Reconciliar-se
- desafio de Deus à liberdade humana
Dos muitos desafios surgidos no decorrer
da nossa IV Semana Bíblica, recordo a vida como dom acolhido e oferecido.
Quando a vida deixa de ser dom passa a ser morte.
Quando queremos dizer Deus, apesar das evidentes
dificuldades, a palavra Amor é a menos imperfeita, se a referimos ao gesto de
Jesus de se doar pela humanidade.
Nesta doação, diz S. Paulo, Cristo «comprou-nos» ao
assumir sobre si os nossos pecados, reconciliando-nos com Deus. Esta situação
totalmente nova, a de reconciliados com Deus, recupera o nosso estatuto
inicial, o de filhos de Deus, que sempre acontece quando, em escolha livre que
implica a nossa vontade, aderimos à pessoa de Jesus.
Que a nossa humanidade está marcada pelo pecado não o
duvida o crente. Porventura o não crente não o reconhecerá. Foi belo ouvir uma
jovem, no contexto de um café bíblico, reconhecer que «não se vai à igreja
porque se tem medo de reconhecer que somos pecadores». Preferimos a hipocrisia
ou o politicamente correcto que nos leva a julgar-nos perfeitos, sem
necessitarmos do perdão de Deus e dos outros. Sim, porque o perdão é atitude
nobre de quem o dá e de quem o acolhe. E o perdão de Deus acontece quando somos
capazes de o repetir na relação com os outros, os irmãos: perdão recebido
torna-se perdão oferecido.
Somos todos pecadores, mesmo que nos julguemos acima
dos outros, puros e sem pecado. À semelhança dos fariseus, que não queriam
entender a atitude de Jesus para com os publicanos, que comiam com Ele - Jesus
preferia-os aos fariseus e judeus religiosos do seu tempo - também nós hoje
somos chamados à conversão dos nossos olhares sobre os outros, julgados impuros
e indignos. A conversão que a Igreja proclama como necessária e urgente,
especialmente neste tempo da Quaresma, aponta para a reconciliação sacramental
como momento de graça que acontece na liberdade humana, acolhedora do dom de
Deus.
Naquela parábola tão belamente registada por São
Lucas, encontramos um pai que recusa considerar o filho uma coisa, um objecto,
ele que o «mata» ao pedir-lhe metade dos bens como herança. Ele não o considera
perdido, logo não o vai procurar. O pai espera que o filho volte pois não se
sente proprietário do filho. Ele aguarda o seu regresso e corre para ele quando
o avista, desvalorizando o «discurso» de desculpas e, de imediato, restabelecendo
a sua dignidade perdida. O banquete exprime a necessiade do pai de exprimir
com todos a alegria que lhe vai na alma.
Diante deste amor «excessivo» do pai situa-se o outro
filho, aquele que partilhava sempre a mesa com o pai. Diz o texto que ele
«amuou» e não quis entrar na sala da festa. O texto não diz qual foi o desfecho
final, se entrou ou não. Pertence aos fariseus, os do tempo de Jesus que ouvem
a parábola e os de todos os tempos, nós também, imaginar, na nossa liberdade, o
que faria cada um de nós. Quase sempre nos identificamos com o filho pródigo,
que se afasta do pai. Esquecemo-nos que o pródigo voltou e permitiu a festa,
ou seja, a história do pródigo, como a de qualquer pecador de qualquer tempo,
pode sempre acabar bem diante do «Pai dos excessos». Mas a história do filho
mais velho, que se julga o bom, o da casa, essa continua-se: amuado talvez
porque incapaz de aprender a amar como o pai, «remoendo» o seu remorso e
alimentando a ferida com o seu orgulho, ou esperando a hora adequada do
«amadurecimento» para retornar para o pai, que continua capaz de correr também
para ele. Também com ele o pai vai saber esperar o tempo necessário para que
ele aprenda o que é amar: ao recusar o irmão que volta ele arrisca o corte com
o próprio pai.
Os ouvintes de ontem, como os de hoje, certamente
aprenderão a lição: não se pode amar a Deus se não amarmos os irmãos e o amor
«excessivo» que recebemos do pai tem de se tornar amor doado, oferecido ao
irmão, sem o que corremos o risco de perdermos o que o pai nos concedera e
voltarmos à situação de «desgraça», de solidão no pecado, recusando a
reconciliação que o pai oferece.
Confessar-se pecador é já tornar-se capaz de acolher o
perdão de Deus. E a força do perdão de Deus em nós dará origem a uma novidade
de relações com os nossos irmãos necessitados do nosso perdão. Mesmo que não
nos estendam a mão a suplicá-lo... O seguidor de Jesus oferece o perdão sem
lhe ser pedido. Como fez Jesus.
O Prior - P. Abílio Cardoso
(Prior de Barcelos)
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