Falar
claro, pois claro!
Falar
claro é uma condição geral de base. Assume-o o Papa Francisco na saudação que
dirigiu aos padres sinodais, no passado dia 6 de outubro, durante a primeira
congregação geral da III assembleia geral extraordinária do Sínodo dos Bispos.
Sim,
é uma condição de base em toda a relação interpessoal e no discurso público. Porém,
falar claro e frontal não é sinónimo de faltar ao respeito, ser insolente ou
brincar com coisas sérias. Mas é o contrário de mentir, dizer meia verdade, deixar
de dizer as coisas com receio de ser mal entendido, ferir o interlocutor,
pensar que não vale a pena, ter medo de represálias vir a sofrer o desemprego,
perder um cargo ou mostrar falso respeito ante quem julgamos respeitável.
Tanto
se degradam as relações familiares, grupais, sociais e profissionais com a
afronta como com a ocultação da verdade. Se a afronta continuada leva à
dissolução, a ocultação só adia os problemas. E quanto maior for o levantamento
destes, mais difícil se torna a sua resolução.
Ocultar
a verdade das situações, deixar de oferecer uma opinião em tempo necessário e
oportuno é tão pernicioso como o excesso e mesmo a afronta. Quantos chefes
engordam balofamente dentro do seu casulo, se degradam na sua gestão e cavam a
sua ruína com a plêiade de aduladores que pensam que fazem bem (ou zelam o seu
bem) com a ocultação da realidade! Isto acontece na empresa, na sociedade, no
grupo de amigos, na política, nos meios eclesiásticos. Tão demolidora se torna
a adulação como a intriga ou a conspiração. As três atitudes são inspiradas
pelo diabo (vd Gn 3,1-13; 4,8; Mt 4,1-10; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13;
Jo 18,5; Ap 12,4).
Mas
para falar claro, é necessário dispor de autoridade moral, que resulta do
trabalho dedicado, da competência e da paciência, bem como da magnanimidade.
Por outro lado, nas sociedades e na Igreja, o falar claro acontecerá se for
estimulada e praticada a colegialidade e a sinodalidade.
Num
órgão colegial, os seus membros não têm a função de dizer acriticamente ámen a
tudo. Antes, cada um deve oferecer o seu contributo franco e respeitoso,
disciplinado e generoso – oral ou escrito – e mesmo, quando oportuno, o
silêncio colaborante. A obediência terá lugar, in fine, para as decisões a que solidamente se chegou e após a sua
promulgação ou figura análoga, bem como em situação em que a urgência implique
a necessidade da não discussão. O colégio é a presença conjunta, física ou
virtual e a conjugação de ideias, opiniões e esforços – da parte daqueles que
são chamados à matéria ou à ação.
A
sinodalidade implica a disposição de caminhar em conjunto na corrida para a
meta, na procura da verdade (sínodos
é palavra grega derivada do prefixo sin,
com + odós, caminho). Tal implica que
surja quem puxe pelos outros e quem sugira a espera de quem tem dificuldades;
haja palavras de ordem e palavras de aceitação e aclamação; haja momentos de
pausa para reflexão, retemperação de forças e avaliação da caminhada; e haja
momentos de celebração como de discussão franca. A sinodalidade implica a sinaxe (no grego, sin, com + áxis, eixo),
ou seja, a reunião ou a rotação em torno de um eixo, que pode ser um líder, um
objetivo, um fim. Só que o objetivo pode ser mantido ou redefinido, o fim tem
de persistir e o líder pode ser substituído. Porém, enquanto estiver ao serviço
(o líder vê ao longe, indica o caminho, mas é um servidor que serve guiando),
ele vai à frente, no meio ou na retaguarda consoante a necessidade dos
caminhantes.
***
Porém,
o Papa Francisco dá um exemplo da magnanimidade sinodal. A par dos eleitos pelo
conselho pós-sinodal (o relator e o secretário geral), também ele eleito pelos
participantes no último sínodo, competia ao Pontífice designar os presidentes
delegados para as congregações gerais e para a coordenação dos trabalhos. No
entanto, ele solicitou ao próprio Conselho
pós-sinodal que propusesse alguns nomes, e nomeou aqueles que o Conselho lhe
propôs.
