Um grande homem
“Sinto com emoção que estou a chegar ao fim
da minha peregrinação” (1). Foi com estas palavras que o Papa João Paulo II assinalou a sua
chegada ao santuário mariano de Lourdes, no passado dia 14 de Agosto. Para
evitar mal entendidos, os responsáveis da Santa Sé apressaram-se a explicar que
o Papa se referia apenas à sua peregrinação a Lourdes, mas as palavras do Sumo
Pontífice não deixaram de gerar alguma inquietação entre os peregrinos
presentes, que as interpretaram como uma alusão à sua frágil saúde.
É, de facto, inegável que a saúde do Papa não
é das melhores. João Paulo II tem oitenta e quatro anos, sofre de Parkinson,
sobreviveu aos ferimentos de um atentado, a várias doenças e a numerosas
operações cirúrgicas. Há muito que deixou de ser aquele “jovem” cardeal
desportista, que passava horas a esquiar nas montanhas.
O académico britânico Timothy Garton Ash, que
se define a si mesmo como um “liberal agnóstico”, escreveu o seguinte a
respeito do Papa João Paulo II: “(...) Ainda se vislumbram lampejos da velha
magia, à medida que a figura distante, sempre de branco, atrai toda uma
multidão para si com um gesto característico, levantando suave mas
repetidamente duas mãos completamente abertas. Depois fala para meio milhão de
pessoas como se estivesse perante só uma. É a magia que vi na Polónia
comunista, onde ele dissolveu o medo instalado por todas as divisões de Brejnev
com um acenar daquela mão agora tremente, e continua a admoestar os governantes
deste planeta, independentemente da sua cor política, sejam eles Castro ou
Clinton. Por fim ainda oferece auxílio aos pobres, fracos, doentes e oprimidos
de todo o mundo. Pode pensar-se, a partir deste hino de elogio inicial, que sou
católico, ou mesmo um fã papal. Longe disso (...) como liberal agnóstico, ainda
que enraízado num húmus rico de Cristianismo, a minha preocupação não é com a
Igreja mas com o mundo, e quero afirmar que o Papa João Paulo II é simplesmente
o maior líder mundial do nosso tempo”. E continua: “Ao longo destes vinte anos
tive a oportunidade de falar com vários candidatos credíveis para o título de
“grande homem” ou “grande mulher” –, Mikhail Gorbatchev, Helmut Kohl, Václav
Havel, Lech Walesa, Margaret Tatcher –, mas ninguém se compara à combinação
única de força concentrada, consistência intelectual, calor humano e simples
bondade de Karol Woytila” (2).
Concordo com Timothy G. Ash. Para além do seu
inegável papel na queda do comunismo, creio que a inteligência, coerência,
determinação e a simples bondade do Papa fazem dele o maior líder do nosso
tempo. Além disso, é um homem extremamente corajoso, que luta por tudo aquilo
em que acredita, sem olhar a modas ou ao “politicamente correcto”. Criticou o
comunismo, mas também não poupa o capitalismo neo-liberal. Acima de tudo, o Papa
defende a pessoa humana e a dignidade a que todos temos direito. Para João
Paulo II, uma criança de uma favela sul-americana não é menos importante que um
rico homem de negócios nova-iorquino. Todos têm direito a uma vida digna. E
isto não por razões ideológicas, mas teológicas: para o Papa, a Doutrina Social
da Igreja não é uma terceira via entre o capitalismo liberal e o colectivismo
marxista. Como ele próprio explica na encíclica “Solicitudo Rei Socialis”, a
Doutrina Social da Igreja não é ideologia, mas teologia.
Por outro lado, as suas posições em matéria
de moral sexual são consideradas antiquadas por largos sectores da sociedade.
Mas estes não compreendem que a Igreja não pode mudar aquilo que sempre
defendeu, por muito que isso agradasse. Dois mil anos depois, a Igreja
permanece como depositária da missão que Cristo lhe confiou. Ora sendo eternos
os ensinamentos de Jesus, são também a Verdade na qual os católicos acreditam.
Claro que, aos olhos dos não crentes, tudo isto parecerá um anacronismo reaccionário,
pois não compreendem que a Igreja não pode andar ao sabor de modas. E porque,
no fundo, encontram na satisfação dos prazeres terrenos a razão de ser da
existência humana, ao passo que os católicos pensam na salvação da alma e na
vida eterna.
A coerência do Papa em questões de costumes
encontra um paralelo na sua determinação contra todas as formas de guerra. Já
no tempo da ocupação alemã da Polónia - cujos horrores sofreu na pele - Karol
Woytila se opunha à luta armada e a todas as formas de violência. A um amigo
que advogava o uso da força contra a ocupação nazi, o então jovem seminarista
respondeu: “A oração é a única arma que resulta”.
Todavia, existem aspectos menos consensuais
do seu pontificado, mesmo entre os católicos. Há quem o acuse de ter restaurado
o “papado monárquico”, e de sufocar o debate dentro da Igreja. Além disso, têm
sido tecidas duras críticas às posições do Vaticano a respeito das mulheres e
do seu papel na Igreja e na Sociedade. Mas não deixa de ser curioso que as
críticas mais ferozes venham precisamente de pessoas e grupos que não entendem
o cristianismo e a igreja. Por exemplo, muitas das pessoas que defendem na
praça pública a ordenação das mulheres e o fim do celibato dos padres, são
assumidamente ateias ou não religiosas. Não compreendem que estas são questões
que se encontram fora do seu entendimento. Porque quem não tem fé, não consegue
compreender a forma como o Espírito Santo guia e inspira a Igreja: “Eu estarei
sempre convosco, até ao fim do mundo” (Mt 28, 20).
Pessoalmente,
e quanto à ordenação sacerdotal das mulheres e ao celibato obrigatório, creio
que se essa for a vontade de Deus, então o Espírito Santo há de guiar a Igreja
nesse sentido, mais tarde ou mais cedo. Mas de qualquer modo, estas são
questões que dizem respeito apenas aos católicos, e não áqueles que não
compreendem a missão da Igreja.
Quanto
a João Paulo II, creio que ficará para a história como um grande líder e um
homem extremamente bom e compassivo.
Filipe
Alves
(1) - Ver
jornal “Público”, pág. 24, edição de 15 de Agosto de 2004
(2) - Ver “Não tenhais medo”, in “História do
Presente”, pág. 341, colectânea de ensaios de T. G. Ash - Editorial Notícias,
2001
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