segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

E quando comungar é perigoso para a saúde?


E quando comungar é perigoso para a saúde?


06 Nov, 2015 - 07:22 • Ângela Roque , Ana Lisboa , Isabel Pacheco

Ângela Roque - Renascença
Vim para a Renascença em 1988 para frequentar um curso de formação de jornalismo. Sou jornalista do grupo R/com desde Janeiro de 1989. Acompanhei a área de ...


É um problema desconhecido para muitos, mas que é real: comungar pode ser perigoso para os doentes celíacos ou com intolerância ao glúten, porque as hóstias normais são feitas de farinha de trigo. Em Braga, são fabricadas hóstias sem glúten, que seguem para todo o país e para várias partes do mundo.



Beatriz Lisboa tem 19 anos e quer ser bailarina. Sofre de alergias desde criança, mas só há três anos e meio é que descobriu que não podia comer pão comum, massas ou bolos. Não é doente celíaca, mas tem uma intolerância grave ao glúten, um composto presente no trigo, centeio, cevada e aveia.

Habituada a ler os rótulos dos alimentos e a questionar-se sobre tudo o que ingere, deu consigo a interrogar-se sobre de que seriam feitas as hóstias, quando se estava a preparar para a primeira comunhão, que só fez o ano passado, com 18 anos. Descobriu que seria um problema, mas também que já havia solução: “Foi o sacerdote que me preparou, que me ofereceu um primeiro saco de hóstias sem glúten”, que agora transporta numa caixinha sempre que quer comungar.

Admite que “a logística, às vezes, é um bocadinho complicada”, mas desdramatiza: “Quando faço missa diária, normalmente, não comungo. Para a missa dominical, depende do sítio onde vou”.

Na Capela do Rato, explica, “há uma senhora que é celíaca e que se disponibilizou a dar as hóstias sem glúten a quem não pode comungar uma hóstia normal”. Quando se desloca a outras paróquias, leva a sua caixa e fala com algum responsável antes da missa: “Digo que tenho esta intolerância, que a minha hóstia tem de ser diferente. Normalmente, as pessoas estranham um bocadinho, porque é um pedido que não é comum, mas aceitam. Nunca tive problemas.”

Beatriz tirou a “prova dos 9” à sua alergia quando, um dia, foi à missa, sem planeamento prévio. Não tinha consigo a caixinha, mas queria muito comungar e arriscou. “Correu muito mal”, diz, lembrando a reacção alérgica que teve. Mas garante que a fé a tem ajudado a superar este obstáculo na sua vida: “Foi, sem dúvida, a descoberta de Deus que me ajudou a suportar este problema, que é muito físico. Porque isto condiciona muito a nossa vida, as pessoas nem imaginam. A concentração é completamente diferente, a nossa resistência em termos desportivos também. Eu sou bailarina e é complicado. E, muitas vezes, doloroso.”

Beatriz acrescenta: “Todos os problemas têm solução e é preciso relativizar. Isto é dramático, mas há coisas muito piores e, afinal, até há solução."

A experiência do padre Robson

O padre Robson Cruz teve vários casos de paroquianos com intolerância ao glúten, na igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Alto do Lumiar, a sua anterior paróquia. “Tinha duas famílias onde havia casos de pessoas celíacas: numa família, era a avó, noutra família, era o pai e duas filhas”, explica.

Como não podiam comungar com as habituais hóstias, a primeira abordagem do padre Robson, hoje à frente da paróquia de São João de Deus, também em Lisboa, foi tentar que comungassem só do cálice, mas, também não era solução: “Como nós fazemos a tradição do norte de África, de colocar um fragmento da hóstia consagrada no cálice, isso era o suficiente para contaminar o vinho também com o trigo que estava presente na hóstia”. Foi quando ouviu falar nas hóstias sem glúten.

“A primeira procura que eu fiz foi saber se eram hóstias de trigo ou se eram hóstias de milho, uma vez que há a obrigação litúrgica das hóstias que vão ser consagradas serem mesmo de trigo”. Ficou a saber que “o processo era tentar retirar o glúten, que era solúvel em água, do amido de trigo. E, a partir daí, conseguia-se fazer hóstias não completamente sem glúten, mas com uma pequena percentagem, sobretudo dos produtos solúveis do glúten”. Compram-se na loja do Patriarcado de Lisboa ou no Santuário de Fátima.