Francisco aproveita o ensejo par afazer uma necessária distinção
de cariz doutrinal. Enquanto refere que os padres sinodais são transmissores ou
porta-vozes das Igrejas particulares, reunidas a nível de Igrejas locais mediante
as Conferências Episcopais esclarece que “A Igreja universal e as Igrejas
particulares são de instituição divina; as Igrejas locais assim entendidas são
de instituição humana”. Sim, o Papa é o sucessor do apóstolo Pedro e os bispos
são os sucessores dos demais apóstolos – isto é de instituição divina. O sacro
colégio dos cardeais ou toda a organização central em Roma e diplomática com os
olhos de poder em todo o mundo ou a organização dos bispos em torno dos
arcebispos (ou patriarcas) metropolitas ou em conferências episcopais é instituição
humana, sujeita às limitações e suscetível de correção ou reforma.
No entanto, mesmo esta dimensão humana de organização é
importante. “Esta é a voz que transmitireis em sinodalidade. Trata-se
de uma grande responsabilidade: anunciar as realidades e as problemáticas das
Igrejas, para as ajudar a percorrer aquele caminho que é o Evangelho da
família.” – reconhece o Papa.
Ora, sempre, mas sobretudo quando se fala em representação da
coletividade, é importante falar claro. O Papa Francisco chega ao ponto de
suplicar: “Que ninguém diga: ‘Isto não se pode dizer; pensará de mim assim ou
assim...’. É necessário dizer tudo o que se sente com parrésia”.
E aduz um exemplo pertinente, não valendo como desculpa o “Sumus coram Pontifice”:
Depois do último Consistório (fevereiro de 2014), no qual se falou
sobre a família, um Cardeal escreveu-me dizendo: é uma lástima que alguns
Purpurados não tiveram a coragem de dizer certas coisas por respeito ao Papa,
talvez julgando que o Papa pensasse de outra maneira. Isto não está bem, isto
não é sinodalidade,
porque é necessário dizer tudo aquilo que, no Senhor, sentimos que devemos
dizer: sem hesitações, sem medo. E, ao mesmo tempo, é preciso ouvir com
humildade e aceitar de coração aberto aquilo que os irmãos dizem. A sinodalidade exerce-se com estas duas atitudes.
Que
sirva de exemplo a todos aqueles que se autoproclamam democratas, mas de quem a
prática da democracia anda tão afastada! Bateu-lhe dizendo:
respondes assim ao Pontífice? (Jo 18,22).
***
Entretanto,
antecipando a temática do sínodo que ia ser inaugurado na manhã do dia
seguinte, o seu discurso da vigília de oração, no dia 4 de outubro, constitui
uma realista e forte interpelação.
“É a hora em que de bom grado se regressa a casa para
se reunir à mesma mesa na consistência dos afetos, do bem feito e recebido, dos
encontros que abrasam o coração e o fazem crescer, vinho bom que antecipa, nos
dias do homem, a festa sem ocaso”.
Porém, algumas sombras, quase indeléveis, impendem agora sobre o mundo dos
homens:
“Mas é também a hora mais pesada para quem se vê cara
a cara com a própria solidão, no crepúsculo amargo de sonhos e projetos
desfeitos. Quantas pessoas arrastam os seus dias no beco sem saída da
resignação, do abandono, se não mesmo do rancor! Em quantas casas falta o vinho
da alegria e, consequentemente, o sabor – a própria sabedoria – da vida!”
O Papa não esquece os anseios de cada pessoa, mesmo no contexto de uma
cultura individualista ou até egoísta, que, entregue a si, teima no isolamento
e pode levar ao desânimo:
É significativo como permanece viva, em cada nascido
de mulher - mesmo na cultura individualista que perverte e torna efémeros os
laços – uma exigência essencial de estabilidade, duma porta aberta, de alguém
com quem tecer e partilhar a narração da vida, duma história a que se pertença.
