A
MEMÓRIA AFECTUOSA DE DEUS
Frei Bento
Domingues, O.P.
Púbico 31.01.2016
1. A nós, os velhos, roubam-nos tudo:
roubam-nos o passado e o futuro, a memória e a possibilidade de renovar o
cartão de cidadão.
É breve e para poucos a
sobrevivência na memória afectuosa dos familiares e amigos. Chegamos tarde em
relação ao passado e demasiado cedo em relação às maravilhosas promessas da
ciência e da técnica.
Por outro lado, a louca persistência
das guerras e os absurdos que as provocam, impondo a lei de matar, ser morto ou
fugir, geram cepticismo acerca da possibilidade global de humanização da
história[1].
A verdadeira vida e a morte dependem
dos afectos. Fora deles, há apenas estatística.
Os mais idosos vão sofrendo a
desertificação das relações de familiares e amigos. Mário Brochado Coelho, a
propósito da morte de Nuno Teotónio Pereira e do desaparecimento de outros
companheiros, manifestou aos amigos, de modo comovente, que embora tudo seja
natural, ficamos com o sentimento de uma grande orfandade.
Há outras pessoas que alimentam o
desejo de um Deus de memória afectuosa, transfiguradora e universal, para si e
para os outros, um coração que as acolha.
2. Em relação ao Nuno Teotónio Pereira, muitas coisas
foram ditas e escritas, quer sobre a sua sólida e premiada obra arquitectónica,
quer sobre a sua evolução política e religiosa: de
uma família monárquica e salazarista para militante da transformação da Igreja
na linha de João XXIII e do Vaticano II, da luta contra guerra colonial, das
metamorfoses políticas radicais até à entrada no PS.
Cada uma dessas fases e faces deixou
imagens diferentes naqueles que com ele conviveram. No entanto, o próprio se
explicou longamente sobre os tempos e acontecimentos que viveu. Quem voltar a
ler as suas crónicas no Público[2], a última
entrevista a José Pedro Castanheira, publicada no Expresso[3] e o testemunho ditado para o Encontro do ISTA e do NAM[4], pode formar uma
opinião mais abrangente, não apenas acerca dele, como da sua primeira mulher, a
extraordinária Maria Natália Duarte Silva.
É conhecido que ambos,
nos anos 60, me associaram à criação do Direito à Informação, à Comissão
Nacional de Socorro aos Presos Políticos, à Iniciativa dos Terceiros
Sábados e ao trabalho de encontrar esconderijos para clandestinos.
O Nuno ajudou-me também
a encontrar, em Portugal, a pista das pessoas percursoras do Vaticano II,
algumas das quais marcaram a sua mudança de rumo e as expressões militantes do
seu profundo catolicismo.
Tentei, quando ainda não
havia quase nada estudado a esse respeito, apresentar um esboço nas Artes de
ser católico português[5]. Desde a Voz
de Santo António (1895-1910) até D. António Ferreira Gomes, passando pelos
irmãos Alves Correia (Manuel e Joaquim), pelo Movimento e edições Metanoia,
dos anos 40-50, pelo Padre Abel Varzim e pela aceleração dos anos 50, em vários
ramos da Acção Católica, podem-se encontrar tentativas, obras e correntes que
foram reconhecidas no Vaticano II e abafadas pela hierarquia portuguesa, com
raras excepções.
3. Ao reler o seu itinerário espiritual, deparei com uma
crónica do Público, de 1995, onde reflecte sobre a Igreja Católica e o
Partido Comunista, seus problemas actuais e seu futuro[6]. (…) «O Bem da
Igreja», que tantas vezes ouvi invocar contra a liberdade das pessoas e contra
os preceitos evangélicos e o «Bem do Partido», que espezinhou direitos humanos,
têm de ser banidos numa e noutra instituição.
« (…) Pode ser que seja
necessário passarem uma ou duas gerações para que isto aconteça: são
acontecimentos para o próximo século. Mas talvez suceda que a mensagem
evangélica, por um lado, e a crença numa sociedade mais justa e solidária, por
outro, sejam dois fachos que não se apaguem na marcha da Humanidade e que
poderão até ser convergentes, com surpresa para muitos. (…) É preciso que
qualquer coisa renasça ou nasça de novo para nos devolver a esperança».
O texto do Papa Francisco, sobre a
«Igreja de saída», que transcrevi no passado domingo e apresentei no funeral de
Nuno Teotónio Pereira, parece-me o começo de realização desta esperança.
José Pedro Castanheira, na última
entrevista, perguntou-lhe: deixou de ser crente? «A certa altura, sim, muito por causa do episódio da morte da minha
mulher. Não foi imediato, mas ficou sempre uma ferida. Depois meti-me na
política e acabei por chegar à conclusão que o sobrenatural não me dizia nada.
Mas, olhando para toda a minha vida e para a minha formação, acho que sou
católico, ainda que não praticante. Sou crente».
Santa coerência.
[2] Nuno
Teotónio Pereira, Tempos, Lugares, Pessoas, Público, 1996. As crónicas
vão de 20.6.1993 a 21.11.1995.
[4] ISTA
(Instituto S. Tomás de Aquino) e NAM (Movimento “Não Apaguem a Memória”),
Cadernos ISTA, nº 28 – 2014, p. 59-60.
[5] Frei Bento
Domingues, O.P., Artes de ser católico português, in A Religião dos
Portugueses, Figueirinhas, Porto/Lisboa 1988, pp. 81-122.
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