A VI D A T R I U N F A D A M O R T E
1. Andrés
Torres Queiruga, um escritor galego muito premiado, teve, no ano passado, um
acidente de trabalho - assim o classificou -, provocado pela Comissão Episcopal
Espanhola para a Doutrina Fé que, por excesso de zelo, se despistou e foi
contra ele.
Acontece,
com frequência, que a obsessão pela ortodoxia não deixa ver que o verdadeiro
inimigo da fé cristã se aloja na mediocridade cultural, nas receitas de espiritualidade
acéfala, no rubricismo pseudo litúrgico esquecido das exigências da linguagem
simbólica para dizer a novidade da graça do Espírito Santo e, sobretudo, numa
organização económica, social, cultural e política geradora de exclusão.
A
telogia viva, criativa, dialogante, como a deste grande intelectual ibérico,
nasce da recusa em aceitar que para ser cristão seja preciso continuar
culturalmente pré-moderno ou, então, que a negação do divino constitua a
condição prévia e indispensável para assegurar a realização social, psicológica,
vital, livre e moral do ser humano.
Se
para afirmar Deus fosse preciso sacrificar o ser humano, Deus estaria
condenado e o ateímo justificado. Deus, acolhido e celebrado como fonte de
vida, foi acusado, na modernidade, de roubar a liberdade, a criatividade e a
felicidade ao ser humano. O teólogo não pode recusar a participação numa
investigação pluridisciplinar, capaz de apurar as responsabilidades das religiões,
das igrejas e da cegueira humana, nessa acusação. A crítica das práticas e
representações alienantes da religião pertence ao seguimento de Jesus Cristo.
Não há discipulado sem a democratização desta atitude na Igreja.
Crítica
não é má língua esterilizante. Para conceber e experimentar novos caminhos e
expressões que assumam a tradição no seio da criatividade multifacetada de cada
época, ou nos seus desvarios, é indispensável descernimento. Só um Deus de
puro amor pode ajudar a humanidade a ser humana.
2. Uma
das últimas investigações de A.T.Queiruga censurada – e que merece ser a mais
estudada - mostra como a diferença cristã, na continuidade das religiões e da
cultura, está centrada numa esforçada inteligência da Ressureição, que nada tem
a ver com a reanimação de um cadáver. No seu trabalho, não confunde fé –
entrega a Jesus Cristo no seio das contradições da vida – com a pesquisa
teológica. Esta implica a crítica rigorosa das linguagens, das imagens e dos
conceitos para que as metáforas da ressurreição não sejam idolatradas. São
criações poéticas surrealistas que exigem uma ruptura e um salto de
significação: Jesus ressuscitado, embora já não esteja dominado pelas leis do
espaço e do tempo, é o mesmo que teve um percurso que o crucificou, mas que
vive agora, de modo misterioso e actuante, na transformação da existência de
quantos o acolherem; a morte não é última palavra sobre a nossa vida. Não
nascemos para morrer, mas para vencer a morte. No coração do Deus vivo, seremos
os mesmos, mas não seremos da mesma maneira. Deveríamos, por isso, ter a
devoção de andar acompanhados dos nossos mortos, que o não são, como gostamos
da presença permanente de Cristo.
Dito
assim, é só afecto. De forma mais profunda, só as grandes criações da pintura,
da poesia e, sobretudo, da música podem sugerir essa nova vida. É nas
transfigurações do quotidiano e na insurreição contra tudo o que degrada a
condição humana e o seu ambiente, que podemos evocar novos céus e nova terra.
Num
funeral, só conseguimos dizer coisas convencionais, de pêsames ou de alívio,
perante o inevitável. Vemos que tudo acaba e, perante a morte de uma pessoa que
nos é muito querida, também morremos um pouco. Onde está a voz, o olhar, as
mãos do outro? E nós, o que somos para essa pessoa que tínhamos como
indispensável?
3. Perante
as dificuldades em perceber o sentido da expressão ressurreição da carne (a
ressurreição da pessoa), os pregadores e catequistas têm sempre à mão a tomada
de posição de S. Paulo: se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação,
vazia é também a vossa fé (1Co 15, 14). É um recurso de facilidade, não é um
argumento.
Esquece-se
que, há dois mil anos, este apóstolo inscrevia a ressurreição de Cristo numa
convicção universal: se os mortos não ressuscitam, também Cristo não
ressuscitou. Se não há ressurreição, aqueles que adormeceram em Cristo também
estão perdidos. Se temos esperança em
Cristo, tão somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos
os seres humanos, argumenta o convertido do caminho de Damasco. Fala, por isso,
de numerosas aparições, da sua própria experiência e desenvolve uma retórica
fantástica, mas que não pode evitar aquilo a que não consegue responder: dirá
alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam?
Paulo,
como não sabe, recorre às metáforas da agricultura, à morte e vida das
sementes. O fundo de todas as suas declarações e argumentações é, todavia,
retintamente teológico: Deus não é nihilista; o amor que nos tem é mais forte
do que a morte. Paulo escreveu um poema fantástico, de leitura obrigatória: Rm
8,31-39.
Frei Bento Domingus, in Público, 31 de Março 2013
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