terça-feira, 9 de abril de 2013

A vida triunfa da morte -----------------------------------Páscoa


A  VI D A  T R I U N F A  D A  M O R T E

1. Andrés Torres Queiruga, um escritor galego muito premiado, teve, no ano pas­sado, um acidente de trabalho - assim o classificou -, provocado pela Comissão Episcopal Espanhola para a Doutrina Fé que, por excesso de zelo, se despistou e foi contra ele.

Acontece, com frequência, que a obses­são pela ortodoxia não deixa ver que o verdadeiro inimigo da fé cristã se aloja na mediocridade cultural, nas receitas de es­piritualidade acéfala, no rubricismo pseu­do litúrgico esquecido das exigências da linguagem simbólica para dizer a novidade da graça do Espírito Santo e, sobre­tudo, numa organização económica, social, cultural e política geradora de ex­clusão.

A telogia viva, criativa, dialogante, como a deste grande intelectual ibérico, nasce da recusa em aceitar que para ser cristão seja preciso continuar culturalmente pré-mo­derno ou, então, que a negação do divino constitua a condição prévia e indispensável para assegurar a realização social, psicoló­gica, vital, livre e moral do ser humano.

Se para afirmar Deus fosse preciso sacrifi­car o ser humano, Deus estaria condenado e o ateímo justificado. Deus, acolhido e ce­lebrado como fonte de vida, foi acusado, na modernidade, de roubar a liberdade, a criatividade e a felicidade ao ser humano. O teólogo não pode recusar a participação numa investigação pluridisciplinar, capaz de apurar as responsabilidades das reli­giões, das igrejas e da cegueira humana, nessa acusação. A crítica das práticas e representações alienantes da religião per­tence ao seguimento de Jesus Cristo. Não há discipulado sem a democratização des­ta atitude na Igreja.
 
 
 


Crítica não é má língua esterilizante. Para conceber e experimentar novos caminhos e expressões que assumam a tradição no seio da criatividade multifacetada de cada época, ou nos seus desvarios, é indispen­sável descernimento. Só um Deus de puro amor pode ajudar a humanidade a ser hu­mana.

2. Uma das últimas investigações de A.T.Queiruga censurada – e que merece ser a mais estudada - mostra como a diferença cristã, na continuidade das re­ligiões e da cultura, está centrada numa esforçada inteligência da Ressureição, que nada tem a ver com a reanimação de um cadáver. No seu trabalho, não confunde fé – entrega a Jesus Cristo no seio das contradições da vida – com a pesquisa teológica. Esta implica a críti­ca rigorosa das linguagens, das imagens e dos conceitos para que as metáforas da ressurreição não sejam idolatradas. São criações poéticas sur­realistas que exigem uma ruptura e um salto de significação: Jesus ressuscitado, embora já não esteja dominado pelas leis do es­paço e do tempo, é o mesmo que teve um percurso que o crucificou, mas que vive agora, de modo misterioso e actu­ante, na transformação da existência de quantos o acolherem; a morte não é última palavra sobre a nossa vida. Não nascemos para morrer, mas para vencer a morte. No coração do Deus vivo, se­remos os mesmos, mas não seremos da mesma maneira. Deveríamos, por isso, ter a devoção de andar acompanhados dos nossos mortos, que o não são, como gostamos da presença permanente de Cristo.

Dito assim, é só afecto. De forma mais profunda, só as grandes criações da pintura, da poesia e, sobretudo, da mú­sica podem sugerir essa nova vida. É nas transfigurações do quotidiano e na insurreição contra tudo o que degrada a condição humana e o seu ambiente, que podemos evocar novos céus e nova terra.

Num funeral, só conseguimos dizer coi­sas convencionais, de pêsames ou de alívio, perante o inevitável. Vemos que tudo acaba e, perante a morte de uma pessoa que nos é muito querida, tam­bém morremos um pouco. Onde está a voz, o olhar, as mãos do outro? E nós, o que somos para essa pessoa que tínha­mos como indispensável?

3. Perante as dificuldades em perce­ber o sentido da expressão ressurreição da carne (a ressurreição da pessoa), os pregadores e catequistas têm sempre à mão a tomada de posição de S. Paulo: se Cristo não ressuscitou, vazia é a nos­sa pregação, vazia é também a vossa fé (1Co 15, 14). É um recurso de facilidade, não é um argumento.

Esquece-se que, há dois mil anos, este apóstolo inscrevia a ressurreição de Cristo numa convicção universal: se os mortos não ressuscitam, também Cris­to não ressuscitou. Se não há ressur­reição, aqueles que adormeceram em Cristo também estão perdidos. Se te­mos esperança   em Cristo, tão somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os seres humanos, argumenta o convertido do caminho de Damasco. Fala, por isso, de numerosas aparições, da sua própria experiência e desenvolve uma retórica fantástica, mas que não pode evitar aquilo a que não consegue responder: dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam?

Paulo, como não sabe, recorre às me­táforas da agricultura, à morte e vida das sementes. O fundo de todas as suas declarações e argumentações é, toda­via, retintamente teológico: Deus não é nihilista; o amor que nos tem é mais forte do que a morte. Paulo escreveu um poema fantástico, de leitura obrigatória: Rm 8,31-39.

Frei Bento Domingus, in Público, 31 de Março 2013

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