A
avó Europa de Francisco
por Anselmo Borges
no DN 06.12.2014
A Europa mítica é uma
princesa de Tiro. Como que a lembrar que é a Eurásia, a Europa ecuménica, de
fronteiras imprecisas. Zeus disfarçado de touro aproximou-se da bela princesa
fenícia, deixando que o acariciasse e trepasse para o seu dorso. Entrou então
pelo mar, dirigindo Eros o casal para Creta, onde fizeram amor. Foi a esta
Europa, ao mesmo tempo divina e terrena, e agora em crise, envelhecida e sem
confiança, que o Papa Francisco se dirigiu na semana passada com dois
discursos: ao Parlamento Europeu e ao Conselho da Europa. 1. Francisco quis
deixar "uma mensagem de esperança e de alento" a uma Europa que, num
mundo cada vez mais global, é cada vez menos "eurocêntrica" e dá a
impressão de "cansaço e envelhecimento", a ponto de "os grandes
ideais que a inspiraram parecerem ter perdido força de atracção".
No centro do ambicioso
projecto europeu tem de estar o homem, "não tanto como cidadão ou sujeito
económico", mas como "pessoa dotada de uma dignidade
transcendente". A promoção desta dignidade significa reconhecer que a pessoa
possui "direitos inalienáveis". Mas o homem não é uma "mó-
nada", é um ser em relação, de tal modo que direitos e deveres de cada um
estão em conexão com os dos outros e com o bem comum.
Denunciou a "doença
da solidão", que atinge velhos, pobres, imigrantes, jovens sem
referências, advertindo que "o ser humano corre o risco de ser reduzido a
uma mera engrenagem de um mecanismo que o trata como um simples bem de consumo
para ser utilizado". Este equívoco surge quando prevalece "a absolutização
da técnica", que acaba por causar "uma confusão entre os fins e os
meios", e é o resultado da "cultura do descarte", do
"consumismo exasperado", da "globalização da indiferença".
No famoso fresco de
Rafael, que se encontra no Vaticano e representa a Escola de Atenas, no qual
Platão aponta para o alto e Aristóteles estende a mão para diante e para o
chão, vê "uma imagem que descreve bem a Europa na sua história, feita de
um permanente encontro entre o céu e a terra, onde o céu indica a abertura ao
transcendente, que desde sempre caracterizou o homem europeu, e a terra
representa a sua capacidade prática e concreta de enfrentar as situações e os
problemas".
Entre os problemas,
lembrou a importância fundamental da família, "as numerosas injustiças e
perseguições que sofrem as minorias religiosas e particularmente cristãs",
"é hora de favorecer as políticas de emprego e voltar a dar-lhe
dignidade", a questão migratória: "não se pode tolerar que o
Mediterrâneo se torne um grande cemitério", a ecologia: devemos ser
"guardiões" e "não donos" da natureza.
"Chegou a hora de
construir juntos a Europa que não gire à volta da economia mas da sacralidade
da pessoa humana, dos valores inalienáveis", que abrace com valentia o seu
passado, com o seu "património cristão", e olhe "com confiança o
futuro", vivendo "o presente com esperança", abandonando "a
ideia de uma Europa atemorizada". Para promover "uma Europa
protagonista, transmissora de ciência, arte, música, valores humanos e também
de fé. A Europa que contempla o céu e persegue ideais, que caminha sobre a
terra segura e firme, precioso ponto de referência para toda a
humanidade".
2. 0 que Francisco pensa
de verdade sobre a Europa disse-o, em Outubro, ao Conselho das Conferências
Episcopais da Europa, ao abandonar o discurso oficial e falar ex corde.
"Que se passa hoje
na Europa? Continua a ser a nossa mãe Europa ou é a avó Europa? É ainda
fecunda? É estéril? Por outro lado, esta Europa cometeu algum pecado. Temos de
dizê-lo com amor: não reconheceu uma das suas raízes." Por isso, já não se
sente cristã "ou sente-se cristã um pouco às escondidas, mas não quer
reconhecer esta raiz europeia".
A Europa "está a ser
invadida". "Será a segunda invasão dos bárbaros, não sei. Agora,
sente esta 'invasão' entre aspas, de gente que vem à procura de trabalho,
liberdade e uma vida melhor."
"A Europa está
ferida." E fala da crise e do desemprego, sobretudo dos jovens. "A
Europa descartou as crianças. De modo um pouco triunfal. Recordo que quando era
estudante num país as clínicas que faziam abortos depois mandavam o resultado
para fábricas de cosméticos. A beleza da maquilhagem feita com o sangue dos
inocentes."
A Europa está cheia de
velhos. E "cansada de desorientação". "Eu não quero ser
pessimista, mas digamos a verdade: depois da comida, da roupa e da saúde, quais
são os gastos mais importantes? A cosmética e os animais de estimação. Não têm
filhos, mas afecto ao gatinho, ao cãozinho. É este o segundo gasto depois dos
três principais. O terceiro é toda a indústria para favorecer o prazer sexual.
Os nossos jovens sentem isto, vêem isto, vivem isto."
Mas não é o fim, pois a
Europa "tem muitos recursos para andar para diante. E o recurso maior é a
pessoa de Jesus". No meio das feridas, esta é "a nossa missão: pregar
Jesus Cristo, sem vergonha".
Por decisão pessoal, o autor do texto
não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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