A comunhão de vida assumida pelos esposos, a sua abertura ao dom da vida, a
defesa recíproca, o encontro e a memória das gerações, o acompanhamento
educativo, a transmissão da fé cristã aos filhos... Com tudo isto, a família
continua a ser escola incomparável de humanidade, contribuição indispensável
para uma sociedade justa e solidária (cf EG 66-68). E quanto mais
profundas são as suas raízes, tanto mais é possível singrar e chegar longe na
vida, sem se extraviar nem se sentir estrangeiro em terra alguma.
Perante esta situação humana, define as condições da abordagem sinodal:
Para individuar o que o Senhor pede hoje à sua Igreja,
devemos prestar ouvidos às pulsações deste tempo e sentir o ‘odor’ dos homens
de hoje, até ficar impregnados das suas alegrias e esperanças, das suas
tristezas e angústias (cf. GS 1). Então saberemos propor, com
credibilidade, o evangelho, a boa nova sobre a família.
Fundamenta no Evangelho a opção sólida por este dinamismo termo e
misericordioso:
Há, no Evangelho, uma força e ternura capazes de
vencer aquilo que cria infelicidade e violência. Sim, no Evangelho, há a
salvação que cumula as necessidades mais profundas do homem! Desta salvação,
obra da misericórdia de Deus e sua graça, somos, como Igreja, sinal e
instrumento, sacramento vivo e eficaz (EG 112). Se assim não fosse, o
nosso edifício não passaria dum castelo de cartas, e os pastores reduzir-se-iam
a clérigos de estado, em cujos lábios o povo procuraria em vão o frescor e o
‘perfume do Evangelho’ (Ibid. 39).
Assim, enuncia três dons fundamentais a solicitar ao Espírito Santo para
este sínodo: a escuta, a disponibilidade e a atitude de manter o olhar fixo em
Cristo.
Primeiro:
Pedimos, antes de mais nada, ao Espírito Santo, o dom
da escuta: escuta de Deus, até ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo,
até respirar nele a vontade a que Deus nos chama.
Segundo:
Suplicamos a disponibilidade para um confronto
sincero, aberto e fraterno, que nos leve a ocupar-nos, com responsabilidade
pastoral, das interrogações que esta mudança epocal traz consigo. Deixemos que
inundem o nosso coração, sem nunca perdermos a paz, mas com a serena confiança
de que o Senhor não deixará, a seu tempo, de reconduzir à unidade. Porventura
não nos fala a história da Igreja – como sabemos – de tantas situações análogas
que os nossos pais souberam superar com obstinada paciência e criatividade?
Terceiro:
Se verdadeiramente pretendemos verificar o nosso passo
no terreno dos desafios contemporâneos, a condição decisiva é manter o olhar
fixo em Jesus Cristo, deter-se na contemplação e adoração do seu rosto. Se
assumirmos o seu modo de pensar, viver e relacionar-se, não teremos dificuldade
em traduzir o trabalho sinodal em indicações e percursos para a pastoral da
pessoa e da família. Na verdade, todas as vezes que voltamos à fonte da
experiência cristã, abrem-se estradas novas e possibilidades inimagináveis.
Assim no-lo deixa intuir a indicação evangélica: ‘Fazei o que Ele vos disser’ (Jo 2,5).
São palavras que contêm o testamento espiritual de Maria, ‘amiga sempre
solícita para que não falte o vinho na nossa vida’ (EG 286).
E sintetiza, sob a égide de S. Francisco, o renovador da Igreja, a missão
dos padres sinodais:
As três coisas – a nossa escuta e o nosso confronto
sobre a família, amada com o olhar de Cristo – tornar-se-ão uma ocasião
providencial para renovar, a exemplo de S. Francisco, a Igreja e a sociedade.
Com a alegria do Evangelho, reencontraremos o passo duma Igreja reconciliada e
misericordiosa, pobre e amiga dos pobres; uma Igreja capaz de ‘vencer, pela
paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como
externas’ (LG 8).
É
o escol da Igreja a refletir, circundado por uma enorme retaguarda de oração e
de esperança, na busca, em aliança com o Espírito, da lucidez necessária para
responder aos desafios de hoje.
2014.10.10
– Louro de Carvalho
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