Debates sobre a família
por ANSELMO
BORGES04 outubro 2014
Começa amanhã, no Vaticano, prolongando-se
até ao próximo dia 19, a Assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos,
dedicada às questões da família. São 253 os participantes, incluindo 114
presidentes de conferências episcopais de todo o mundo, 13 chefes de Igrejas
Católicas Orientais, 25 presidentes dos dicastérios da Cúria Romana (uma
espécie de ministérios do governo central da Igreja), cardeais, bispos e padres
escolhidos pelo Papa, que também aprovou a escolha de 16 peritos e 38 ouvintes
(observadores), entre os quais 14 casais. Não se prevê nenhum documento
conclusivo final. De facto, novas directrizes pastorais no novo contexto da
família só deverão aparecer quando o Sínodo se reunir de novo em Outubro de
2015.
Ninguém duvidará da importância do tema da
família para as pessoas, para a educação, para a Igreja, para a sociedade.
Consciente disso, o Papa Francisco fez, de modo inédito, anteceder o Sínodo de
um inquérito a todos os católicos e católicas do mundo e não apenas aos bispos,
como era hábito, incidindo sobre as várias questões relacionadas com esta
temática, sem tabus: casamento à experiência, divorciados que voltam a
casar-se, uniões de facto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, relações
pré-matrimoniais, métodos anticonceptivos... Das respostas conclui-se, como aqui
mostrei em várias crónicas, enorme discrepância entre a doutrina oficial e a
prática dos católicos.
O Sínodo tem, pois, uma gigantesca tarefa
pela frente, mas muitos põem, com razão, reservas às suas possibilidades,
apresentando, por exemplo, o facto de a esmagadora maioria dos participantes
serem celibatários (bispos e padres), sem experiência real de vida familiar, e,
por outro lado, o de não se constatar verdadeiro pluralismo nos peritos
escolhidos.
Evidentemente, como acaba de declarar o
cardeal G. Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, não se pode
pretender "um cristianismo a preço de saldo, sem exigências na
conversão". Mas, por outro lado, como reflecte, por exemplo, o movimento
"Redes Cristianas", o Sínodo não pode ignorar, quando se considera o
modelo tradicional de família cristã, realidades familiares novas, sendo,
portanto, "necessária uma revisão profunda da doutrina, na qual participem
representantes da pluralidade de opções existentes na Igreja". Aliás, será
preciso ter em conta as diferenças culturais nos vários continentes. "Que
dirá o Sínodo às pessoas homossexuais, aos casais que convivem sem se casar ou
a quem, depois do divórcio, volta a casar-se pelo civil?"
O Sínodo não pode não ter em conta os avanços
da ciência com incidência neste domínio: por exemplo, o início da pessoa
humana, as técnicas de reprodução assistida, o controlo da natalidade com
métodos anticonceptivos proibidos pela Humanae Vitae. Espera-se uma palavra de
abertura para que os casais divorciados e recasados possam aceder à comunhão. A
formação terá de ser para a liberdade na responsabilidade, sem esquecer "o
primado da consciência" que "deve guiar as decisões dos cristãos e
cristãs adultos, muito especialmente na sua vida íntima e familiar".
Espera-se uma palavra forte "a favor da igualdade da mulher e contra a
violência de género". Decisiva será também a denúncia da situação
socioeconómica mundial que leva à pobreza, à falta de trabalho para os jovens,
à precariedade da vida familiar e até à extrema dificuldade em constituir um
projecto de família.
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Convidados para jantar, proibidos de
comer (3)
05/10/2014 - 00:56
Deus é sempre fiel, mas os seres humanos não
são Deus.
