Pão partilhado, o Pão de Deus
Como conjugar hoje, em tempos de crise, o verbo
partilhar? E onde estão os sinais de que a partilha existe, apesar dos muitos
egoísmos visíveis?
A solenidade litúrgica do Corpo e Sangue de Jesus
tornou-se rito social de iniciação. E eis tantas crianças de vestido branco a
comungar o Corpo de Jesus, com a consequente satisfação e até euforia de pais
e familiares que aproveitam a ocasião para fazerem festa. E bem, se os
comensais revivem a sua história de partilha do mesmo Corpo do Senhor.
Desde o início que os discípulos de Jesus se juntam
para a «fracção do pão», momento que se tornou central na vida mais ou menos
ritualizada dos crentes em Jesus. De facto, há dois mil anos que a Igreja, tu e
eu na continuidade de quantos nos precederam, se prostra em adoração diante
deste Pão, o Corpo do Senhor, que o é de facto por se tratar de um pão
partilhado. Sem a partilha, deixará de haver Pão de Deus, pelo que os egoísmos
humanos não permitem reconhecer o Pão de Deus.
Já S. Paulo, aquele que nos transmitiu o texto mais
antigo do que aconteceu na última Ceia de Jesus, se insurgia contra as
refeições festivas dos judeus em que uns «comiam tudo e outros nada comiam».
Tais refeições, que ocorriam antes da Eucaristia, tornavam-se uma negação do
Pão eucarístico, o Pão para partilhar entre todos, que «obrigava» a atitudes
novas na sociedade de então. Ou seja, S. Paulo não tolerava os escândalos de
uns se banquetearem ao lado de outros à míngua e todos em nome do Senhor. Era
comer indignamente o Corpo do Senhor.
De facto, a Eucaristia opera constantemente uma
revolução: ou é um Pão partilhado ou, não o sendo, torna-se acto ofensivo do
próprio Senhor, que o assumiu como sua Presença. Logo, a Igreja e cada um dos
cristãos, atraiçoa a missão recebida do Senhor quando permite, tolera ou se
cala diante de tantas injustiças: o Pão de Deus é um Pão para todos.
A «revolução» exprime-se no desafio lançado por
Jesus aos apóstolos: dai-lhes vós de comer. Sim, com cinco pães e dois peixes
alimentai a multidão de milhares de bocas.
E eles, certamente sem nada entenderem, obedeceram
à palavra do Mestre: mandaram sentar as pessoas por grupos de cinquenta...
isto é organizaram a multidão, fazendo-a passar de um aglomerado confuso a um
«povo» capaz de entrar na «lógica distributiva» de Jesus.
E o certo é que o «pouco disponível», retirado da
posse de «um rapazinho» para se tornar «dom disponível para todos» fica, agora,
capaz de ser multiplicado. E todos comem. E ainda sobra para muitos mais,
aqueles que ali não estavam mas que poderiam chegar entretanto. Quem não se
lembra de tradições familiares que deixavam sempre um lugar vazio para o
hipotético pedinte que poderia bater à porta?!
Não resisto a olhar para o estado do nosso país e
deste mundo ocidental, marcado pela globalização e em que as lógicas se
enredaram nas malhas do lucro, reservado apenas para alguns, os ricos avarentos
insensíveis aos pobres lázaros. Não faltam exemplos de outras lógicas já testadas
com êxito de uma economia de comunhão em que todos têm lugar à mesa e os lucros
são distribuídos por todos. Nunca será demais gritar contra o escândalo de
alguns salários de gestores que tentam justificar a «incapacidade» da empresa
que gerem de subir alguns euros no salário de alguns quando os seus «prémios»
de gestão bradam aos céus. Com que direito se faz um prémio com o que se
«rouba» ao salário?
S. Paulo não ficaria calado hoje diante de horários
absurdos, de ritmos de trabalho em tensão permanente pagos com ordenados
mínimos. E há tanta gente hoje a aproveitar-se de um cenário de crise para
abusar daqueles que se sujeitam a tudo... numa autêntica exploração!
Mas o milagre acontece também hoje na onda de
solidariedade de tantas instituições que matam a fome a muitos e que despertam
para a bondade de cada coração humano.
E o milagre continuará a acontecer sempre que cada
um de nós juntar o pouco de que dispõe ao pouco daquele que nos rodeia para
que, juntos, vencidos os egoísmos, nos tornemos dom a partilhar.
E, deste modo, realiza-se a Eucaristia na
transformação dos egoísmos em dons. Pelo que, bem entendida, a Eucaristia é a
força mais revolucionária do mundo: o pão que recebo e se transforma em mim é o
próprio Senhor Jesus, que me «obriga» a transformar-me em dom para os outros.
Por isso, a Eucaristia dos cristãos termina sempre com o envio em missão: Ide e
transformai o mundo de egoísmo em dom.
O Prior - P. Abílio Cardoso, in Boletim deBarcelos
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