As hóstias, mesmo para quem é intolerante, nunca são completamente sem glúten. “Há um documento da Congregação da Doutrina da Fé, de 24 de Julho de 2003, sobre o uso do pão com pouca quantidade de glúten, que nos proíbe de usar outra matéria que não seja, de facto, o trigo”, sublinha o padre Robson, lembrando que a liturgia “tem sempre como memorial aquilo que foi o gesto de Jesus, que foi tomar um pão de trigo, dar graças sobre ele; tomar um cálice com vinho, dar graças sobre ele, e dizer: isto é o meu corpo, isto é o meu sangue”. Ou seja, para a Igreja “a fidelidade do sinal obriga também à fidelidade dos materiais de que era feito o sinal. Portanto, nós não podemos usar uma broa de milho para repetir o mesmo gesto, porque senão o sinal perde-se”.

Os cuidados a ter na comunhão dos celíacos

O pároco de São João de Deus recorda um dos casos que acompanhou, ainda no Lumiar, de uma senhora idosa que comungava todos os dias. “Arranjava-lhe as hóstias, dava-lhe uma quantidade razoável, tipo 60. E ela, sempre que vinha à missa, colocava uma caixinha com a hóstia sem glúten para ser consagrada também”. Mas havia uma série de precauções a ter: “Habitualmente, ela era a última a comungar, porque, depois, tinha que trocar as caixas. E eu tinha que ter cuidado para que os dedos que usava para dar a hóstia não fossem os mesmos que tinha usado para dar as hóstias com glúten”.

No caso das pessoas que são totalmente intolerantes ao glúten, não podem mesmo comungar estas hóstias especiais. A alternativa é comungarem do sangue do Senhor. “Isso obriga a alguma atenção, não apenas para não se misturar nenhum fragmento da hóstia, mas até no manuseamento, ou seja, há que usar cálices que não tenham ainda resíduos de trigo no seu interior e que os panos do Altar também não tenham sido engomados com amidos de trigo. São as preocupações básicas”, refere o padre Robson Cruz.

Hóstias sem glúten: do Minho para o mundo

É no Instituto Monsenhor Airosa, em Braga que são fabricadas hóstias sem glúten. Seguem daí para todo o país e para várias partes do mundo. “Vão para todo o lado, América, África e Europa”, diz o director da Instituição, Luís Gonzaga Dinis. É assim há 30 anos. Só no ano passado, foram ali produzidas mais de 30 mil partículas sem glúten. Com glúten, foram mais de 90 mil, com destino a várias dioceses portuguesas e também a Espanha e Angola.

Ao contrário das hóstias normais, que são vendidas para financiar a instituição, as partículas sem glúten, próprias para celíacos, são oferecidas, por se entender que é um “serviço que se presta à comunidade”.😱

Com ou sem glúten, o processo de fabrico de hóstias é o mesmo. Filipa Pimenta, uma das funcionárias, explica que “o segredo está na receita da farinha”, mas não o revela. “Também não vamos aos pastéis de Belém pedir a receita!”, brinca.

É a fórmula da farinha própria para celíacos que faz a diferença, conta o director do Instituto, uma vez que algum glúten tem de estar presente: “As que fazemos têm menos de dez partes por milhão. O glúten está numa quantidade tão diminuta que não prejudica a saúde dos celíacos, por um lado, por outro não retira integralmente as componentes do trigo”.

Uma subtileza que faz toda a diferença e que, graças à autorização do Vaticano, faz do Instituto Monsenhor Airosa uma das duas oficinas com fabrico próprio de partículas para celíacos. A outra está na Argentina, por iniciativa do actual Papa, que quis saber como se fazia em Portugal: “Jorge Bergoglio, na altura cardeal de Buenos Aires, terá ouvido falar nisto e contactou a arquidiocese de Braga, no sentido de saber como se haveria de fazer. E ele próprio, enquanto arcebispo de Buenos Aires, arranjou a autorização do Vaticano para fabricar essas hóstias."😊

A dificuldade dos doentes celíacos para comungar e a forma como a Igreja vai dando resposta a essas dificuldades vai ser um dos temas em destaque no programa “ Princípio e Fim” do próximo domingo, 8 de Novembro, na Renascença, às 23h30.

 

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