quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Poderá um rico salvar-se?


Poderá um rico salvar-se?

 

A questão levanta-se a partir do texto de Mateus sobre o jovem rico a quem o Mestre lançara o desafio de que, se queria ser perfeito, que fosse, vendesse tudo o que possuía, desse o dinheiro aos pobres – ganharia um tesouro nos Céus – que voltasse e que O seguisse (cf Mt 19,16-26; Mc 10,17-27; Lc 18,18-27).

Perante a retirada do jovem contristado, que possuía muitos bens, Jesus exclama perante os discípulos: “Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos Céus. Repito-vos: é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus” (Mt 19,23-24; Mc 10,23; Lc 18,22). À estupefação dos discípulos e à sua interrogação sobre quem poderia salvar-se, Cristo assegura: “Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível” (Mt 19,26; Mc 10,27; Lc 18,27).

Por outro lado, Lucas 6, 20.24-25 enuncia as bem-aventuranças de modo diferente de Mateus. Enquanto este põe na boca do Mestre a primeira bem-aventurança como “bem-aventurados os pobres em espírito, por que deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3), Lucas escreveu, “felizes sois vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus” (Lc 6,20). E, na perícopa das imprecações, o evangelista transcreve dos lábios de Cristo “Mas ai de vós, os ricos, porque já recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome!” (6, 24-25).

Também, quando envia em missão os discípulos, impõe-lhes o despojamento dos bens, como que se eles fossem um peso supérfluo e um estorvo e porque também receberam tudo de graça. Leia-se, a propósito, em Mateus: “Recebestes de graça, dai de graça. Não possuais ouro nem prata nem cobre, em vossos cintos; nem alforge, para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador merece o seu sustento.” (Mt 10,8-9). Mas tal despojamento implica que eles, na sua pobreza, hajam alguns direitos, já que o salário do trabalhador é um direito e um reconhecimento do mérito.

Marcos confirma a imposição de os discípulos nada levarem consigo, a não ser um cajado (cremos que seja como arrimo na caminhada e não para bater em alguém). E o Mestre recomenda que, em qualquer casa em que entrassem, permanecessem nela até partirem daquela terra (cf Mc 6,8.10). É também o reconhecimento de que ao apostolado há de corresponder a recompensa mínima para possibilitar a sobrevivência do apóstolo e a do trabalho apostólico.

Por seu turno, Lucas (cf. Lc 10,1-11) reitera a imposição do despojamento já referenciado, recomendando a não perda de tempo com saudação a quem quer que seja pelo caminho, porque era preciso que fossem a todas as cidades e lugares aonde o Mestre havia de ir. Mais: alertou-os para os perigos da missão – “envio-vos como cordeiros para o meio de lobos” (Lc 10,3) – e sugere-lhes a reivindicação do sustento: Ficai nessa casa, comendo e bebendo do que lá houver, pois o trabalhador merece o seu salário. Não andeis de casa em casa. Em qualquer cidade em que entrardes e vos receberem, comei do que vos for servido…” (Lc 10,7-8).

É certo que o abandono da riqueza, no caso do jovem rico, entende-se como condição de vontade de perfeição (se queres ser perfeito…), já que o jovem começou por interpelar o Mestre sobre o que era preciso para alcançar a vida eterna (supostamente, a salvação) e Ele indicou a observância dos mandamentos – o que o jovem confessou vir a cumprir tudo isso desde há muito tempo (cf Mt 19,20; Mc 10,20; Lc 18,21). Já no caso da missão dos discípulos, o despojamento poderia entender-se como condição de disponibilidade para o trabalho apostólico, colocação de parte do que fosse supérfluo ou estorvante e como estatuto de quem prepara a ida do Messias (“enviou-os a todas as cidade e lugares aonde Ele devia ir” – Lc 10,1) e segue de perto o Senhor (“Olha que nós deixámos tudo e seguimos-Te”, disse Pedro – Mt 19,27). Porém, quer as bem-aventuranças de Lucas quer as imprecações ou invectivas como as referidas, apontam o perigo das riquezas para todos relativamente à Salvação. E quando o Rabi se lamenta de como é difícil um rico salvar-se (cf Mt 19,23), parece estar a abarcar o universo de todos e não apenas os que almejam a perfeição.

