Paróquia Nossa Senhora de Fátima- Formação de Adultos
Ano da Fé – 2012/2013- Dia: 29 Junho - 7ª sessão
Local – Igreja da Sagrada Família (Abelheira)
Tema:
“Publicações sobre o Fenómeno Religioso”
(A
Teologia nas Publicações)
“Sabemos em que Deus acreditamos”.
A fé baptismal foi-se desenvolvendo através da
vida.
Aprofundar a vivência da nossa fé é uma necessidade
que passa pela formação teológica.
Mas nesta sessão pretende-se alguns percursos
partindo à descoberta do TRANSCENDENTE… saboreando no dia a dia a “graça
divina” e testemunhando sempre a fé em Jesus Ressuscitado.
1 – O Sagrado e o Profano (Mircea Eliade)
O
homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta,
se mostra como
qualquer coisa de absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o
acto da manifestação do sagrado propusemos o termo hierofania.Este termo é cómodo, porque não
implica qualquer precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no
seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos mostra. Poderia dizer-se que a história das
religiões — desde as mais primitivas às mais elaboradas— é constituída por um
número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades
sagradas. A partir da mais elementar hierofania — por exemplo, a manifestação
do sagrado num objecto qualquer, uma pedra ou uma árvore — e até à hierofania
suprema que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não
existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo acto misterioso:
a manifestação de algo «de ordem diferente» — de uma realidade que não pertence
ao nosso mundo — em objectos que fazem parte integrante do nosso mundo
«natural», «profano». (...)
(...)
Para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é susceptível
de revelar-se como sacralidade cósmica. 0 Cosmos na sua totalidade pode
tornar-se uma hierofania.
O
homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível em o sagrado ou muito perto dos
objectos consagrados. Esta tendência é de resto compreensível, porque para os
«primitivos» como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder,e, no fim de contas, à realidade por excelência. 0 sagrado está
saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade
e eficácia. A oposição sagrado-profano traduz-se muitas vezes como uma oposição
entre real e irreal ou pseudo-real. (...)
0
mito conta uma história sagrada, quer dizer um acontecimento primordial que
teve lugar no começo do Tempo, ab initio.Mas contar uma história sagrada equivale a
revelar um Mistério, porque as personagens do mito não são seres humanos: são
Deuses ou Heróis civilizadores, e por esta razão as suas gesta constituem Mistérios: o homem não
poderia conhecê-los se lhos não revelassem. O mito é pois a história do que se
passou in Mo tempore,a narração daquilo que os Deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do
Tempo. «Dizer» um mito, é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez
«dito», quer dizer revelado, o mito torna-se verdade apodíctica: funda a
verdade absoluta. (...)
0 mito proclama a aparição de uma nova «situação»
cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de
uma «criação»: conta-se como é que qualquer coisa foi efectuada, começou a ser.
(...)
Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe
de modelos exemplares para os seus comportamentos e acções. Por outras
palavras, quanto mais é religioso tanto mais se insere no real, e menos
se arrisca a perder-se em acções não exemplares, «subjectivas», e, em suma,
aberrantes.
É sobretudo este aspecto do mito que convém sublinhar:
o mito revela a sacralidade absoluta, porque conta a actividade criadora dos
Deuses, desvenda a sacralidade da obra deles. Por outros termos, o mito
descreve as diversas e por vezes dramáticas irrupções do sagrado no mundo. É
por esta razão que entre muitos primitivos os mitos não podem ser
indiferentemente recitados não importa onde e não importa quando — mas somente
durante as estações ritualmente mais ricas (Outubro, Inverno) ou no intervalo
das cerimônias religiosas, numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a
irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda
realmente o mundo. Cada mito mostra como é que uma realidade veio à existência,
seja ela a realidade total, o Cosmos, ou somente um fragmento: uma ilha, uma
espécie vegetal, uma instituição humana. Narrando como vieram à
existência as coisas, o homem explica-as e responde indirectamente a uma outra
questão: porque é que elas vieram à existência. O «porquê» insere-se
sempre no «como». E isto pela simples razão de que contando como nasceu
uma coisa se revela a irrupção do sagrado no mundo, causa última de toda a
existência real.