1. Um leitor destas crónicas lamenta a minha perda de
tempo com assuntos de moral familiar e, em particular, com a discutida
participação dos católicos divorciados recasados na comunhão eucarística. As
próprias expectativas de mudança, no próximo Sínodo dos Bispos, são o resultado
da preguiça católica em pensar pela própria cabeça. Andar a pedir ordens ao
clero é infantilismo cultivado. Cada católico deve ser tutor de si próprio. Eu
deveria limitar-me a recordar a célebre resposta de I. Kant (de 1784) à
pergunta: o que é oiluminismo?
A resposta é
conhecida: “O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele é
culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a
orientação de outrem. Tal menoridade é por
culpa própria, se a sua causa não reside na falta de entendimento,
mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação
de outrem.Sapere aude [1]!
Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento. Eis a palavra de
ordem do iluminismo”.
Recordou-me ainda que
o Vaticano II (1962-1965) foi o começo de uma clara escuta de alguns ecos da
modernidade, há muito esquecidos: a consciência como primeira instância moral
(GS 16); a declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae), destacando que a própria
objectividade da verdade moral “não se impõe de outro modo senão pela sua
própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte”
(n.1).
Inteiramente de
acordo, mas vamos por partes. Kant tem razão: a recusa preguiçosa de cada
pessoa se servir do próprio entendimento e andar sempre a recorrer a um
“director de consciência” é um exercício de infantilismo e, por outro lado, uma
atitude obscurantista de quem alimenta essa dependência. No entanto, seria
igualmente infantil não alimentar o próprio entendimento com as investigações
dos outros. O culto da auto-ignorância para ser dono das suas decisões éticas,
é uma parvoíce. Somos seres de relação em todas as dimensões. Não somos apenas
responsáveis diante da nossa consciência, mas também pela consciência que
podemos ter do nosso mundo e do mundo dos outros.
2. Louis Dingemans
(1922-2004), sociólogo e teólogo, era um dominicano belga que aprofundou, com
um grupo de trabalho interdisciplinar, a situação eclesial dos divorciados
recasados [2].
Para a validade de
uma celebração católica do casamento sempre foi exigido o consentimento livre dos
esposos e, como dizia Kierkegaard, o amor nunca é tão grande como quando se
assume como um dever recíproco. A multiplicidade de uniões infelizes e
divórcios, a fragilidade dos amores humanos ainda não conseguiram estancar o
sonho e o desejo de muitas pessoas se aliarem para construírem uma história
comum, que não esteja dependente dos humores de cada dia. Encontram-se até
pessoas “pouco praticantes” que pedem para se casar pela Igreja e não é apenas
pelas fotografias. Como diz L. Dingemans, parece que têm uma vaga percepção de
que o casamento, sendo uma loucura, precisa do Deus do Evangelho, protector dos
loucos, sentindo que todo o verdadeiro amor é de origem divina.
Muito ou pouco
praticantes, por culpa ou sem culpa de um ou de ambos, o facto é que existem
rupturas sem remédio. Surgem, depois, novas uniões. Pondo de lado a leviandade
e os caprichos de muitos casos, também existem divorciados recasados que nesses
processos complicados aprofundaram e redescobriram a sua fé, que desejam
alimentar.
Como já vimos em
artigos anteriores, não são católicos excomungados. Pelo contrário, são
convidados a participar na vida da Igreja e a frequentarem a Eucaristia. Mas
são proibidos de comungar: convidados para uma refeição e impedidos de comer. À
primeira não se entende esta incongruência e à segunda, ainda menos. Invoca-se
um estado permanente de violação da aliança matrimonial. Razão apresentada:
existe uma contradição objectiva de ordem simbólica, pois a aliança entre Deus
e a Humanidade, entre Cristo e a sua Igreja é actualizada pelo laço entre
marido e mulher. O autor citado mostra, de forma analítica, que este é um
argumento falacioso. Deus é sempre fiel, mas os seres humanos não são Deus.
Podem falhar e a misericórdia de Deus nunca falha.
3. É bom não esquecer
uma oração da missa do Domingo passado: Senhor,
que dais a maior prova do vosso poder quando perdoais e vos compadeceis,
derramai sobre nós a vossa graça.