Mateus, que assume por inteiro as palavras do Senhor, abre, no âmbito das bem-aventuranças, um caminho, “Felizes os pobres em espírito” (ou os que o são no seu íntimo). Alguns veem na palavra assumida por Mateus a condenação da riqueza como restrita à riqueza em espírito – a avareza, a onzena (usura), o espezinhamento do pobre e a exploração aliadas à abundância de bens. Talvez se deva antes, em qualquer dos evangelhos sinóticos, entrever a consagração da pobreza como atitude, que pode passar pela disponibilidade do supérfluo (o que é muito pouco), levar à partilha, sobretudo com quem não tem, de modo que ninguém tenha necessidade (o que é muito bom), e chegar ao despojamento total em favor os pobres, exigido pela vida de perfeição, de seguimento do Senhor e de trabalho apostólico (excelente), contudo com abertura a receber a justa recompensa da parte dos destinatários da evangelização ou de quem for com eles solidário.  

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Todavia, a Sagrada Escritura assinala às riquezas o seu caráter efémero e de perigo.

O caráter efémero das riquezas vem apontado no Antigo Testamento, logo no salmo 39 (38). Falando do homem, o salmista exclama: “Ele passa como simples sombra! E em vão se agita: amontoa riquezas e não sabe para quem ficam.” (Sl 39,7). A riqueza é tão fugaz como o próprio homem. Ainda que o gira, aumente e domine, enquanto vivo, não consegue garantir a subsistência do seu património, se o alienar ou se o deixar em herança ou em testamento.

O livro do Eclesiastes também se lhe refere, embora de forma indireta:

Ilusão das ilusões: tudo é ilu­­são” (Ecl 1,2). “A vista não se sacia com o que vê, nem o ouvido se contenta com o que ouve” (Ecl 1,9).

Aquele que ama o dinheiro nunca se saciará do dinheiro, e aquele que ama a ri­que­za, a riqueza não virá ao seu en­con­tro. (…) Onde abundam os bens, abundam os que os devoram. E que vantagem tem o dono dos bens além de vê-los com os seus olhos? (…) A abundância do rico não o deixa dormir descansado. Vi outra dolorosa miséria de­bai­xo do Sol: a riqueza entesourada para des­graça do seu dono. Perdem-se essas riquezas num mau negócio, e se tiver um filho, este fica sem nada nas mãos. (Ecl 5,9-13).

 

O avaro detentor do dinheiro é insaciável e sujeita-se a que lhe devorem toda a riqueza. Não terá um sono descansado e a riqueza entesourada pode ser a desgraça do dono: pode perdê-la em mau negócio e o herdeiro pode ficar sem nada. Assim, de que valerá viver amontoando sem ponderar outros valores e outros horizontes?

Por sua vez, o Novo Testamento, sobretudo nas cartas – 1.ª aos Coríntios, 1.ª a Timóteo e na de Tiago – assegura a índole passageira das riquezas, tal como a do tempo:  

“O tempo é breve. Doravante (…) os que compram (vivam) como se não comprassem, os que usam deste mundo, como se não o usufruíssem plenamente. Porque este mundo de aparências está a terminar. (1Co 7,29-31). Nada trouxemos ao mundo e nada dele levaremos. Os que querem enriquecer caem na tentação, na armadilha e em múltiplos desejos insensatos e nocivos que precipitam os homens na ruína e perdição, porque a raiz de todos os males é a ganância do dinheiro. Arrastados por ele, muitos se desviaram da fé e se enredaram em muitas aflições.” (1Tm 6,7.9-10). “Com efeito, ao despontar o Sol com ardor, a erva seca e a sua flor cai, perdendo toda a beleza; assim murchará também o rico em seus empreendimentos” (Tg 1,11).

