segunda-feira, 7 de abril de 2014

Um grande homem


Um grande homem
 
 
 
 
 

“Sinto com emoção que estou a chegar ao fim da minha peregrinação” (1). Foi com estas palavras que o Papa João Paulo II assinalou a sua chegada ao santuário mariano de Lourdes, no passado dia 14 de Agosto. Para evitar mal entendidos, os responsáveis da Santa Sé apressaram-se a explicar que o Papa se referia apenas à sua peregrinação a Lourdes, mas as palavras do Sumo Pontífice não deixaram de gerar alguma inquietação entre os peregrinos presentes, que as interpretaram como uma alusão à sua frágil saúde.

É, de facto, inegável que a saúde do Papa não é das melhores. João Paulo II tem oitenta e quatro anos, sofre de Parkinson, sobreviveu aos ferimentos de um atentado, a várias doenças e a numerosas operações cirúrgicas. Há muito que deixou de ser aquele “jovem” cardeal desportista, que passava horas a esquiar nas montanhas.

O académico britânico Timothy Garton Ash, que se define a si mesmo como um “liberal agnóstico”, escreveu o seguinte a respeito do Papa João Paulo II: “(...) Ainda se vislumbram lampejos da velha magia, à medida que a figura distante, sempre de branco, atrai toda uma multidão para si com um gesto característico, levantando suave mas repetidamente duas mãos completamente abertas. Depois fala para meio milhão de pessoas como se estivesse perante só uma. É a magia que vi na Polónia comunista, onde ele dissolveu o medo instalado por todas as divisões de Brejnev com um acenar daquela mão agora tremente, e continua a admoestar os governantes deste planeta, independentemente da sua cor política, sejam eles Castro ou Clinton. Por fim ainda oferece auxílio aos pobres, fracos, doentes e oprimidos de todo o mundo. Pode pensar-se, a partir deste hino de elogio inicial, que sou católico, ou mesmo um fã papal. Longe disso (...) como liberal agnóstico, ainda que enraízado num húmus rico de Cristianismo, a minha preocupação não é com a Igreja mas com o mundo, e quero afirmar que o Papa João Paulo II é simplesmente o maior líder mundial do nosso tempo”. E continua: “Ao longo destes vinte anos tive a oportunidade de falar com vários candidatos credíveis para o título de “grande homem” ou “grande mulher” –, Mikhail Gorbatchev, Helmut Kohl, Václav Havel, Lech Walesa, Margaret Tatcher –, mas ninguém se compara à combinação única de força concentrada, consistência intelectual, calor humano e simples bondade de Karol Woytila” (2).

Concordo com Timothy G. Ash. Para além do seu inegável papel na queda do comunismo, creio que a inteligência, coerência, determinação e a simples bondade do Papa fazem dele o maior líder do nosso tempo. Além disso, é um homem extremamente corajoso, que luta por tudo aquilo em que acredita, sem olhar a modas ou ao “politicamente correcto”. Criticou o comunismo, mas também não poupa o capitalismo neo-liberal. Acima de tudo, o Papa defende a pessoa humana e a dignidade a que todos temos direito. Para João Paulo II, uma criança de uma favela sul-americana não é menos importante que um rico homem de negócios nova-iorquino. Todos têm direito a uma vida digna. E isto não por razões ideológicas, mas teológicas: para o Papa, a Doutrina Social da Igreja não é uma terceira via entre o capitalismo liberal e o colectivismo marxista. Como ele próprio explica na encíclica “Solicitudo Rei Socialis”, a Doutrina Social da Igreja não é ideologia, mas teologia.

Por outro lado, as suas posições em matéria de moral sexual são consideradas antiquadas por largos sectores da sociedade. Mas estes não compreendem que a Igreja não pode mudar aquilo que sempre defendeu, por muito que isso agradasse. Dois mil anos depois, a Igreja permanece como depositária da missão que Cristo lhe confiou. Ora sendo eternos os ensinamentos de Jesus, são também a Verdade na qual os católicos acreditam. Claro que, aos olhos dos não crentes, tudo isto parecerá um anacronismo reaccionário, pois não compreendem que a Igreja não pode andar ao sabor de modas. E porque, no fundo, encontram na satisfação dos prazeres terrenos a razão de ser da existência humana, ao passo que os católicos pensam na salvação da alma e na vida eterna.

A coerência do Papa em questões de costumes encontra um paralelo na sua determinação contra todas as formas de guerra. Já no tempo da ocupação alemã da Polónia - cujos horrores sofreu na pele - Karol Woytila se opunha à luta armada e a todas as formas de violência. A um amigo que advogava o uso da força contra a ocupação nazi, o então jovem seminarista respondeu: “A oração é a única arma que resulta”.

Todavia, existem aspectos menos consensuais do seu pontificado, mesmo entre os católicos. Há quem o acuse de ter restaurado o “papado monárquico”, e de sufocar o debate dentro da Igreja. Além disso, têm sido tecidas duras críticas às posições do Vaticano a respeito das mulheres e do seu papel na Igreja e na Sociedade. Mas não deixa de ser curioso que as críticas mais ferozes venham precisamente de pessoas e grupos que não entendem o cristianismo e a igreja. Por exemplo, muitas das pessoas que defendem na praça pública a ordenação das mulheres e o fim do celibato dos padres, são assumidamente ateias ou não religiosas. Não compreendem que estas são questões que se encontram fora do seu entendimento. Porque quem não tem fé, não consegue compreender a forma como o Espírito Santo guia e inspira a Igreja: “Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo” (Mt 28, 20).

Pessoalmente, e quanto à ordenação sacerdotal das mulheres e ao celibato obrigatório, creio que se essa for a vontade de Deus, então o Espírito Santo há de guiar a Igreja nesse sentido, mais tarde ou mais cedo. Mas de qualquer modo, estas são questões que dizem respeito apenas aos católicos, e não áqueles que não compreendem a missão da Igreja.

Quanto a João Paulo II, creio que ficará para a história como um grande líder e um homem extremamente bom e compassivo.

                                                                                                      Filipe Alves

(1) -  Ver jornal “Público”, pág. 24, edição de 15 de Agosto de 2004

(2) -  Ver “Não tenhais medo”, in “História do Presente”, pág. 341, colectânea de ensaios de T. G. Ash - Editorial Notícias, 2001

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