segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

RITUAIS DO ENTRUDO O ENTERRO DO PAI VELHO, DANÇA DOS CARPINTEIROS E MECADAS


RITUAIS DO ENTRUDO

O ENTERRO DO PAI VELHO, DANÇA DOS CARPINTEIROS E MECADAS

José Rodrigues Lima, jrodlima@hotmail.com

A festa cíclica do Carnaval está presente no meio rural e urbano. Porém, é nas comunidades tradicionais que o encontramos mais genuíno, projectando-nos na ancestralidade, na memória colectiva e no inconsciente cultural.

O Entrudo é festa da abundância: “Ruge o pote e o prato”; “Haja vinho na caneca e porco na salgadeira”; “O Entrudo é comilão, se queres saber ao certo dá-me carne, vinho e pão”; “Alegria, alegrote, que está o rabo de porco no pote”.

  
 


REGENERAR O MUNDO

No dizer de Roger Caillois, a festa pretende restaurar o caos primordial, reactualizar as cosmogonias, teatralizando e mimando os gestos dos deuses e antepassados, porque o tempo mítico da desordem é um tempo criador, e necessariamente será também renovador do cosmos envelhecido. “A festa é assim celebrada no espaço-tempo do mito e assume a função de regenerar o mundo”.

As teses referentes à origem do Carnaval podem-se sintetizar em quatro: vegetalista, celta, greco-romana e medievalista.

Existem indicadores que convidam a encarar o carnaval moderno como uma espécie de “eco moribundo” das festas antigas do tempo das Saturnais.

O grande antropólogo Caro Baroja, autor do livro “El Carnaval”, verdadeira bíblia deste ciclo festivo, escreveu que “quando o homem acreditou de uma forma ou de outra que a sua vida estava submetida a formas sobrenaturais surgiu o Carnaval”. O mesmo investigador afirma que “o Carnaval merece respeito”, estudo e análise, não só como fonte de grandes criações plásticas, sendo de mencionar Brueghel e Goya, mas também musicais, recordando Schuman, Berlioz e Paganini.

É de referenciar a obra “Festas de loucos e carnavais” de Jacques Heers.

 

DEITAR FORA O INVERNO

Mircea Eliade mencionando um texto do século VIII, afirma que as populações alemãs “in mense Februario hibernum credi expellere”, que tem a seguinte tradução: “no mês de Fevereiro deve-se deitar fora o Inverno”.

De acordo com J. Heers, o Carnaval começou por ser uma procissão como tantas outras, uma dança de primavera que, quase de certeza, recuperou antigas memórias ligadas aos cultos pagãos de outrora, dos deuses campestres e das forças da natureza. Alguns autores não hesitam em evocar, com a maior naturalidade, a tradição das Bacanais, das festas da terra, do vinho e das florestas. Sublinham-no por interpretação etimológica ao fazer derivar directamente a palavra do latim do carro em forma de navio, “currus navalis”, que ilustrava as procissões.

O Carnaval como todas as festas profanas ou religiosas, sem dúvida de inspiração muito antiga ou de impregnação cristã, apresenta numerosos espectáculos públicos, reflexos espontâneos de uma civilização, referências preciosas para o conhecimento de uma cultura.

 

O IMBOLC CELTA

As teses referentes à origem do Carnaval podem ser sintetizadas em quatro: vegetalista, celta, greco-romana e medievalista.

A tese celta leva-nos a registar alguns dados. Assim, E. Powell sublinha que os celtas acreditavam em poderes mágicos que envolviam todos os aspectos da vida e do ambiente. O ano celta achava-se certamente, dividido em duas estações, quente e fria, sendo os períodos de transição marcados por quatro festas: Samain, Beltaine, Lugnasad e Imbolc.

No início da estação clara, Beltaine, celebrava-se a festa do deus Lug. Era a data das grandes assembleias druídicas, em que se faziam fogueiras cerimoniais.

 
 
No primeiro de Fevereiro tinha lugar a festa de purificação do fim do inverno, o IMBOLC. Antigamente explicavam-na como sendo o começo da lactação das ovelhas. A festividade foi substituída pela festa cristã de Santa Brígida, seguida pela Festa das Candeias, como explica E. Powell, H. Hubert e F. le Roux e J. Guyonvarc’h.