Por outro lado, sendo obra divina toda criação, e
portanto irrupção do sagrado, representa igualmente uma irrupção de energia
criadora no mundo. Toda criação brota de uma plenitude. Os Deuses criam por um
excesso de poder, por um transbordar de energia. (...)
A função mais importante do mito é, pois, a de
«fixar» os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as actividades
humanas significativas: alimentação, sexualidade, trabalho, educação, etc.
Comportando-se como ser humano plenamente responsável, o homem imita os gestos
exemplares dos Deuses, repete as acções deles, quer se trate de uma simples
função fisiológica como a alimentação, quer de uma actividade social,
econômica, cultural, militar, etc.
Na Nova Guiné, numerosos mitos falam de longas
viagens por mar, fornecendo assim «modelos aos navegadores actuais», assim como
modelos para todas as outras actividades, «quer se trate de amor, de guerra, de
pesca, de produção de chuva, ou seja do que for... A narração fornece
precedentes para os diferentes momentos da construção de um barco, para os
tabus sexuais que ela implica, etc.». (...)
Esta repetição fiel dos modelos divinos tem um
resultado duplo:
1) por um lado, imitando
os deuses, o homem mantém-se no sagrado e, por conseqüência, na realidade;
2)
por outro lado, graças à reactualização
ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado. O
comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo.
REACTUALIZAR OS MITOS
O que é preciso sublinhar é que, desde o início, o
homem religioso situa o seu próprio modelo a atingir no plano trans-humano: o
revelado pelos mitos. O homem só se torna em verdadeiro homem conformando-se
ao ensinamento dos mitos, quer dizer imitando os deuses.
Adicionemos que uma tal imitatio deiimplica
por vezes, para os primitivos, uma responsabilidade muito grave: (...) certos
sacrifícios sangrentos encontram a sua justificação num acto divino primordial:
in illo tempore,o Deus havia espancado o Monstro marinho e esquartejado
o seu corpo a fim de criar o Cosmos. 0 homem repete este sacrifício sangrento —
por vezes mesmo com vítimas humanas — quando deve construir uma aldeia, um
templo ou simplesmente uma casa. 0 que podem ser as conseqüências da imitatio
demostram-no assaz claramente as mitologias e os rituais de numerosos povos
primitivos. Para dar um só exemplo: segundo os mitos dos paleocul- tivadores, o
homem tornou-se no que ele é hoje — mortal, sexualizado e condenado ao trabalho
— na sequência de uma morte primordial: in Hio tempore,um Ser divino,
muito frequentemente uma Mulher ou uma Rapariga, por vezes uma Criança ou um
Homem, deixou-se imolar para que pudessem brotar do seu corpo tubérculos ou
árvores frutíferas. Este primeiro assassínio mudou radicalmente o modo de ser
da existência humana. A imolação do ser divino inaugurou assim a necessidade de
alimentação como a fatalidade da morte e, por conseqüência, a sexualidade, o
único meio de assegurar a continuidade da vida. (...)
Para todos estes povos paleocultivadores, o
essencial consiste em evocar periodicamente o acontecimento primordial que
fundou a condição humana actual. Toda a sua vida religiosa é uma comemoração,
uma rememoração. A Recordação reactua- lizada por ritos (portanto, pela
reiteração do assassínio primordial) desempenha um papel decisivo: o homem deve
evitar cuidadosamente esquecer o que se passou in illo tempore.O
verdadeiro pecado é o olvido. (...)
A memória pessoal não entra em jogo; o que conta, é
rememorar-se o acontecimento mítico, o único digno de interesse, porque é o
único criador. É ao mito primordial que cabe conservar a verdadeira História,a
história da condição humana: é nele que é preciso procurar e reencontrar os
princípios e os paradigmas de toda a conduta.
