fantasma, que parece fora do espaço e fora do tempo. Para se chegar até ele é preciso ir num veículo todo- o-terreno, sair da cidade de Luena, e depois percorrer durante meia hora (se tudo correr bem) um caminho de terra batida cheio de crateras e pe­quenas elevações de terra.



O sacerdote de 81 anos está, em teoria, contactável, conta que é pro­prietário de nada menos do que dois telemóveis, “um é um Somsung, Simsaung, Samsung”, diz, brincando com a sua inaptidão para as línguas estrangeiras. De pouco lhe servem, o de marca sul-coreana e o outro da Movicel, no sítio onde vive não há rede. Também não há luz eléctrica. Para acender o gerador que tem encostado a um canto seria preciso repará-lo e comprar gasolina, para acender os candeeiros em casa seria preciso petróleo e, para isso, “tinha de ir buscá-los ao aeroporto”, explica-nos, parecendo dizer que tem tudo o que precisa mesmo ali.
É lusco-fusco, na casa onde vive acende uma vela que lhe ilumina parte do rosto e deixa entrever o tecto desmoronado de um dos salões de ar senhorial. Noutra divisão, há uma enorme mesa de madeira corrida que um dia terá acolhido convidados importantes - é onde come sozinho e onde tem o fogão. No escritório, tem uma secretária, uma máquina de costura e estantes de livros cujos títulos não se conseguem ler apenas com a luz da vela que transporta na mão.
É o único habitante deste casario que guarda a história dos primórdios da presença colonial portuguesa nesta região remota do interior de Ango­la, foi ali a primeira capital da província do Moxico. As primeiras expedições à região remonta ao final do século XIX, a edificação desta primei­ra povoação foi levada a cabo pelo chefe da primeira expedição, o tenen­te-coronel Trigo Teixeira, em 1895.
O sítio onde vive o missionário foi a residência do primeiro governador português na região, D. António de Almeida, na década de 1920, que depressa se desencantou do local, conta o sacerdote. Deixou para trás a povoação e cedeu-a aos missionários. “Fugiu, foi atrás do comboio”. Foi criada uma nova capital da província ali a uns 20 quilômetros, onde ficou até hoje e se chama Luena, como o nome do rio que a banha. Os portu­gueses baptizaram mais tarde a cida­de de Luso. Ao sítio remoto onde o padre Estêvão habita, e onde os pou­cos paroquianos habitam em cubatas tradicionais ali em volta, chamam-lhe hoje Moxico Velho.
O palacete resistiu como pôde ao sabor das guerras, primeiro a colo­nial ou do Ultramar, como lhe pre­firam chamar, depois a guerra civil angolana. “Há marcas de estilhaços na parede”. As lembranças dos con­flitos parecem amalgamadas na me­mória do padre, que vive em Angola há 53 anos, e quando nos começa a contar como, “durante a guerra”, foi raptado pelo MPLA, dos seus 25 dias de cativeiro, já não sabe precisar em que ano aconteceram, nem se per­cebe em qual das guerras. Sabe que andou no mato entre um dia 25 de Outubro e um 18 de Novembro.
Um livro sobre as “conquistas” *dos comandos portugueses (Siroco - Os Comandos Portugueses no Leste de Angola), da autoria do tenente-co­ronel Antônio Pires Nunes, ajuda-nos a preencher os lapsos de memória do sacerdote. Foi raptado em 1968, em plena guerra colonial. Neste livro, editado pela Associação de Coman­dos (2014), o episódio é tratado como um revés na chamada operação Des- baste: “Na véspera do seu lançamen­to, chegou ao comando da Zona Mili­tar do Leste a notícia de que o padre Estêvão da diocese do Luso acabava de ser raptado pelo MPLA quando teria ido à sanzala do Lumege dar a extrema-unção a um moribundo. Sucederam-se pressões eclesiásticas movidas pelo bispo do Luso para que se movimentassem as forças arma­das para libertar o padre”.