 

Uma certeza nos deixa o Novo Testamento: nada levaremos connosco. Porém, a ganância leva à concupiscência, à ruína, à perdição, ao sofrimento e ao desvio da fé. Por outro lado, a riqueza murcha como a erva e a flor. Por isso, é conveniente que não nos agarremos a ela.

Em relação à periculosidade, conexa com a efemeridade, já está dito que as riquezas podem levar o homem ao desvio da fé e à ruína. No entanto, os textos bíblicos abundam, como se verá a seguir:

“Mais vale o pouco com o temor do Senhor que um grande tesouro com a inquietação. Mais vale um prato de legumes com amizade do que um vitelo gordo com ódio.” (Pr 15,16-17). Fazem-se festins para haver ale­­­­gria; o vinho alegra a vida, e o di­nheiro serve para tudo.” (Ecl 10,19). “Ninguém pode servir a dois senhores: ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.” (Mt 6,24). “Aquele que recebeu a semente entre espinhos é o que ouve a palavra, mas os cuidados deste mundo e a sedução da riqueza sufocam a palavra que, por isso, não produz fruto.” (Mt 13,22). “Quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que têm riquezas.” (Mc 10,23). “Deus, porém, disse-lhe (ao homem que acumulou riquezas e queria construir celeiros ainda maiores): ‘Insensato! Nesta mesma noite, vai ser reclamada a tua vida; e o que acumulaste para quem será?’ Assim acontecerá ao que amontoa para si, e não é rico em relação a Deus.” (Lc 12, 20-21).  Arrastados por ele (dinheiro), muitos se desviaram da fé e se enredaram em muitas aflições.” (1Tm 6,10).

 

Para lá do que foi refletido antes sobre a riqueza e o rico nos evangelhos sinóticos, aqui ressalta a insensatez de quem põe a sua confiança nas riquezas e nas suas consequências, distraindo-se da vida eterna e do caminho da fé que a ela conduz, começando por não fazer caso da Palavra de Deus. E os textos apontam o caminho: ser rico aos olhos de Deus. Demais quem não se lembra da parábola do rico avarento e do pobre Lázaro (cf Lc 18,19-31)? O rico não se apercebeu a tempo de que do lado de lá já não havia hipótese de retoma do caminho da felicidade eterna!

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Perante o exposto, são de ter em conta algumas mensagens, sobretudo no quadro dos parâmetros neotestamentários. A título de exemplo, citamos uma passagem das epístolas católicas e outra das cartas pastorais de Paulo, sem esquecer que era rico Lázaro, o amigo que Jesus ressuscitou (Jo 11,1-44). Porém, ele e as irmãs puseram toda a riqueza ao serviço da causa de Cristo.

Assim, o apóstolo João deixa uma forte interpelação:    

“Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, se lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele? Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade.” (1Jo 3,17-18).

 

E Paulo deixa as seguintes recomendações e conselhos aos ricos:

“Aos ricos deste mundo recomenda que não sejam orgulhosos, nem ponham a sua esperança na riqueza incerta, mas em Deus que nos dá tudo com abundância para nosso usufruto; que pratiquem o bem, se enriqueçam de boas obras, sejam generosos, capazes de partilhar. Deste modo, acumularão um bom tesouro para o futuro, a fim de conquistarem a verdadeira vida.” (1Tm 6,17-19).

 

Ora, tal interpelação e tais recomendações podem fazer o caminho para a pobreza em espírito de que fala Mateus, que pode muito bem consistir nos exemplos expressos no Livro dos Atos dos Apóstolos e nas cartas de Paulo.

 Nos atos:

“… possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um (At 2,44-45). Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum. Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme a necessidade que tivesse. (At 4,32.34-35).