É neste estado de
cultura que se encontra o canibalismo ritual. A grande preocupação do canibal
parece ser de essência metafísica: ele não deve esquecer o que se passou in
illo tempore.Volhardt e Jensen mostraram-no claramente: abatendo e
devorando porcos por ocasião das festividades, comendo as primícias da colheita
dos tubérculos, come-se o corpo divino tal como durante as refeições
canibais.Sacrifícios de porcas, caça de cabeças, canibalismo, são
simbolicamente solidários das colheitas dos tubérculos ou das nozes de coco.
Cabe a Volhardt o mérito de ter esclarecido do mesmo passo que o sentido
religioso da antropofagia, a responsabilidade humana assumida pelo canibal. A
planta alimentar não é dada na Natureza; é o produto de um assassínio,
porque foi assim que ela foi criada na aurora dos tempos. A caça às cabeças, os
sacrifícios humanos, o canibalismo — tudo isto foi aceite pelo homem a fim de
assegurar a vida das plantas. Volhardt insistiu justamente neste aspecto; o
canibal assume a sua responsabilidade no mundo, o canibalismo não é um
comportamento “natural” do homem primitivo (não se situa aliás nos níveis mais
arcaicos de cultura) mas sim um comportamento cultural, fundado sobre uma visao
religiosa da vida. Para que o mundo vegetal possa continuar-se, o homem deve matar e ser
morto; deve, além disso, assumir a sexualidade até aos seus limites extremos: a
orgia. Uma canção abissínia proclama-os «Aquela que ainda não engendrou,
engendre; aquele, que ainda não matou, que matei» É uma maneira de dizer que os
dois sexos são condenados a assumir o seu destino.
É preciso que nos lembremos sempre, antes de emitirmos um juízo sobra o
canibalismo que ele foi fundado por seres divinos. Mas eles fundaram-no com o
fito de permitirem aos homens que assumam uma responsabilidade no Cosmos, para
os colocarem em estado de velar pela continuidade da vida vegetal. Trata-se,
pois, de uma responsabilidade de ordem religiosa. (...)
Entre os primitivos, como nas civilizações paleo-orientais, a imitatio dei não é
concebida de uma maneira idílica, ela implica, pelo contrário, uma terrível
responsabilidade humana. Julgando uma sociedade «selvagem», é preciso não
perder de vista que mesmo os actos mais bárbaros e os comportamentos mais
aberrantes têm modelos trans-humanos, divinos. (...)
O que importa sublinhar é que o homem religioso queria e acreditava imitar
os seus deuses mesmo quando se deixava arrastar a acções que tocavam as raias
da loucura, da vileza e do crime.
HISTÓRIA SAGRADA, HISTÓRIA, HISTORICISMO
(...) O homem religioso conhece duas sortes de tempo profano: e sagrado.
Uma duração evanescente — e uma «sequência de eternidades», recuperáveis
periodicamente durante as festas que constituem o calendário sagrado. O Tempo
litúrgico do calendário desenrola-se em círculo fechado: é o Tempo cósmico do
Ano santificado pelas «obras dos Deuses». E visto que a obra divina mais
grandiosa foi a Criação do Mundo a comemoração da cosmogonia desempenha um
papel importante em muitas religiões. O Ano Novo coincide com o primeiro dia da
Criação. 0 Ano é a dimensão temporal do Cosmos. Diz-se: «0 Mundo passou quando
se escoou um ano.
Em cada Ano Novo reitera-se a cosmogonia, recria-se o Mundo, e fazendo-o
«cria-se» também o Tempo, quer dizer, regenera-se o Tempo «começando-o de
novo». É por esta razão que o mito cosmogónico serve de modelo exemplar a toda
a «criação» ou «construção», e é mesmo utilizado como meio ritual de cura.
Voltando a ser simbolicamente contemporâneo da Criação, reintegra-se a
plenitude primordial. O doente cura-se porque recomeça a sua vida com a soma
intacta de energia.