Escreve-se que o MPLA terá tido receio de que, nas idas do religioso à tal povoação, ele trouxesse de volta conhecimentos do terreno às autori­dades portuguesas. O padre Estêvão diz que foi preso porque eles o ouvi­ram usar o termo “turras”.
Em jeito de balanço, escreve-se que a operação Desbaste foi um su­cesso: “Causou ao MPLA 47 mortos, 3 feridos e 74 capturados. Foi des­truída uma apreciável quantidade de acampamentos” e “o padre Estêvão foi recuperado” depois de um ataque das forças armadas ao acampamento onde estava aprisionado. No livro, a história termina quase em estilo de western: “Ao raiar da aurora, o padre Estêvão, envergando a batina e a estola habitual, escapou ao tiroteio e foi resgatado”.
O relato de padre Estêvão é bas­tante menos dramático. Passados 47 anos, realça-lhe os elementos cómi­cos, graceja, Bíblia a todo o tempo debaixo do braço, quando diz que a sua memória lhe “cristianizou” o rapto, tomando-o talvez mais suave do que foi: “Eles, coitadinhos, não me fizeram mal. Cama não tinha, fome não passei, tinha sempre duas moças que me faziam comida”, nun­ca mais se esqueceu dos seus nomes de guerra, entre os guerrilheiros não havia nomes civis, “eram a Azarada e a Decidida. Tinham sempre um mata-bicho para mim. Elas até me lavavam os pés. Só que, de andar des­calço, fiquei com os pés inchados”. Quando aquilo acabou, teve de ficar três dias no hospital com os pés alça­dos, para desincharem do tamanho anormal que foram adquirindo nessa sua marcha forçada de 25 dias, conta bem-disposto. Também não fala mal dos “da outra parte”: “Os da UN1TA eram umas jóias, a certa altura até acharam que eu era da UNITA”.
É Raimundo da Silva, notário em Luena e cantor popular Rai Lex nas horas vagas, “mérito cultural” reconhecido pelo MPLA com a oferta da viatura Hyace 4x4 que nos conduz até ao padre Estêvão, quem nos quer muito vir mostrar o sacerdote e o local onde ele mora. É como se as ruínas desse tempo colonial português e o próprio sacerdote fossem monumentos “a não perder” para visitantes vindos de Portugal. Raimundo da Silva, de 54 anos, foi aluno na missão católica do Moxico Velho. Como criança, lembra-se de ter de içar a bandeira portuguesa, de le­var palmatória quando não sabia a tabuada ou coisas da História de Portugal, ali ouviu falar dos mosteiros da Batalha e dos Jerónimos, num tal Afonso Henriques, numa tal rainha Dona Filipa de Lencastre, de um tal Egas Moniz, na serra da Estrela. Na altura, nada se aprendia sobre a História de Angola. Foi também ali que teve de aprender que havia quatro estações, Primavera, Verão, Outono, Inverno, embora ele e os outros meninos angolanos só vivessem duas, “o tempo chuvoso e o tempo do cacimbo”. Um dia gostava de ir a Portugal, na Primavera, ouviu falar bem dessa estação.
Acabou “o tempo colonial”. Mas o padre Estêvão ficou. É quase como um troféu, como se ele agora fosse angolano. Raimundo da Silva diz que o padre é demasiado modesto, que pouco falou do que por ali passou, “de ter sido o escudo das populações” durante a guerra civil que durou até 2002, que a batina, mesmo em guerra, ainda valia alguma coisa. Chegou a dizer: “Se querem matar alguém, têm de me matar a mim primeiro". Não por acaso o edifício mais bem cuidado deste povoado é a igreja, estilo Estado Novo, impecavelmente pintada.
Raimundo da Silva termina a visita turística ao padre oferecendo-se carinhosamente para lhe deixar ao menos mudar as lâmpadas, ligar o gerador, e o padre vai dizendo que não é preciso, brinca com Raimundo e o seu nome, “Raimundo, pensa que é o rei do mundo".



