RITUAIS DO ENTRUDO
O ENTERRO DO PAI VELHO, DANÇA DOS CARPINTEIROS E MECADAS
José Rodrigues Lima, jrodlima@hotmail.com
A festa cíclica do Carnaval está
presente no meio rural e urbano. Porém, é nas comunidades tradicionais que o
encontramos mais genuíno, projectando-nos na ancestralidade, na memória
colectiva e no inconsciente cultural.
O Entrudo é festa da abundância:
“Ruge o pote e o prato”; “Haja vinho na caneca e porco na salgadeira”; “O
Entrudo é comilão, se queres saber ao certo dá-me carne, vinho e pão”;
“Alegria, alegrote, que está o rabo de porco no pote”.
REGENERAR O MUNDO
No
dizer de Roger Caillois, a festa pretende restaurar o caos primordial,
reactualizar as cosmogonias, teatralizando e mimando os gestos dos deuses e
antepassados, porque o tempo mítico da desordem é um tempo criador, e
necessariamente será também renovador do cosmos envelhecido. “A festa é assim
celebrada no espaço-tempo do mito e assume a função de regenerar o mundo”.
As
teses referentes à origem do Carnaval podem-se sintetizar em quatro: vegetalista,
celta, greco-romana e medievalista.
Existem
indicadores que convidam a encarar o carnaval moderno como uma espécie de “eco
moribundo” das festas antigas do tempo das Saturnais.
O
grande antropólogo Caro Baroja, autor do livro “El Carnaval”, verdadeira bíblia
deste ciclo festivo, escreveu que “quando o homem acreditou de uma forma ou de
outra que a sua vida estava submetida a formas sobrenaturais surgiu o Carnaval”.
O mesmo investigador afirma que “o Carnaval merece respeito”, estudo e análise,
não só como fonte de grandes criações plásticas, sendo de mencionar Brueghel e
Goya, mas também musicais, recordando Schuman, Berlioz e Paganini.
É de
referenciar a obra “Festas de loucos e carnavais” de Jacques Heers.
DEITAR FORA O INVERNO
Mircea
Eliade mencionando um texto do século VIII, afirma que as populações alemãs “in
mense Februario hibernum credi expellere”, que tem a seguinte tradução: “no mês
de Fevereiro deve-se deitar fora o Inverno”.
De
acordo com J. Heers, o Carnaval começou por ser uma procissão como tantas
outras, uma dança de primavera que, quase de certeza, recuperou antigas
memórias ligadas aos cultos pagãos de outrora, dos deuses campestres e das
forças da natureza. Alguns autores não hesitam em evocar, com a maior
naturalidade, a tradição das Bacanais, das festas da terra, do vinho e das
florestas. Sublinham-no por interpretação etimológica ao fazer derivar
directamente a palavra do latim do carro em forma de navio, “currus navalis”,
que ilustrava as procissões.
O
Carnaval como todas as festas profanas ou religiosas, sem dúvida de inspiração
muito antiga ou de impregnação cristã, apresenta numerosos espectáculos
públicos, reflexos espontâneos de uma civilização, referências preciosas para o
conhecimento de uma cultura.
O IMBOLC
CELTA
As teses referentes à origem do
Carnaval podem ser sintetizadas em quatro: vegetalista, celta, greco-romana e
medievalista.
A tese celta leva-nos a registar
alguns dados. Assim, E. Powell sublinha que os celtas acreditavam em poderes
mágicos que envolviam todos os aspectos da vida e do ambiente. O ano celta
achava-se certamente, dividido em duas estações, quente e fria, sendo os
períodos de transição marcados por quatro festas: Samain, Beltaine, Lugnasad e
Imbolc.
No início da estação clara,
Beltaine, celebrava-se a festa do deus Lug. Era a data das grandes assembleias
druídicas, em que se faziam fogueiras cerimoniais.
No primeiro de Fevereiro tinha
lugar a festa de purificação do fim do inverno, o IMBOLC. Antigamente
explicavam-na como sendo o começo da lactação das ovelhas. A festividade foi
substituída pela festa cristã de Santa Brígida, seguida pela Festa das
Candeias, como explica E. Powell, H. Hubert e F. le Roux e J. Guyonvarc’h.