A festa religiosa é a reactualização de um acontecimento primordial, de uma
«história sagrada» cujos actores são os Deuses ou os Seres semidivinos. Ora, a
«história sagrada» está contada nos mitos. Por consequência, os participantes
da festa tornam-se contemporâneos dos Deuses e dos Seres semidivinos. Vivem no
tempo primordial santificado pela presença e a actividade dos deuses. O
calendário sagrado regenera periodicamente o Tempo, porque o faz coincidir com
o Tempo da origem, o Tempo «forte» e «puro». A experiência
religiosa da festa quer dizer a participação do sagrado permite aos homens que
vivam periodicamente na presença dos Deuses. É a razão da importância capital
dos Mitos em todas as religiões pré-moisaicas, porque os Mitos contam as gesta dos
Deuses, e estas gesta constituem os modelos exemplares de todas as actividades humanos. Na
medida em que imita os seus Deuses, o homem religioso vive no Tempo da origem, o
Tempo mítico. Por outros termos, «sai» da duração profana para reunir-se a um
Tempo «imóvel», à «eternidade».
Visto que, para o homem religioso das sociedades primitivas, os mitos
constituem a sua «história sagrada», ele não deve esquecê-los: reactualizando
os mitos, o homem religioso aproxima-se dos seus Deuses e participa da
santidade. Mas há também «histórias divinas irágicas», e o homem assume uma
grande responsabilidade perante si mesmo e perante a Natureza reactualizando-as
periodicamente. O canibalismo ritual, por exemplo, é a conseqüência de uma
concepção religiosa trágica. (...) Pela reactualização dos mitos, o homem
religioso esforça-se por se aproximar dos Deuses e participar do Ser.
(...) Nas religiões primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos
divinos justifica-se como imitatio dei. 0
calendário sacro repete anualmente as mesmas festas, quer dizer, a comemoração
dos mesmos acontecimentos míticos. Propriamente falando, o calendário sacro
apresenta-se como o «eterno retorno» de um número limitado de gestos divinos, e
isto é verdadeiro não somente para as religiões primitivas, mas também para
todas as outras religiões. Em todo lado, o calendário festivo constitui um
retorno periódico das mesmas situações primordiais e, por conseqüência, a
reactualização do mesmo tempo sagrado. Para o homem religioso, a reactualização
dos mesmos acontecimentos míticos constitui a sua maior esperança, porque com a
reactualização reencontra a possibilidade de transfigurar a sua existência, de
a tornar semelhante ao modelo divino. Em suma, para o homem religioso das
sociedades primitivas e arcaicas, a eterna repetição dos gestos exemplares e o
eterno encontro com o mesmo tempo mítico da origem, santificado pelos Deuses —
não implica de modo nenhum uma visão pessimista da vida; mas, pelo contrário, é
graças a este «eterno retorno» às fontes do sagrado e do real que a existência
humana lhe parece salva do nada e da morte.
(...) A Grécia também conheceu o mito do eterno retorno, e os filósofos da
época tardia levaram aos seus extremos limites a concepção do tempo circular.
Para citar o belo resumo de H. Ch. Puech: «Segundo a célebre definição
platônica, o tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a
imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita desenrolando-se em círculo».
(...) Ora relativamente às religiões arcaicas e paleo-orientais, assim como
em relação às concepções mítico-filosóficas do Eterno Retorno, tais quais foram
elaboradas na índia e na Grécia, o judaísmo apresenta uma inovação capital. Para o judaísmo,
o Tempo tem um começo e terá um fim. A
ideia do Tempo cíclico é ultrapassada. Jeová não se manifesta já no Tempo cósmico (como
os deuses das outras religiões) mas num tempo histórico, que é
irreversível. Cada nova manifestação de Jeová na história já não é redutível a
uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de Jeová contra
o seu povo, mas já não é a mesma que Jeová exprimira pela queda de Samaria. Os
seus gestos são intervenções pessoais na História e revelam o seu sentido profundo somente para o
seu povo, o povo que Jeová escolhera. Por
conseqüência, o acontecimento histórico ganha uma nova dimensão: torna-se numa teofania.