Vitorino Simões nasceu a 2 de Fevereiro de 1934, no lugar de Anha, Viana do Castelo, foi ordenado padre em 1959, seguindo a vocação e o exemplo dos “primos padres”. Diz que foi mandado de bom grado para Angola em 1962 vindo do mosteiro de Singeverga, no concelho de Santo Tirso, onde chegou a responsável dos noviços, um cargo que deixou para vir para cá. O abade Dom Gabriel de Sousa fez- lhe a pergunta muito a medo, ficou surpreendido quando ele aceitou a missão. “Ninguém queria vir meter- se ‘no meio dos pretos’, que era assim que se dizia na altura".
Viajou no navio Vera Cruz, veio com os militares portugueses que vinham para a guerra. “Era como uma família dentro do barco, gostei muito das viagens”. Aquele sítio é a sua casa. Quando foi raptado, a família ainda alimentou a ilusão de que ia voltar para Portugal, que tal­vez o susto o convencesse. Estavam enganados. Há pouco tempo, soube que o irmão gémeo lhe morreu em Portugal, a notícia chegou-lhe um ano depois. Tem algures ali guar­dado naquele palacete colonial em ruínas o seu passaporte português, mas deixou-o caducar.
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Vitorino Simões nasceu a 2 de Fevereiro de 1934. Chegou a Angola em 1962, vindo do mosteiro de Singeverga, em Santo Tirso. No Moxico Velho, onde vive num palacete sem luz, é o "padre Estêvão"

 

P. S.- Este sacerdote vai a caminho dos 50 anos de missionário na diocese de Luena, antigo Moxico Velho. Recorda-me de numa das visitas de férias para tratar da saúde, vivia aqui na Paróquia e celebrou diariamante aqui durante de vários anos.
Na última ele afirmou numa homilia que a minha terra não era esta, nem Vila Nova de Anha onde nasceu, mas Luena onde estavam os pobres e os famintos de tudo.
Daí o agrado de termos lido no Público esta reportagem que transcrevermos como a foto que o jornal publicou. Tem gerador, mas não tem gasolina e a vela serve para ler e escrever pela noite.



 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

D a r A l m a à V i d a X X X I X


Dar  Alma à  Vida  X X X I X

 
Se não damos Alma à Vida, os que nos rodeiam não nos seguem.

Se uma criança não vem à Catequese é porque eu não dou Alma à Vida de padre, ou de pai, de mãe, de educador…
 


As crianças, os adolescentes, os jovens, precisam de referências e, essas vêm sobretudo da  Alma que a família, o ambiente, a comunidade, imprimir à Vida.

É que uma vida sem Alma é cadáver que cheira mal e não interpela ninguém a seguir o mesmo caminho, mas a fugir por outro lado, onde se viva a Vida como um dom e com Alma.

Dar Alma à Vida é imprimir à Vida, mesmo dos filhos ou educandos, aquilo para os quais se assumiram compromissos. Se não se fala ou ensina conforme o crescimento na ciência, na fé, ou  se acompanha na fé é porque não vêem Alma na Vida. E ninguém pode exigir ou impor aquilo que não faz...

Dar Alma à Vida é evangelizar, falar de Jesus e acompanhar à missa, à Eucaristia. É que a Missa é mesmo para dar Alma à Vida evangelizada ou em busca da fé.

Dar Alma à Vida é sofrer e amar. É fazer com que o amor autêntico seja um acto da vontade e a palavra “Obrigação” desapareça da Vida porque a Alma é Vida, é Amor. É que o que custa constrói e dá frutos e o que não custa é algo que pouco vale. Sem cruz não há amor porque o amor exige renúncias e doações, momento a momento, exige Alma.
 

Dar Alma à Vida começa na pessoa, na família e na comunidade para desabrochar a Vida numa Flor ou Palma, que rimam com Amor e Alma.

Assim as crianças seguem aqueles que mais amam e mais admiram que deve ser sempre o pai e a mãe, em primeiro lugar. Dar Alma à Vida é dar testemunho duma Vida aos vindouros e ao Outro.



