Casamento
dos não Crentes
No Sínodo dos Bispos de 1980, um bispo francês levantou este problema,
que foi longamente discutido na sala sinodal, dando ocasião a uma proposição
votada quase por unanimidade. A Comissão Teológica Internacional, já antes, em
1977, se pronunciara de maneira cautelosa, mas já com alguma abertura. Da
Comissão fazia parte o teólogo Ratzinger.
O Vaticano II na Constituição da Liturgia, ao tratar dos sacramentos,
diz que estes supõem a fé de quem os recebe, celebram-na e alimentam-na. Sendo
assim, parece poder concluir-se que quem não tem fé não poderá receber, de modo
válido e frutuoso, os sacramentos da Igreja.
Os bispos do Sínodo referido propuseram, então, que se aceitasse o
casamento natural e se propusesse aos cônjuges uma caminhada que os pudesse
levar a aceder, livremente, ao dom da fé. Não foi nesse sentido a Exortação
Apostólica de João Paulo II sobre a família (novembro de 1981) ao manter a
orientação de que a fé, em relação ao matrimónio, consistia, para os não crentes,
na aceitação explícita das suas propriedades fundamentais: unidade, fidelidade
e indissolubilidade.
Bento XVI parte agora desta orientação, mas interroga-se, perante a
realidade atual de casamentos feitos na Igreja, depressa desfeitos, se é possível
aceitar o propósito de respeitar as propriedades do matrimónio, como o entende
e propõe a Igreja, sem a luz e a força da fé.
Muitos batizados que nunca desenvolveram nem enraizaram a sua fé
apresentam-se para um casamento no templo, por tradição, pressão social ou da
família ou até do outro cônjuge. Se em tempos passados este casamento podia
perdurar, hoje verifica-se a sua debilidade, ao pensarmos no número crescente
de divórcios por parte de quem casou na Igreja e pelo ambiente laico que nos
envolve. A fé e a vida em comunidade são uma força para as dificuldades
emergentes. Não podem ter essa experiência os que não consciencializaram, por
falta de fé, que o matrimónio - sacramento comporta, diariamente, a protecção
divina, como ajuda e presença numa família. Também não deixa de merecer atenção
a quantidade de jovens e adultos batizados, sem qualquer expressão de fé que os
denuncie como crentes, que procuram o casamento civil ou a união de facto.
Sinal de que Deus não tem lugar num tão importante acontecimento da sua vida.
Parece ser tempo de prestar atenção à verdade do sacramento, que não se
poderá entender sem uma fé explícita. Depois das palavras de Bento XVI, a menos
de um mês da sua inesperada resignação ao papado, também neste ponto as coisas
vão ser diferentes. As suas palavras são proféticas e os agentes pastorais têm
de acordar para um maior esforço evangelizador, e os agentes judiciais para uma
mais larga compreensão da incapacidade de receber o sacramento do matrimónio,
de o acolher como dom e de responder à graça e ao compromisso que o sacramento
comporta para os noivos.
A Igreja deverá considerar, com total liberdade e com a
responsabilidade que lhe cabe como educadora da fé, cada caso que se lhe
apresenta. Não falta gente, sem prática de culto religioso, a casar, seja na
Igreja ou na Conservatória do Registo Civil, que, por total coerência, quer
realizar um casamento indissolúvel, marcado pela unidade e pela fidelidade
mútua. Se a fé teologal ajuda a entender as exigências do matrimónio, ela não é
caminho exclusivo e pode ser precedida por uma fé natural que clama, dentro de
cada um que sabe ouvir este grito, uma exigência de verdade e de compromisso.
Por natureza criada já somos “divinos” e capazes de obras onde Deus está e
opera. Um olhar novo que importa ter sempre presente.
António Marcelino, Bispo emérito de Aveiro,
In Notícias de Beja, 07.03.2013
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