0
Cristianismo ainda vai mais longe na valorização do Tempo histórico.
Visto que Deus encarnou, isto é, visto que assumiu uma existência
humana historicamente condicionada, a História torna-se susceptível de ser
santificada. 0 illud tempus evocado pelos Evangelhos é um Tempo
histórico claramente delimitado — o Tempo em que Pôncio Pilatos era governador
da Judeia — mas era santificado pela presença de Cristo. Quando um
cristão dos nossos dias participa do tempo litúrgico, volta a unir-se ao Hiud
tempus onde Jesus vivera, agonizara e ressuscitara — mas já não se trata de
um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judeia. Para o
Cristão também o calendário sacro repete indefinidamente os mesmos
acontecimentos da existência do Cristo — mas estes acontecimentos
desenrolaram-se na História, já não são factos que se tenham passado na origem
do tempo, «no começo». (...)
O sagrado no mundo moderno
(...)
Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o Homo religiosus crê
sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este
mundo mas que se manifesta neste mundo, e, por este facto, o santifica e o
torna real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a
existência humana actualiza todas as suas potencialidades na medida em que é
religiosa, quer dizer: participa da realidade. Os Deuses criaram o homem e o
Mundo, os Heróis Civilizadores acabaram a Criação, e a história de todas estas
obras divinas e semidivinas está conservada nos mitos. Reactualizando a
história sagrada, imitando o comportamento divino — o homem instala-se e
mantém-se junto dos Deuses, quer dizer no real e no significativo.
É
fácil ver tudo o que separa este modo de ser no mundo, da existência de um
homem a-religioso. Há, antes de tudo, este facto: o homem a-religioso recusa a
transcendência, aceita a relatividade da «realidade» e acontece-lhe até
duvidar do sentido da existência. As outras grandes culturas do passado
conheceram, elas também, homens a-religiosos e não é impossível que tais homens
tenham existido mesmo a níveis arcaicos de cultura, bem que os documentos não
os tenham atestado ainda. Mas é somente nas sociedades europeias modernas que o
homem a-religioso se desenvolveu plenamente. 0 homem moderno a-religioso
assume uma nova situação existencial: reconhece-se unicamente sujeito agente
da História, e recusa todo apelo à transcendência. Dito por outras palavras,
não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana, tal qual ela se
deixa decifrar nas diversas situações históricas. 0 homem faz-se a si
próprio, e não consegue fazer-se completamente senão na medida em que se
dessacraliza e dessacraliza o mundo. 0 sagrado é o obstáculo por excelência
diante da sua liberdade. 0 homem só se tornará ele próprio no momento em que
estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre no momento
em que tiver matado o último Deus. (...)
Mas
este homem a-religioso descende do Homo religiosus, e queira-o ou não, é
também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas pelos seus
antepassados. Em suma, é o resultado de um processo de desacralização. Assim
como a «Natureza» é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos obra de
Deus, assim o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência
humana. Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constituiu por oposição
ao seu prede- cessor, esforçando-se por se «esvaziar» de toda a religiosidade e
de toda significação trans-humana. Ele reconhece-se a si próprio na medida em
que se «liberta» e se «purifica» das «superstições» dos seus antepassados. Por
outras palavras, o homem profano, queira-o ou não, conserva ainda os vestígios
do comportamento do homem religioso, mas esvaziados das significações
religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não pode abolir definitivamente o
seu passado, porque ele próprio é o produto deste passado. Constitui-se por uma
série de negações e de recusas, mas continua ainda a ser assediado pelas
realidades que recusou e negou. (...)