O investigador C. Gaignebet, autor do livro “Le Carnaval. Essais de mytologie populaire” (1974) sustenta: “há pois motivo para perguntar porque é que um conjunto de ritos indoeuropeus, as purificações no início de Fevereiro se conservam, por ventura inseridas nas festas celtas, especialmente no Imbolc”.

Sem pretendermos fazer doutrina não será que nos rituais do carnaval, e mesmo nas comemorações do enterro do Pai Velho, não se conjugam reminiscências ancestrais dos celtas? É de referir que no Lindoso há bastantes marcas culturais dos castrejos.

Devemos referir que Mircea Eliade, mencionando um texto do século VIII, afirma que as populações alemãs “in mense Februario hibernum credi expellere”, que tem a seguinte tradução: “no mês de Fevereiro deve-se deitar fora o Inverno”.

 

CATARSE COLETIVA

O Carnaval é uma festa de todos, dos simples e dos pobres.

Uma boa oportunidade para os sisudos se extroverterem e para os grupos realizarem uma “catarse colectiva”, esquecendo o quotidiano que esmaga para reinar a alegria, com “rituais cósmicos, de inversão, ostentação e fertilidade”, reafirmando a identidade colectiva, conforme o antropólogo Joan Prat.

 

O ENTERRO DO PAI VELHO

As festividades carnavalescas no Lindoso, aldeia do concelho da Ponte da Barca, celebrizada pela sua história e respectiva barragem premiada, revestem-se de particularidades, que lhes concedem características do Carnaval da tradição portuguesa.

            Os octogenários, eles e elas, são pontos de referência obrigatória, para ajuizar se tudo está a ser preparado conforme a tradição. Existe uma sabedoria estratégica que passa pela escolha dos carros de tracção animal, do gado, pelo jogo das campainhas, pelos jugos, pelos enfeites, pelas cantigas, pelos tocadores de concertina, pelo horário dos cortejos, pelo trajecto definido, pelos bailes, pelas dádivas comestíveis durante os desfiles, pelos "barredouros", pelos disfarces, pela choradeira na queima do Pai Velho, pelo testamento onde constam as ofertas do falecido, pelas referências de índole social e pela ocultação da escultura simbólica, como autêntico "churinga" de povos australianos.

            As festividades do Enterro do Pai Velho, que "apesar de não ter festeiros, sempre tem festa", são consideradas as mais típicas da povoação, e podemos dizer, únicas no norte do país.

            Trata-se de uma vivência ancestral, que contribui expressivamente para a "coesão social da aldeia", e para revigorar a identidade colectiva de uma povoação histórica e tradicional, que mantém vivências comunitárias.

           
 
 O cortejo, para além de outros elementos, é constituído por carros adornados, "simbólicos e chiadouros", puxados pelo melhor gado da aldeia, belamente engalanado, sendo um deles o do "Pai Velho", e o outro o "Carro das Ervas".

            O largo junto do Castelo do Lindoso, mesmo ao lado do conjunto dos espigueiros e a eira comum, é o espaço privilegiado onde se desenrolam as importantes cerimónias anuais de transição, do ciclo do Inverno, frio e estéril, para o ciclo da Primavera, mais quente e fértil, e que fazem parte do "inconsciente colectivo".

            Se pretendermos estabelecer uma rota dos cerimoniais carnavalescos, para além do Enterro do Pai Velho, teríamos que participar, também, na Dança dos Carpinteiros, na freguesia de Gandra, e nas Mecadas de Verdoejo, do concelho de Valença.

            Esta trilogia constitui o Entrudo do Alto-Minho.

 

A FOGUEIRA SIMBÓLICA

O grande investigador e filósofo das religiões J.Frazer, na sua notável obra “ RAMA DOURADA”, dedica um capítulo aos festivais ígneos. Afirma que em quase toda a Europa “a crença que o fogo promove o crescimento dos meses, o bem-estar dos homens e dos animais, quer estimulando-os positivamente quer evitando os perigos e as calamidades”.

Refere que os celtas tinham festivais ígneos, queimando imagens cobertas de ervas, no meio das quais os druidas encerravam vítimas.