O investigador C. Gaignebet, autor
do livro “Le Carnaval. Essais de mytologie populaire” (1974) sustenta: “há pois
motivo para perguntar porque é que um conjunto de ritos indoeuropeus, as
purificações no início de Fevereiro se conservam, por ventura inseridas nas
festas celtas, especialmente no Imbolc”.
Sem pretendermos fazer doutrina
não será que nos rituais do carnaval, e mesmo nas comemorações do enterro do
Pai Velho, não se conjugam reminiscências ancestrais dos celtas? É de referir
que no Lindoso há bastantes marcas culturais dos castrejos.
Devemos referir que Mircea Eliade,
mencionando um texto do século VIII, afirma que as populações alemãs “in mense
Februario hibernum credi expellere”, que tem a seguinte tradução: “no mês de
Fevereiro deve-se deitar fora o Inverno”.
CATARSE COLETIVA
O Carnaval é uma festa de todos, dos simples e dos pobres.
Uma boa oportunidade para os sisudos se extroverterem e para
os grupos realizarem uma “catarse colectiva”, esquecendo o quotidiano que
esmaga para reinar a alegria, com “rituais cósmicos, de inversão, ostentação e
fertilidade”, reafirmando a identidade colectiva, conforme o antropólogo Joan
Prat.
O ENTERRO DO PAI VELHO
As festividades carnavalescas no Lindoso, aldeia do concelho da
Ponte da Barca, celebrizada pela sua história e respectiva barragem premiada,
revestem-se de particularidades, que lhes concedem características do Carnaval
da tradição portuguesa.
Os
octogenários, eles e elas, são pontos de referência obrigatória, para ajuizar
se tudo está a ser preparado conforme a tradição. Existe uma sabedoria
estratégica que passa pela escolha dos carros de tracção animal, do gado, pelo
jogo das campainhas, pelos jugos, pelos enfeites, pelas cantigas, pelos
tocadores de concertina, pelo horário dos cortejos, pelo trajecto definido,
pelos bailes, pelas dádivas comestíveis durante os desfiles, pelos
"barredouros", pelos disfarces, pela choradeira na queima do Pai
Velho, pelo testamento onde constam as ofertas do falecido, pelas referências
de índole social e pela ocultação da escultura simbólica, como autêntico
"churinga" de povos australianos.
As festividades
do Enterro do Pai Velho, que "apesar de não ter festeiros, sempre tem
festa", são consideradas as mais típicas da povoação, e podemos dizer,
únicas no norte do país.
Trata-se de uma
vivência ancestral, que contribui expressivamente para a "coesão social da
aldeia", e para revigorar a identidade colectiva de uma povoação histórica
e tradicional, que mantém vivências comunitárias.
O cortejo, para
além de outros elementos, é constituído por carros adornados, "simbólicos
e chiadouros", puxados pelo melhor gado da aldeia, belamente engalanado,
sendo um deles o do "Pai Velho", e o outro o "Carro das
Ervas".
O largo junto
do Castelo do Lindoso, mesmo ao lado do conjunto dos espigueiros e a eira
comum, é o espaço privilegiado onde se desenrolam as importantes cerimónias
anuais de transição, do ciclo do Inverno, frio e estéril, para o ciclo da
Primavera, mais quente e fértil, e que fazem parte do "inconsciente
colectivo".
Se pretendermos
estabelecer uma rota dos cerimoniais carnavalescos, para além do Enterro do Pai
Velho, teríamos que participar, também, na Dança dos Carpinteiros, na freguesia
de Gandra, e nas Mecadas de Verdoejo, do concelho de Valença.
Esta trilogia constitui
o Entrudo do Alto-Minho.
A FOGUEIRA SIMBÓLICA
O grande investigador
e filósofo das religiões J.Frazer, na sua notável obra “ RAMA DOURADA”, dedica
um capítulo aos festivais ígneos. Afirma que em quase toda a Europa “a crença
que o fogo promove o crescimento dos meses, o bem-estar dos homens e dos
animais, quer estimulando-os positivamente quer evitando os perigos e as
calamidades”.
Refere que
os celtas tinham festivais ígneos, queimando imagens cobertas de ervas, no meio
das quais os druidas encerravam vítimas.
