A vida são dois dias, o céu dura para
sempre
A existência da Irmã Clara faz-me
lembrar um escrito precioso de São Beda o Venerável: "Quando os primeiros
missionários cristãos chegaram a terras inglesas, o rei convocou uma assembleia
de sábios para decidir se havia de receber a nova doutrina. Um dos sábios falou
assim: "Imagina, ó rei, que estás sentado à mesa na companhia dos teus
vassalos. É inverno. A lareira bem acesa, a sala bem aquecida. Lá fora, a
tempestade: a chuva e o vento fustigam a janela. Nisto, como por encanto, vês
um passarinho a voar pelo salão. Entrou por um lado e, daí a pouco, desapareceu
por outro. Nos breves instantes que vagueou por ali, sentiu-se abrigado do
frio, mas logo se sumiu de novo no escuro. Assim acontece na vida humana.
Não sabemos o que está antes dela nem o que
virá depois. Se a nova doutrina nos trouxer alguma certeza a este respeito, vale
a pena recebê-la".
0 pássaro que atravessa
por instantes o salão e logo se perde no escuro é uma singela imagem da
existência humana. Esta passa breve como um voo de ave. A fé revela- -nos o
que está antes e o que virá depois: procedemos de Deus e navegamos para o
divino porto.
A Irmã Clara bebeu como
leito materno esta fé na eternidade. Bem cedo a morte começou a rondar à sua
volta. Aos dozeanosviu partiroseu irmão mais novo. Umano depois, ficou órfã de
mãe; no ano seguinte, faleceu-lhe o pai.
”A vida são dois dias e o Céu é para
toda a eternidade! - ponderava, mais tarde, com as suas Irmãs. Pedia-lhes
também que mergulhassem no mar sem fundo de três realidades: "Deus, Alma, Eternidade!"
Esta fé em brasa permitia-lhe
encarar com serena dignidade os obstáculos que se lhe atravessavam no caminho:
a infâmia, o agravo, o atropelo, a contínua turbulência: "Quando nos
sentirmos abatidas ou desanimadas, lembremo-nos do Céu e só esta esperança nos
alentará!" "Por um momento de combate, é-nos prometida uma eternidade
de glória".
Não declarava São Paulo
que os sofrimentos desta vida são uma gota de água ao pé daquele oceano onde
nadaremos em glória eterna, e que uma leve tribulação dará lugar a um peso
incalculável de felicidade?
Na vida trabalhosa da
Irmã Clara abria-se, por vezes, uma frestazinha por onde vislumbrava uma nesga
do paraíso.
As festas comunitárias,
celebradas pouco antes de morrer, faziam-na sonhar: "A alma, inebriada
de santos afectos, como que fugia deste mundo de misérias e se elevava até ao Céu!...
Como não será o Céu?!" "A alegria vibrante no rosto da Mãe Clara e
das Irmãs - atesta uma Hospitaleira - fazia-nos esquecer que ainda estamos na
terra".
"Deus paga bem, mas
não paga ao sábado" - reza o nosso povo. Geralmente, só paga no sábado da
vida eterna. Até lá, vai alargando a nossa capacidade, a nossa medida, para
poder receber mais e um dia a recalcar e coagular até deitar por fora.
É certo que a Irmã Clara não
trabalhava pela paga, mas "poramor ecom amor", sem troca portroca, sem factura, "não
com a mira na recompensa, mas unicamente para testemunhar a Deus o nosso
reconhecimento pelo muito que nos deu".
Um sinal revelador da
santidade cristã consiste precisamente nisto: mais do que as dádivas de Deus,
preferir a intensidade da Sua presença, a beleza do Seu rosto. Sabem a mel as
palavras do Pai misericordioso: 'Tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é
teu" (Lc 15, 31). Relação de gratuitidade
e não um vaivém comercial e interesseiro, visto que o amor não é negociável.
Isto dito, podemos
acrescentar a feliz observação de São João Crisóstomo: o nosso Deus tem o
costume de pagar "salários máximos por trabalhos mínimos". Nem um
copo ds-água ficará sem recompensa. A Irmã dos Pobres queria-nos "generosos para com Deus, que tão generoso tem
sido para connosco".
Durante um Retiro que
dirigi em Fátima, uma Irmã velhinha saudava-me cada manhã, dizendo com um
sorriso: "Já falta menos um dia para irmos ao encontro do Senhor".
Ah, rica filha de Maria Clara!
Abílio
Pina Ribeiro, cmf Colégio Univ. Pio XII, Lisboa, in boltem da irmã dos pobres de Abril-Junho de 2013
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