W.Mannhart  interpreta o costume de queimar as vítimas como uma cerimónia mágica com a intenção de assegurar a luz solar suficiente para as colheitas, levando-nos a concluir a importância agrária destes rituais.

È de sublinhar a grande festa “Beltaine, (fogo de Bel),no primeiro de Maio, em honra do Deus Lug, sob aparência da luz. Era a data das assembleias druidas, em que se faziam grandes fogueiras cerimoniais.

Parece-nos que a grande fogueira que no Lindoso queima o corpo empalhado do Pai Velho, os enfeites e as ervas, tem um fundo celta.

Aliás, é de acrescentar que inúmeros ritos de purificação pelo fogo, geralmente ritos de passagem, são característicos das comunidades agrárias, e simbolizam os incêndios dos campos que se adornam , depois, com um manto verde da natureza viva, de acordo com J.Chevalier.

O fogo é, acima de tudo, o motor de regeneração e simboliza a acção fecundante.

O Padre António Vieira salienta nos “ Sermões” que “o maior”, o mais nobre e o mais nobre escondido tesouro do universo é o quarto elemento, o fogo.

É crença popular que o fogo e fumo têm a virtude de purificar os campos e os animais, e livrar os homens da influência dos maus espíritos.

 

DANÇA DOS CARPINTEIROS

Na aldeia valenciana de Gandra, neste período de transição do tempo invernal para o primaveril, realiza-se a dança dos carpinteiros.

Um grupo de homens, apresentando-se em mangas de camisa, calça de linho, faixa vermelha à cintura e gorros de lã na cabeça, representa a dança.

Cada um traz na mão a sua peça de ferramenta: um martelo, uma serra, um compasso, uma enxó e outras.

Um deles empunha uma vara de lodo e da extremidade pendem fitas de várias cores.

Para se exibirem os mestres seguram cada um a sua fita e cantam, com música apropriada, andando em passo de dança á roda da vara, os seguintes versos e outros de inspiração:

“Somos mestres carpinteiros / Aprendemos em Coimbra / Fazemos obra barata / Obra bem-feita e linda. Somos mestres carpinteiros / Falo verdade assim juro / Vimos hoje festejar / Aqui o santo entrudo.”

 

MECADAS EM VERDOEJO

As mecadas de Verdoejo sofreram influência das festividades carnavalescas da Galiza.

Este ritual despertou a atenção do investigador Padre Sarmiento, beneditino culto. Posteriormente foi estudado pelo Professor Xosé Pensado.

A gente de fora da Galiza costumava perguntar aos galegos, fazendo mofa: “Perdoáche-lo meco?”

A pergunta lembrava aos galegos a existência de uma ofensa aos seus antepassados que não foi vingada, o que contradiz com o ato de pendurar o Meco, como resultado da ira popular.

Há outras versões para explicar a origem das mecadas. Assim, o escritor Manuel Murgia encarregou-se de nacionaliza o mito fazendo proceder de uma “voz” que significa “quincalheiro”.

Se na freguesia de gandra os carpinteiros são protagonistas, em Verdoejo as personagens são predominantemente pedreiros.

“Nós todos somos pedreiros / Vimos da beira mar / Vimos a esta terra / Procurar que trabalhar. / Eu sou pedreiro novo / Ainda não ganho dinheiro / Chego barro meto achas / Levo os picos ao ferreiro.”

É oportuno referir que o Concílio de Benevento no século XI, fixou a Quarta-feira de Cinzas como limite para as festas de Carnaval.

Assim, a palavra Carnaval da expressão latina “carnem levare”, que significa retirar a carne, numa alusão ao caracter introdutório da quaresma cristã que se avizinha.

Ainda nos tempos de hoje se ouve dizer: Parece um entrudo, comentário quando uma pessoa é gorda; ou então parece uma quaresma, sublinhando uma pessoa que é magra.

Um entrudo também o pode ser uma pessoa vestida com roupa velha ou desajeitada.

Da etnografia do final do período do entrudo, e de transição para o tempo quaresmal, registamos: “Adeus entrudo, /Adeus meu entrudinho; / Até ao domingo de Páscoa, /Não comerei mais toucinho.”

 

 

 

 

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