Porque,
como já dissemos, o homem a-religioso no estado puro é um fenómeno muito
raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. A maioria dos «sem
religião» ainda se comporta religiosamente, se bem que não esteja consciente
deste facto. Não se trata somente da massa das «superstições» ou dos «tabus» do
homem moderno, que têm todos uma estrutura e uma origem mágico-religiosas. Mas
o homem moderno, que se sente e se pretende a-religioso, dispõe ainda da toda
uma mitologia camuflada e de numerosos ritualismos degradados. Conforme
mencionámos, os festejos que acompanham o Ano Novo ou a instalação numa casa
nova apresentam, se bem que laicizada, a estrutura de um ritual de renovação.
Constata-se o mesmo fenômeno por ocasião das festas e das alegrias que
acompanham um casamento ou o nascimento de uma criança, ou a obtenção de um
novo emprego ou de uma subida na escala social, etc.
Teríamos
de escrever toda uma obra sobre os mitos do homem moderno, sobre as mitologias
camufladas nos espectáculos que ele prefere, nos livros que lê. O cinema, esta
«fábrica de sonhos», retoma e utiliza inúmeros motivos míticos: a luta entre o
Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as Figuras e as Imagens
exemplares («a Rapariga», o «Herói», paisagem paradisíaca, o «Inferno», etc.).
Até a leitura comporta uma função mitológica — não somente porque ela
substitui a narração dos mitos nas sociedades arcaicas e a literatura oral,
viva ainda nas comunidades rurais da Europa, mas sobretudo porque, graças à
leitura, o homem moderno consegue obter uma «saída do Tempo» comparável à
efectuada pelos mitos. Quer se «mate» o tempo com um romance policial, ou se
penetre num universo temporal alheio, aquele que qualquer romance representa, a
leitura projecta o moderno fora do seu tempo pessoal e integra-o noutros
ritmos, fá-lo viver numa outra «história».
A
grande maioria dos «sem religião» não está propriamente falando liberta dos
comportamentos religiosos, das teologias e das mitologias. Estão por vezes
atulhados de todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até à
caricatura, e por esta razão dificilmente reconhecível. 0 processus da
dessacralização da existência humana chegou muitas vezes a formas híbridas de
baixa magia e de religiosidade simiesca. Não nos referimos às inúmeras
«pequenas religiões» que pululam em todas as cidades modernas, às igrejas, às
seitas e às escolas pseudo-ocultas, neo-espiritualistas ou intituladas
herméticas — porque todos estes fenômenos ainda pertencem à esfera da
religiosidade, ainda que se trate quase sempre de aspectos aberrantes de
pseudo- morfose. Também não fazemos alusão aos diversos movimentos políticos e
profe- tismos sociais, cuja estrutura mitológica e o fanatismo religioso são
facilmente discerníveis. Bastará, para dar um só exemplo, lembrarmos a
estrutura mitológica do comunismo e o seu sentido escatológico. Marx retoma e
prolonga um dos grandes mitos escato- lógicos do mundo asiático-mediterrânico,
a saber: o papel redentor do Justo (o «eleito», o «ungido», o «inocente», o
«mensageiro»; nos nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chamados
a mudar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de
Marx e a conseqüente desaparição das tensões históricas, encontram o seu
precedente mais exacto no mito da Idade de Ouro que, segundo múltiplas
tradições, caracteriza o começo e o fim da História.
(...)
Mas não é unicamente nas «pequenas religiões» ou nas místicas políticas que se
reencontram comportamentos religiosos camuflados ou degenerados:, reconhecemo-los
igualmente em movimentos que se proclamam francamente laicos, até mesmo
anti-religiosos. Assim, por exemplo, no nudismo ou nos movimentos a favor da
liberdade sexual absoluta, ideologias onde é possível decifrar os vestígios da
«nostalgia do Paraíso», o desejo de reintegrar o estado edênico de antes da
queda, quando o pecado não existia e não havia rotura entre as beatitudes da
carne e a consciência.
Além
disso, é interessante constatar quantas encenações iniciáticas persistem ainda
em numerosas acções e gestos do homem a-religioso dos nossos dias. (...)