W.Mannhart interpreta o costume de queimar as vítimas
como uma cerimónia mágica com a intenção de assegurar a luz solar suficiente
para as colheitas, levando-nos a concluir a importância agrária destes rituais.
È de
sublinhar a grande festa “Beltaine, (fogo de Bel),no primeiro de Maio, em honra
do Deus Lug, sob aparência da luz. Era a data das assembleias druidas, em que
se faziam grandes fogueiras cerimoniais.
Parece-nos
que a grande fogueira que no Lindoso queima o corpo empalhado do Pai Velho, os
enfeites e as ervas, tem um fundo celta.
Aliás, é de
acrescentar que inúmeros ritos de purificação pelo fogo, geralmente ritos de passagem,
são característicos das comunidades agrárias, e simbolizam os incêndios dos
campos que se adornam , depois, com um manto verde da natureza viva, de acordo
com J.Chevalier.
O fogo é,
acima de tudo, o motor de regeneração e simboliza a acção fecundante.
O Padre
António Vieira salienta nos “ Sermões” que “o maior”, o mais nobre e o mais
nobre escondido tesouro do universo é o quarto elemento, o fogo.
É crença
popular que o fogo e fumo têm a virtude de purificar os campos e os animais, e livrar
os homens da influência dos maus espíritos.
DANÇA DOS CARPINTEIROS
Na aldeia valenciana de Gandra, neste período de transição do
tempo invernal para o primaveril, realiza-se a dança dos carpinteiros.
Um grupo de homens, apresentando-se em mangas de camisa,
calça de linho, faixa vermelha à cintura e gorros de lã na cabeça, representa a
dança.
Cada um traz na mão a sua peça de ferramenta: um martelo, uma
serra, um compasso, uma enxó e outras.
Um deles empunha uma vara de lodo e da extremidade pendem
fitas de várias cores.
Para se exibirem os mestres seguram cada um a sua fita e
cantam, com música apropriada, andando em passo de dança á roda da vara, os
seguintes versos e outros de inspiração:
“Somos mestres carpinteiros / Aprendemos em Coimbra / Fazemos
obra barata / Obra bem-feita e linda. Somos mestres carpinteiros / Falo verdade
assim juro / Vimos hoje festejar / Aqui o santo entrudo.”
MECADAS EM VERDOEJO
As mecadas de Verdoejo sofreram influência das festividades
carnavalescas da Galiza.
Este ritual despertou a atenção do investigador Padre
Sarmiento, beneditino culto. Posteriormente foi estudado pelo Professor Xosé
Pensado.
A gente de fora da Galiza costumava perguntar aos galegos,
fazendo mofa: “Perdoáche-lo meco?”
A pergunta lembrava aos galegos a existência de uma ofensa
aos seus antepassados que não foi vingada, o que contradiz com o ato de
pendurar o Meco, como resultado da ira popular.
Há outras versões para explicar a origem das mecadas. Assim,
o escritor Manuel Murgia encarregou-se de nacionaliza o mito fazendo proceder
de uma “voz” que significa “quincalheiro”.
Se na freguesia de gandra os carpinteiros são protagonistas,
em Verdoejo as personagens são predominantemente pedreiros.
“Nós todos somos pedreiros / Vimos da beira mar / Vimos a
esta terra / Procurar que trabalhar. / Eu sou pedreiro novo / Ainda não ganho
dinheiro / Chego barro meto achas / Levo os picos ao ferreiro.”
É oportuno referir que o Concílio de Benevento no século XI,
fixou a Quarta-feira de Cinzas como limite para as festas de Carnaval.
Assim, a palavra Carnaval da expressão latina “carnem levare”,
que significa retirar a carne, numa alusão ao caracter introdutório da quaresma
cristã que se avizinha.
Ainda nos tempos de hoje se ouve dizer: Parece um entrudo,
comentário quando uma pessoa é gorda; ou então parece uma quaresma, sublinhando
uma pessoa que é magra.
Um entrudo também o pode ser uma pessoa vestida com roupa
velha ou desajeitada.
Da etnografia do final do período do entrudo, e de transição
para o tempo quaresmal, registamos: “Adeus entrudo, /Adeus meu entrudinho; /
Até ao domingo de Páscoa, /Não comerei mais toucinho.”
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