O Papa Francisco, que
tem muita graça em receber a graça de Deus, resolveu, na audiência geral do passado
dia 10, propor que a Igreja, em todas as suas expressões, seja uma escola da misericórdia.
Não estávamos habituados. Era mais associada a um ministério com tribunais
lentos e sem piedade.
[1] Atreve-te a
pensar
[2] Cf. dossier Chrétians qui sont dévorcés et
remariés, Centre Dominicain de Froismont, Bélgica ; Louis
Dingemans, Mariage et
alliance. L’ambiguïté d’un symbole, Rev. Lumière et Vie, n 206
(1992), pg 25-38 ; Jesus
face au divorce, Racine|Fidélité, 2004
"Bispos vão ter de ouvir as novas
famílias"
por Miguel Marujo 04 outubro 2014
José Manuel Pereira de Almeida, médico e
padre, que está há 15 anos à frente da paróquia de Santa Isabel, em Lisboa, diz
que "todas as famílias têm coisas regulares e irregulares". E que a
Igreja terá de aprender como vivem.
Antes da entrevista começar, José Manuel
Pereira de Almeida, 61 anos, coloca dois livros na mesa e abre no seu iPad um
documento do arcebispo de Antuérpia Johan Bonny, que o pode ajudar durante a
conversa. Não vai precisar de olhar para uns e outro, mas percebe-se que, para
o pároco de Santa Isabel, no centro de Lisboa, o "Evangelho da
Família" de Walter Kasper ou o texto do prelado belga são importantes
referências na preparação da reunião extraordinária do Sínodo dos Bispos, que
se inicia este domingo em Roma. Isso e a experiência de quem está à frente de
uma paróquia desde 1999.
Este sínodo vai servir para alguma coisa?
Esperamos que sim. O sínodo é permanente
desde o Concílio Vaticano II e tem reuniões extraordinárias e reuniões ordinárias
e espera-se que as extraordinárias sejam mesmo extraordinárias. Esta prepara a
sessão do ano que vem sobre "a família num contexto da
evangelização". É um enfoque novo, não é para repetir doutrina da
[Exortação Apostólica] Familiaris Consortio. Já agora reafirmar algumas das
linhas seria importante. Mas é sobretudo para este enfoque novo da família e da
evangelização, a que o Papa Francisco tem dado um impulso particularmente
significativo, a partir da sua Exortação Apostólica Evangelii gaudium, de o sonho
missionário chegar a todos - às periferias, aos excluídos...
Há um ano, quando o Papa Francisco chamou os
católicos a responderem ao inquérito, sublinhou-se a novidade do Papa querer
saber o que pensam os fiéis sobre divórcio, contraceção ou o casamento
homossexual. Espera-se que os bispos os ouçam?
Suponho que sim, sobretudo na sua grande
maioria. Há certamente alguns setores [da Igreja] que se dirigirão a Roma para
dizer "se eles pensam isto, e pensam mal, a gente tem de lhes explicar
melhor a sã doutrina". Creio que não corresponde ao sentir maioritário dos
padres sinodais.
Há um discurso sobre estes divorciados
recasados, que também é alargado a homossexuais, que é o da atitude respeitosa,
não julgadora dessas pessoas...
Já não é mau, diria.
Mas não é julgadora quando essas pessoas vão
ficando à margem?
O acolhimento das pessoas - por exemplo, dos
homossexuais - tem de ser incondicional. O que importa é que não fiquem de
fora, não se sintam de fora, por causa de gestos nossos. Em concreto, era muito
importante que no sínodo estivessem discursos na primeira pessoa, de famílias
em recomposição, em dificuldade, de pessoas que vivem situações familiares que
não são as tais ditas regulares, para que esse ouvir possa ser feito.
Incluindo homossexuais.
Porque não? Os padres sinodais vão ter de ter
ouvidos para isso
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