Em
suma, a maioria dos homens «sem religião» partilha ainda das pseudo-religiões e
mitologias degradadas. O que em nada nos deve espantar, porque, como vimos, o
homem profano é o descendente do Homo re/igiosus e não pode anular a sua
própria história, quer dizer, os comportamentos dos seus antepassados
religiosos, que o constituíram tal qual ele é hoje. E tanto mais, que uma
grande parte da sua existência é alimentada por pulsões que lhe chegam do mais
profundo do seu ser, desta zona que se chamou o inconsciente. Um homem
unicamente racional é uma abstracção; jamais o encontramos na realidade. Todo
ser humano é constituído ao mesmo tempo pela sua actividade consciente e pelas
suas experiências irracionais. Ora, os conteúdos e as estruturas do
inconsciente apresentam similitudes surpreendentes com as imagens e as figuras
mitológicas. Não queremos dizer que as mitologias sejam o «produto» do inconsciente;
porque o modo de ser do mito é justamente que ele se revela como mito, quer
dizer que ele proclama que qualquer coisa se manifestou de uma maneira
exemplar. (...)
Todavia,
os conteúdos e as estruturas do inconsciente são o resultado das situações existenciais
imemoriais, sobretudo das situações críticas, e é por essa razão que o
inconsciente apresenta uma aura religiosa. Porque toda a crise existencial põe
de novo em questão ao mesmo tempo a realidade do mundo e a presença do homem no
mundo: isto quer dizer que a crise existencial é, em suma, «religiosa», visto
que, aos níveis arcaicos de culturas, o ser confunde-se com o sagrado.
(...)
De
um certo ponto de vista, quase poderia dizer-se que, entre aqueles modernos que
se proclamam a-religiosos, a religião e a mitologia estão «ocultas» nas trevas
do seu inconsciente — o que quer dizer também que as possibilidades de
reintegrar uma experiência religiosa da vida fazem, em tais seres, muito
profundamente neles próprios.
2 –
Leituras:
2.1 – Bíblia Sagrada
2.2 – Documentos Conciliares (Vaticano II)
2.3 – Catecismo da Igreja Católica
2.4 – Cristo em Vós: A Esperança e a Glória (Carta
Pastoral D. Anacleto)
3 – Teólogos
3.1 – Hans Kunj: “O Cristianismo essência e
história”; “Lo que yo creo”
3.2 – Bento XVI – “Jesus de Nazaré” (3 volumes)
3.3 – Jean Holm e John Bowker – “Ritos de Passagem”
3.4 – Cardeal Carlo M. Martins (Colóquios Nocturnos
em Jerusalém)
3.5 – Tolentino Mendonça (Pai Nosso que estais na
Terra)
4 –
Encíclicas Sociais
João XXVI – POPULORUM PROGRESSIO
Bento XVI – CARITAS IN VERITATE
5 – Diálogo
inter-religioso (Religiões e Política Mundial)
6 –
Revistas:
6.1 – COMMUNIO – Revista Internacional Católica
6.2 – “Família Cristã”
7 – Emile
Durkheim
7.1 – Las formas elementares de la vida religiosa”
7.2 – Questões de Antropologia Social Ecumenal (A.
Custódio Gonçalves)
7.3 – “Deus não tenho nada contra”, José Silva Lima
7.4 – “O Evangelho como me foi revelado”, José A.
Pagoes
8 – Luís
Guerreiro – “O Peregrino”
9 – Formação: “Compete aos
sagrados pastores depositários da Doutrina Apostólica ensinar oportunamente os
fiéis que lhes forem confiados no uso recto dos Livros Divinos, de modo
particular do Novo Testamento, e sobretudo do Evangelho (Constituição Dogmática
“Dei Verbum”, sobre a Revelação Divina. (Concílio Vaticano II)”
- “Sítio” Religion Digital”
29 Junho 2013
Relator: José Rodrigues Lima –
938583275
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