                                                                                                                                                                        P.C.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O DIÁLOGO MAIS URGENTE


Comissão Nacional Justiça e Paz

Quinta do Cabeço, Porta D ● 1885-076 Moscavide ● Tel: 218 855 480 ● Fax: 218 855 475

E-mail: comissaonjp@gmail.com ● Site: www.ecclesia.pt/cnjp

 

O DIÁLOGO MAIS URGENTE

COMUNICADO DA COMISSÃO NACIONAL JUSTIÇA E PAZ A PROPÓSITO DO RECENTES ATAQUES TERRORISTAS DE PARIS E DA NIGÉRIA

1. Os recentes ataques terroristas de Paris e da Nigéria, com repercussões que se estendem até hoje, suscitam em muitos dúvidas sobre a viabilidade da convivência pacífica e harmoniosa entre pessoas de diferentes culturas e religiões nas sociedades europeias. Em especial, a presença de pessoas de fé islâmica é vista por muitos como uma ameaça. Há quem evoque a este respeito a conhecida (mas não comprovada) tese do choque de civilizações.

Num mundo globalizado e na era das comunicações sem barreiras, é, porém, por um lado, ilusório e, por outro lado, empobrecedor pensar em sociedades culturalmente uniformes e isoladas.

A Comissão Nacional Justiça e Paz pretende com esta nota realçar a sua convicção de que, neste contexto, pelo contrário, o diálogo entre diferentes culturas e religiões se torna ainda mais importante, benéfico e urgente. É ele que mais facilita o acolhimento dos muçulmanos nas sociedades europeias (norteado por uma cultura do encontro e da hospitalidade) e é ele, por isso, o mais potente antídoto contra o terrorismo de matriz fundamentalista.

2. A respeito do diálogo inter-religioso, afirma o Papa Francisco na exortação apostólica Evangelli Gaudium (n. 250): «Uma atitude na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes das religiões não cristãs (…)», é «uma condição necessária para a paz (..)»; com ele «aprendemos a aceitar os outros na sua maneira diferente de ser, de pensar e de se exprimir». E no recente discurso aos participantes num encontro promovido pelo Pontifício Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos: «…o antídoto mais eficaz contra qualquer forma de violência é a educação à descoberta e à aceitação da diferença como riqueza e fecundidade.»

3. Não podem confundir-se expressões marginais de fanatismo extremista, que instrumentaliza a religião islâmica em função de um projeto ideológico e político, com o sentir da maioria dos muçulmanos, nestes incluindo os que vivem em Portugal e os seus representantes. A estes também repugna o terrorismo, e, mais ainda, repugna a instrumentalização da sua fé para o justificar. Com estes podem os cristãos encontrar riquezas comuns (em torno dos princípios do amor a Deus e ao próximo) e criar laços de fraternidade.

A eles se refere a declaração Nostra Aetate (n. 5), do Concílio Vaticano II: «A Igreja olha (…) com estima para os Muçulmanos, que adoram o Deus único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente (…)»; «Embora ao longo dos séculos não poucas discórdias e inimizades tenham surgido entre Cristãos e Muçulmanos, o sagrado Concílio exorta todos para que, esquecendo o passado, pratiquem sinceramente a mútua compreensão, defendam e promovam, em comum, a justiça social, os bens morais, a paz e a liberdade para todos os homens.»

O conflito de civilizações do passado não tem, pois, que reproduzir-se no futuro.

4. Para evitar o choque de culturas, a solução não reside em eliminar do espaço público todas as manifestações religiosas, relegando-as para a esfera estritamente privada. Nas religiões encontram muitas pessoas um sentido para as suas vidas, a força para enfrentar as dificuldades, o cimento da harmonia familiar e comunitária. Não pode pretender-se que os muçulmanos e outros crentes deixem de o ser, reneguem a sua fé, para poderem ser acolhidos nas sociedades europeias. Essa pretensão acabaria por favorecer o extremismo fundamentalista, que rejeita esse acolhimento. No seu discurso ao Parlamento Europeu, o Papa Francisco associou esse extremismo ao «grande vazio de ideais a que assistimos no chamado Ocidente» e citou uma afirmação do seu antecessor Bento XVI: «o que gera a violência não é a glorificação de Deus, mas o seu esquecimento». 5. A liberdade de expressão é um valor precioso das sociedades livres e democráticas. Mas tem limites, porque, como afirmou Bento XVI na sua viagem ao Líbano, «a liberdade humana é sempre uma liberdade compartilhada, que pode crescer apenas na partilha, na solidariedade, no viver juntos, com determinadas regras.»

Comissão Nacional Justiça e Paz