A fé, manifestada em Jesus, ensina-nos a viver
neste mundo. O nosso ponto de partida pode ser a passagem da Carta a Tito (Tt
2,12), onde se diz a propósito de Jesus: "a
graça de Deus, fonte de salvação, manifestou-se a todos os homens,
ensinando-nos a viver neste mundo". Esta frase é um desafio, antes
de tudo, a tomarmos a sério a humanidade de Jesus como narrativa de Deus e do
Homem. Nessa humanidade temos o caminho, a verdade e a vida. Hoje sentimos a
necessidade muito grande de uma fé orientada para a vida. De uma fé que possa
constituir uma arte de viver, um laboratório para uma existência autêntica e
não apenas para a manutenção de um conjunto de práticas fragmentárias. E precisamos
reencontrar ou reinventar, a partir da fé, uma gramática do humano. A fé é um
exercício muito concreto de confiança na narrativa de Deus que Jesus nos
relata com a sua própria vida, com o seu próprio corpo, os seus gestos, o seu
silêncio, a sua história, a poética da sua humanidade. Que se pode concluir
então? Que Deus, por exemplo, não bate a uma porta que nós não temos, mas está
à nossa porta e bate; que
Deus não está numa época passada ou futura
simplesmente, mas Deus emerge no nosso presente histórico e é aí (é aqui!) que
o encontro com Ele se torna para nós decisivo.
Há um ensaio literário de uma grande autora
americana, Susan Sontag, onde ela se levanta contra a interpretação, porque
diz, "O mundo encheu-se de comentários, já
só vivemos de coisas em segunda mão". De facto, cada vez estamos
mais distantes da fonte, do original, do acontecimento, porque vivemos na
novela dos comentários e das interpretações. Há sempre mais uma interpretação
que se sobrepõe, à maneira de cascas de cebola. Mas o que é a essência do
(nosso) problema? O que é o núcleo fundamental? Isso como que nos escapa. E
Sontag dizia que o que temos a fazer é ensinar a ver melhor, a ouvir melhor, a
saborear melhor, a tocar melhor. No fundo, a exercitar melhor a nossa
humanidade. Uma fé vivida aqui e agora é também uma fé que não se deixa
capturar pelo labirinto epidérmico dos meros comentários, mas arrisca-se a
construir como uma aventura na ordem do ser.
José Tolentino Mendonça, in Agência Ecclesia
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