 

Nas cartas de Paulo, as igrejas, geralmente, recebiam o dinheiro de contribuições voluntárias dos membros e o apóstolo Paulo ensinava que os cristãos deveriam dar voluntariamente e com alegria:

Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que não se as façam coletas só quando eu for.” (1Co 16;1-2). "Cada um contribua segundo o que tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria." (2Co 9,7).

 

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Entretanto, a leitura do romance histórico de Bodie e Brock Thoene, Take this Cup – traduzido para Português por Dina Antunes, sob o título A Última Ceia de Jesus (eu preferia a transliteração do título original para “Toma este cálice”), editado pelo Clube do Autor – dá-nos mais uma pista para ultrapassar a dificuldade de o rico se salvar e garantir que “a Deus tudo é possível”.

O protagonista do romance e narrador autodiegético, Nemi ou Neemias, o copeiro-mor que havia de entregar a taça de José do Egito ao Messias, em Jerusalém, refere que Jesus, perante os discípulos, comentou com tristeza a recusa do jovem a quem Ele desafiara a segui-Lo, dizendo que era mais fácil passar pelo fundo de uma agulha uma “corda” grossa (klav-la, em hebraico) que um rico entrar no reino dos Céus. Só que alguns escutaram pela referida palavra hebraica a parónima gam-la, que significa camelo.

Embora as palavras que significam “corda” e “camelo” tenham sons semelhantes, segundo Nemi, Jesus terá mesmo pronunciado a palavra que significa corda. É verdade que algumas edições da Bíblia, em Português, traduziam aquela palavra por “calabre”, a tal corda grossa de navio. Não podemos esquecer que, na Terra de Jesus, além dos pastores, abundavam os pescadores, os agricultores e também os viandantes. Mas não sei se os discípulos, que estavam habituados com barcos e unidades de rebanho, eram peritos a lidar com camelos.

Ora Nemi, mocinho pastor e filho de uma fiandeira, conta que, quando era mais pequeno, vira muitas vezes a mãe tecer a corda para colocar (klav-la) um badalo dependurado em volta do pescoço dum carneiro. A corda começava a ganhar forma a partir de um simples fio por entre os dedos da mãe de Nemi. Então, se da corda feita, por mais grossa que fosse, se retirasse toda a fibra em excesso, restaria apenas um fio. Diz ele que “o coração de uma corda consiste num único fio”. Afinal, seria difícil, mas possível passar esse fio central pelo buraco da agulha. E a comparação aduzida por Jesus fazia todo o sentido (cf op cit pgs 289-290).

Então, com Nemi, podemos afirmar que o Mestre estava a colocar ante os olhos dos que O ouviam um caminho difícil, mas possível. Se o homem, como dizem alguns dos textos citados acima e a experiência de vida o atesta, nasce nu e sem nada, e nada leva quando partir desta vida, importa que reduza ao máximo a corda grossa dos bens, em favor de quem não tem e/ou ao serviço das grandes causas e apure o fio de fé, levantado em esperança aos Céus, para atravessar sem qualquer receio os portões da eternidade, confiado na misericórdia e nos atos.

Mas não vale aliar o capitalismo desenfreado (de pessoa singular, de grupo económico e/ou financeiro ou do Estado) à pobreza em espírito de que fala o Senhor em Mateus. Isso é o que em linguagem desportiva se chama “batota” e, em termos relacionais, será a fraude.

Em termos da pós-modernidade, o caminho é o da rendibilização dos recursos, da cooperação formativa, da promoção da justiça distributiva e social (mas acorrer voluntariosamente às situações de emergência que não possam esperar), da atitude permanente de solidariedade. E, se a este caminho insuflarmos a caridade como dom de Deus em postura de doação pelo semelhante, estaremos no rumo certo. Difícil? Mas possível e em igualdade de oportunidades!

2014.12.14

Louro de Carvalho

 

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